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A política de águas e o país que queremos

CB, Opinião, p. 13
Autor: GARZON, Luis Fernando Novoa
04 de Set de 2006

A política de águas e o país que queremos

Luis Fernando Novoa Garzon
Sociólogo, membro da ATTAC, da Rebrip e da Rede Brasil

A Lei 9.433 e o Plano Nacional de Recursos Hídricos que a regulamenta abrem espaços novos à participação popular no processo de planejamento, deliberação e execução por meio de representação nos Comitês de Bacia, nos Conselhos Estaduais de Recursos e no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. No entanto, essa representação ainda é insuficiente e distorcida. A representação dos interesses dos usuários domiciliares, dos interesses difusos, da grande maioria da população, é proporcional à dos grandes usuários, empreendimentos industriais e agrícolas.

A lei nacional de águas em um país como o Brasil, cobiçado entre outras coisas por seu potencial agroexportador, logístico e hidroelétrico, não pode se limitar a "prevenir conflitos no uso da água", o que seria nada mais que a cristalização dos manejos privados preponderantes. O verdadeiro alcance da política nacional de águas será definido no processo de implementação do PNRH. Os instrumentos de gestão previstos em lei serão modelados durante a indicação dos critérios e a montagem de instâncias operadoras cabíveis a cada um. A seguir, avalio as perspectivas de aplicação de alguns desses instrumentos.

1) Enquadramento de corpos hídricos por classes de uso. O enquadramento, se aplicado de forma meramente classificatória, conduziria a uma indesejada especialização econômico-funcional dos corpos hídricos, enquanto o que se espera é que sirva para reverter usos insustentáveis das águas, estabelecendo metas consecutivas de qualidade, adequadas às suas múltiplas potencialidades.

2) Outorga de direito de uso da água. A outorga é a principal ferramenta de disciplinamento do uso das águas. Captações de água, lançamentos de esgotos e aproveitamentos energéticos somente serão autorizados sob avaliação prévia do impacto dessas atividades sobre o regime, sobre a vazão e sobre a qualidade das águas, observando-se o enquadramento específico de cada corpo hídrico considerado, em conformidade com suas inter-relações com a bacia hidrográfica. Até este momento, a ANA é o órgão responsável pela outorga de uso em águas de domínio da União, sendo sua a ação referencial para os Estados e o Distrito Federal. A abrangência e complexidade próprias à administração desse instrumento recomendam a ampliação do processo de decisão sobre as outorgas, com a participação de colegiados com maior representatividade social.

3) Delimitação das bacias hidrográficas como unidades básicas de planejamento e de intervenção. O enfoque integral propiciado por planos, comitês e agências de bacia pode ser um convite ao resgate do território em sua integralidade, um convite à capilarização do desenvolvimento, desde que a União e os estados desenvolvam referências políticas e os "nós" institucionais para tanto. Sem a conjugação do plano nacional com os planos estaduais de recursos hídricos, do conselho nacional com os conselhos estaduais de recursos hídricos e das políticas setoriais, nacionais e regionais que incidem sobre as águas, esses espaços não serão efetivos nem legítimos.

4) Cobrança pelo uso da água. Trata-se de um instrumento suplementar, com caráter de retribuição, válido somente para os usos outorgáveis, ficando de fora os chamados usos insignificantes. O que norteará o comportamento dos usuários, especialmente os grandes, vinculados à agricultura e indústrias de escala, não é a cobrança da água isoladamente, mas sim uma seqüência de responsabilizações diante dos planos de recursos hídricos, das classes de enquadramento e das condições impostas na outorga.

Os setores privatistas pretendem marcar o ritmo e direção da implementação do PNRH. Os interesses desses setores, replicados em instituições financeiras internacionais, organismos multilaterais, fóruns empresariais e agências reguladoras, transparecem como intentos de racionalização do uso, de modernização da gestão ou de amadurecimento institucional do setor. Aqueles que têm como meta um mercado de águas sob gestão integrada para o Brasil pretendem rifar o futuro de grande parte da população brasileira, que mal se insere no mercado de consumo e que exige água como direito fundamental e como serviço essencial, portanto público.

Água é aprendizado coletivo embutido, lugar de poder e autonomia social, fluxo intensificador do espaço e do tempo. Por isso, a privatização da água é vista como medida preventiva pelos círculos de poder mais concentrados: uma forma definitiva de selar, represar e condicionar o destino comum de nossa gente. Água pública sob controle da cidadania é nossa forma de responder: cá estamos e vivemos. Um basta à chantagem de uns com o que é de todos. O pacto mais elementar a se fazer em um país a ser reconstruído pela base e para si mesmo.

CB, 04/09/2006, Opinião, p. 13

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