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Pero Vaz de Caminha, o ouro e as vozes silenciadas dos indígenas

O GLOBO: https://oglobo.globo.com/
Autor: Sheila Hue
15 de Ago de 2021

Ler a 'Carta de achamento do Brasil' hoje e interpretá-la, num contexto de pandemia e desgoverno, pode ser um exercício de cidadania

Uma das cenas mais significativas da carta de Pero Vaz de Caminha ocorre logo no início, na descrição do encontro entre os navegadores portugueses e os povos indígenas. Era o contato inaugural. Uma pequena embarcação se afasta da recém-chegada frota, que acabara de cruzar o Atlântico, e se aproxima da praia. Tripulantes que já tinham estado na África e na Índia se aproximam. São recebidos por cerca de 20 homens tupi, com arcos e flechas, em posição de batalha.

Segundo relata Caminha, terminam trocando chapéus europeus por cocares e colares de contas. Há vozes e gritos de um lado e de outro, mas o escrivão registra apenas o som das ondas, da arrebentação ruidosa. "Não pudemos entender a fala deles nem os ouvir direito por causa do mar que quebrava na costa", registra, no dia 23 de abril de 1500, ao largo do Rio do Frade, no Sul da Bahia. Outro depoimento, também escrito por um tripulante, conhecido como Relato do piloto anônimo, dá uma versão diferente, em que as falas dos habitantes são bem ouvidas, a ponto de identificarem que aquela língua não se parecia com nenhuma que conheciam, como o árabe ou os idiomas africanos da costa atlântica: "não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem". O ruído das ondas, em Caminha, funciona como uma espécie de metáfora do silenciamento, de uma não escuta das vozes indígenas ali presentes.

Essa primeira cena do contato, em que um imaginado ruído do mar impede a audição, vai se replicar pelo restante da carta, em que outros discursos indígenas, como a possante oratória dos antigos tupi, serão ignorados, não compreendidos ou observados com perplexidade. Numa cena da carta de Caminha, um ancião, visivelmente um líder tupi, recepciona os viajantes com um discurso, encarado com espanto por Pedro Álvares Cabral, que lhe vira as costas e segue sua caminhada pela "nova terra".

Descrições minuciosas
Essa não escuta se tornará uma constante em muitos tratados, cartas, notícias e outros gêneros de escrita que relataram, lance a lance, a colonização do território. O padre Manuel da Nóbrega, ainda no século XVI, afirmou que indígenas eram como papel em branco, onde se poderia escrever o que quisessem.

Se por um lado Caminha não soube escutar algumas vozes, por outro empreende um verdadeiro catálogo da arte dos antigos tupi por meio de minuciosas descrições visuais da ornamentação corporal e de artefatos indígenas, como o magnífico manto de penas enviado ao rei. Na capa da nossa edição comentada de "Carta de achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha" (Editora da Unicamp), pudemos contar com o belo trabalho do artista plástico Jonathas de Andrade com mulheres Kayapó, no qual grafismos ancestrais foram desenhados sobre mapas.

Mesmo tendo sido composta há tantos anos, a carta de Pero Vaz de Caminha, ainda hoje, nos seus silenciamentos, na narração de equívocos e mal-entendidos entre os povos indígenas e "povo da mercadoria" - como designa Davi Kopenawa em "A queda do céu" - pode ser uma interlocutora do nosso presente. As cenas que o missivista português nos apresenta, com sua brilhante capacidade descritiva, não pertencem unicamente a um passado distante. De um lado, povos que se lançavam no oceano desconhecido, em um "Novo mundo", logo repartido ao meio, entre as coroas de Portugal e Espanha, que, em busca de ouro e riquezas, moviam o nascente capitalismo mercantil. De outro, nações que há milhares de anos estavam ali, nos "arvoredos mui muitos e grandes, e de infindas maneiras", com sua cultura, seu modo de vida, seus idiomas, sua cosmologia, sua arte, inteiramente estranhas à mentalidade comercial europeia.

Os nove dias em que a frota de Cabral esteve no que viria a ser o Brasil, relatados na carta, são o marco inicial de um brutal processo de desintegração das sociedades que ali se encontravam. A chamada conquista do território, do ponto de vista europeu, que pretendia "desbravar" (tornar não-bravo, não-selvagem) e "civilizar", ou seja, incutir os valores do pensamento humanista e da religião católica, significou para os povos indígenas a invasão de seu território.

Caminha usa a expressão "achamento" e não descobrimento, termo empregado naquela época para explorações mais detidas de litorais e territórios. Durante muito tempo debateu-se se a terra tinha sido descoberta intencionalmente ou por acaso. A dúvida existia principalmente porque alguns contemporâneos de Caminha relataram uma tempestade que teria colocado a armada fora do curso, provocando a chegada à terra. Curiosamente, a tempestade não é referida por Caminha ou pelos outros integrantes da frota que escreveram os documentos sobre a viagem que chegaram até nós. Tudo leva a crer que a parada no Brasil, antes de seguirem para a Índia, foi intencional, e que havia uma corrida em busca dessa nova parte do mundo.

Cabral teve antecessores. Há muito se sabe que o espanhol Vicente Yañez Pinzón atingiu a costa brasileira meses antes de Cabral, e já em 1932 o poeta Murilo Mendes fazia troça disso em seu livro "História do Brasil" no poema "Prefácio de Pinzón". Como comprovou o historiador português Jorge Couto, o cosmógrafo e navegador Duarte Pacheco Pereira, que também integrou a frota de Cabral, chegou ao nosso litoral em 1498, a mando do rei D. Manuel, o que relatou em uma obra escrita nos primeiros anos do século XVI. Na "nova terra" pretendiam encontrar ouro, como haviam feito na costa africana, e muitos dos equívocos de comunicação entre os tripulantes da frota de Cabral e os indígenas giram em torno da especulação sobre a existência do mineral.

A carta de Caminha é uma espécie de relato de viagem, uma janela para um mundo que um dia existiu. Desde que foi descoberta nos arquivos portugueses e publicada no século XIX passou por uma série de interpretações, sempre guiadas por projetos políticos e culturais. Já foi certidão de nascimento e exemplo da conciliação pacífica entre os povos.

Questões agudas hoje
Hoje ler a carta e interpretá-la, num contexto de pandemia e desgoverno, pode ser também um exercício de cidadania. As vozes silenciadas, a busca pelo ouro, a ameaça aos povos indígenas, a questão da posse do território e a violência colonial são questões agudas em nossa contemporaneidade, e espelham o garimpo ilegal de ouro, a contaminação dos rios amazônicos com mercúrio, os constantes ataques a povoações indígenas, as políticas de destruição. A leitura da carta hoje pode aguçar a escuta para vozes indígenas, como as de Alessandra Korap, Joenia Wapichana, Sonia Guajajara, Denilson Baniwa, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, e ampliar o debate público sobre o nosso futuro coletivo.

Sheila Hue é pesquisadora, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e responsável pela edição comentada "Carta de achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha" (Editora da Unicamp, 2021)

FONTE: https://oglobo.globo.com/cultura/pero-vaz-de-caminha-ouro-as-vozes-sile…

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