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Perigo no campo

O Globo, Sociedade, p. 23
30 de Jan de 2018

Intoxicação por agrotóxico dobra em dez anos e alimenta debate sobre incentivos fiscais
Dados federais mostram aumento no número de mortes; discussão chega ao Supremo

BRASÍLIA- Enquanto o debate sobre a isenção de impostos sobre agrotóxicos chega ao Supremo Tribunal Federal (STF), dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Ministério da Saúde revelam o crescimento do número de mortes e intoxicações envolvendo defensivos agrícolas no Brasil. Em 2017 foram registrados 4.003 casos de intoxicação por exposição a agrotóxicos em todo o país, quase 11 por dia. Em uma década, a estatística praticamente dobrou. Foram 2.093 casos em 2007. No ano passado, 164 pessoas morreram após entrar em contato com o veneno e 157 ficaram incapacitadas para o trabalho, sem contar intoxicações que evoluíram para doenças crônicas como câncer e impotência sexual.

Os números crescem em ritmo parecido com o aumento do consumo dos defensivos agrícolas. O Brasil já é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Um decreto de 2011 zerou o IPI, que é um imposto federal, dos agrotóxicos. Um convênio de 1997 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) reduziu o ICMS, cobrado pelos governos estaduais. Críticos dos benefícios fiscais denunciam a contradição de estimular com cobrança de menos impostos um setor cujos produtos têm causado mais gasto no Sistema Único de Saúde (SUS). Uma ação movida pelo PSOL em 2016 no STF questiona as isenções e o possível reflexo no aumento do uso dos agrotóxicos.

Os dados de mortes e intoxicações levam em conta episódios em que houve exposição aguda aos produtos. As estatísticas decorrem da obrigação de unidades de atendimento de informar ao Ministério da Saúde se a causa de casos de intoxicação foi o agrotóxico. Outro dado que preocupa a pasta está relacionado ao suicídio. Em 2017, 1.449 pessoas tentaram tirar a própria vida ingerindo defensivos agrícolas, contra 730 tentativas em 2007. A Fiocruz trabalha com a hipótese de que o agrotóxico afeta o sistema nervoso central, provoca depressão e leva a pessoa exposta (principalmente moradores do campo) a tentar suicídio ingerindo o próprio veneno.

TRABALHADORES SEM PROTEÇÃO

Um agravante é que boa parte dos agrotóxicos usados no Brasil é contrabandeada. O produto ilegal é considerado mais potente contra as pragas, mas também mais nocivo à saúde. Segundo levantamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram apreendidos nas rodovias federais, em 2016 e 2017, quase 111 mil quilos de defensivos agrícolas irregulares. Pelo menos 50% das apreensões aconteceram na fronteira com Paraguai, Uruguai, Bolívia e Argentina. A PRF afirma que tem realizado operações nas regiões com mais ocorrências.

No campo, são poucos os trabalhadores que utilizam equipamentos de proteção individual. O GLOBO visitou o assentamento Três Barras, em Cristalina (GO), a 180 quilômetros de Brasília, onde moram 180 famílias de médios e pequenos produtores de soja, milho e feijão. Todas fazem uso de agrotóxico, mas poucos são os trabalhadores que admitem usar equipamentos de proteção. A principal justificativa é o alto custo de máscaras, luvas e roupas de manga comprida, entre outros itens, e o incômodo de usá-los sob forte calor.

O Ministério do Trabalho informou ao STF que realizou 4.767 inspeções nos últimos três anos relacionadas ao uso de defensivos agrícolas no campo, que resultaram em 2.717 atos de infração. Já o Ministério da Agricultura fez 6.089 fiscalizações sobre agrotóxicos entre 2013 e 2016, detectando infrações em dois terços dos casos.

Adilson Pagani, 45 anos, é proprietário de 49 hectares, onde planta principalmente soja. Ele usa três tipos de defensivos para combater uma praga chamada ferrugem.

- Trabalho há 17 anos com veneno, mas nunca usei qualquer tipo de proteção. Incomoda muito - diz. - Sem o veneno, não consigo produzir nem 20% do que produzo.

Quem fica doente por causa do agrotóxico é levado por uma estrada de terra, de 25 quilômetros, até o posto de saúde de Cristalina. Os últimos intoxicados atendidos ali foram uma criança de três anos, que comeu uma uva que havia acabado de ser pulverizada com pesticida, e um lavrador que passou mal após um dia inteiro em contato com o veneno.

- Geralmente as pessoas chegam tremendo, com falta de ar e vomitando. Assim que falam que é veneno, a gente notifica o Ministério da Saúde - conta uma enfermeira, que não quis se identificar.

Hoje trabalhando em Cristalina, numa movimentada loja de agrotóxicos e equipamentos, Domício Alves, 58 anos, conta que atuou por mais de dez anos no campo manipulando pesticidas:

- Bastou cair na pele ou cheirar muito o respingo do veneno para já dar sinal de tontura. Enjoo e vômito também são comuns no dia a dia, porque poucos trabalhadores se protegem. Muitos nem acreditam que o veneno faz mal. Só procuram o médico quando estão morrendo.

Governo se divide na ação sobre isenção fiscal para agrotóxicos em curso no STF

Entidades como Ibama e Inca condenam isenção de impostos que AGU defende

BRASÍLIA- No fim do ano passado, o relator da ação proposta pelo PSOL contra as isenções fiscais no comércio e na produção de agrotóxicos, ministro Edson Fachin, solicitou esclarecimentos de 25 órgãos oficiais e da sociedade civil sobre a conveniência da política de incentivos. A maioria ainda não respondeu. No entanto, os que já fizeram isso expuseram uma divisão dentro do governo. O Ibama, por exemplo, é contra o modelo atual de desoneração. Concordam com o órgão, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Já a Advocacia-Geral da União (AGU), disse o oposto: elevar impostos de pesticidas aumenta o custo dos alimentos.

Ao propor a ação, o PSOL argumentou que a renúncia fiscal significa um incentivo ao uso dos agrotóxicos. O Ibama disse ao STF não haver dados seguros sobre como os impostos influenciam a decisão dos agricultores de usar ou não o produto. Mas, o documento assinado por Suely Araújo, presidente do órgão, deixa claro sua posição: "Acreditamos que subsídios nesse campo deveriam focar os produtos com menor impacto para o meio ambiente". O Consea, que assessora a Presidência da República, vai na mesma linha. O Inca, ligado ao Ministério da Saúde, também entende que a baixa tributação gera custos sociais e ambientais que recaem sobre toda a população, em razão de gastos públicos com saúde, entre outros.

Do lado contrário, a AGU destacou em documento de 2016 que a ciência ainda não proporcionou uma alternativa eficaz aos agrotóxicos. Assim, se elevados os impostos, o produtor rural "não teria condição financeira de custear a compra desses produtos, o que geraria mais fome, mais desnutrição e ainda maior prejuízo da saúde da população". Mais recentemente, o Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos (CTA) - com a participação de representantes dos ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente, e da Saúde - e a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda também fizeram ponderações no processo que tendem a favorecer a manutenção das regras atuais.

O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), que reúne os fabricantes de agrotóxicos, apresentou ao STF um estudo indicando que, apenas entre produtores de soja, o aumento de impostos elevaria os custos em até R$ 8 bilhões por safra, estimulando o contrabando. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) também é contra. Já a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestou pela aceitação do pedido do PSOL.

O Globo, 30/01/2018, Sociedade, p. 23

https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/intoxicacao-por-agr…

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