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Pelo menos, acabou a inercia

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: TRIGUEIRO, André
11 de Fev de 2005

Pelo menos, acabou a inércia

André Trigueiro

Depois de sete anos de intensas negociações, entra em vigor no próximo dia 16 um acordo internacional sem precedentes na história, que pretende resolver, por etapas, o mais grave problema ambiental do século XXI.
Impedir o avanço do aquecimento global já havia sido entendido como prioridade durante a Rio-92, quando 175 países assinaram a Convenção sobre Mudança do Clima, que reconhecia a necessidade de uma estratégia internacional para enfrentar a elevação da temperatura da Terra. Cinco anos depois, o Protocolo de Kioto emprestou dentes a essa convenção, estabelecendo metas e prazos para que os países industrializados, aqueles que historicamente mais contribuíram para o acúmulo de gases-estufa na atmosfera, reduzissem as suas emissões.
Dos 136 países que ratificaram o protocolo até agora, 36 pertencem ao seleto grupo dos industrializados, o chamado "Anexo 1", e deverão, entre 2008 e 2012, reduzir suas emissões em média 5,2%, tomando por base o ano de 1990.
Que ninguém espere desse protocolo a salvação da Humanidade. Ele é apenas o primeiro passo, como afirma o próprio documento ao se referir ao prazo de execução das metas como o "primeiro período de compromisso".
Estima-se que o esforço necessário para impedir o avanço do aquecimento global seria uma redução imediata de aproximadamente 60% nas emissões de gases-estufa (dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e outros). Ora, se com um objetivo bem mais modesto os Estados Unidos - país que responde sozinho por 25% das emissões globais de gases-estufa - ficaram de fora, é de se imaginar o estardalhaço que metas mais ousadas causariam.
O fato é que mal o protocolo saiu do papel e já se discute intensamente nos meios diplomáticos o que será o pós-Kioto. À frente do G-8 e assustado com os efeitos colaterais do aquecimento, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, está empenhado em atrair os Estados Unidos para o "segundo período de compromisso". O governo Bush considera a implementação do protocolo - e eventuais mudanças na matriz energética daquele país - sinônimo de custos extras e aumento do desemprego. Mas a Casa Branca também critica o fato de o protocolo ter livrado de compromissos formais de redução países como China, Índia e Brasil, que, segundo estimativas da ONU, terão superado no ano de 2015 os países desenvolvidos nas emissões de gases-estufa.
Essa crítica dos Estados Unidos encontra ressonância em outros países ricos, que também exigem o enquadramento dos países em desenvolvimento a partir de 2012. A posição do governo brasileiro, em sintonia com o bloco dos emergentes, é a de que 90% dos gases acumulados na atmosfera desde o início da Revolução Industrial têm origem nos países industrializados, e que não seria justo punir com metas de redução os países que se desenvolveram mais tarde.
Como se vê, a posição dos países no tabuleiro das negociações fica mais ou menos vulnerável conforme a escala de tempo escolhida. No caso do Brasil, por exemplo, se a contabilidade das emissões resgatar o passivo de todos os países nos últimos 150 anos, nossa parcela de contribuição se restringiria a aproximadamente 1% do total de gases acumulado na atmosfera. Este é o número que o Itamaraty exibe mundo afora e que justificaria nosso suposto direito de poluir sem prejuízos para o desenvolvimento.
Numa escala de tempo menor, que é a que interessa aos países ricos, os emergentes aparecem como vilões. A China, que queima carvão mineral para alimentar sucessivos recordes de crescimento do PIB, já seria o segundo maior emissor de gases-estufa do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Brasil e Índia estariam entre os seis maiores emissores.
Nosso calcanhar-de-aquiles continua sendo a Amazônia. Segundo estudo divulgado recentemente pelo próprio governo brasileiro, mais de 77% do gás carbônico lançado na atmosfera tem origem nas queimadas. O fogo na floresta apaga em certa medida a vantagem de possuirmos uma matriz energética limpa (baseada principalmente na hidroeletricidade), o uso do álcool como combustível e outros indicadores que nos distinguem positivamente nas negociações do clima.
Apesar de todas as dificuldades, sair da inércia é o grande mérito do Protocolo de Kioto. A simples vigência desse acordo já está desencadeando uma avalanche de investimentos na economia - energia limpa, aterros sanitários, projetos de reflorestamento etc. - com importantes impactos ambientais. Há muito o que fazer, e os desafios pela frente são imensos. Mas o primeiro passo, por ser o mais difícil, é também o mais importante.

André Trigueiro é jornalista.

O Globo, 11/02/2005, Opinião, p. 7

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