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PCC loteia áreas na Guarapiranga

OESP, Metrópole, p. C1, C3
25 de Mar de 2007

PCC loteia áreas na Guarapiranga

Sérgio Duran

As marcas de bala na parede da sede do antigo São Paulo Ultraleve Clube denunciam qual é a lei do lugar - um braço da Represa Guarapiranga e resquícios de mata atlântica. Miami Paulista, Vila Gilda e Jardim Aracati, na periferia da periferia da capital, distrito do Jardim Ângela, são os bairros onde a pressão para invadir os poucos terrenos que restam fazem o local parecer cenário de faroeste.

O clube faliu há cerca de 15 anos, mas a pista é usada para aprendizes de piloto de helicóptero. O que os moradores vêem, no entanto, é um imenso terreno coberto de grama à margem da represa, vizinho da Prainha, onde a maioria se diverte no fim de semana. 'Aqui todo mundo anda armado. Invadem e, em dois, três dias, a casa está construída', conta o diretor do aeródromo, o piloto aposentado Nelson Otone Rodrigues, de 62 anos. Outros relatam histórias assustadoras de conflito pela terra, que, invadida, pode ser vendida por R$ 5 mil a R$ 20 mil.

Segundo os moradores, há partes da região onde só se entra com autorização do Primeiro Comando da Capital (PCC). Narram casos como o assalto a fiscais da Prefeitura e da Sabesp, e a história de um homem e seu filho que morreram queimados no porta-malas de um carro, e, depois, foram atirados no 'Poção' - parte mais funda daquela margem da represa, pois o pai 'não pagou a associação'. O caso foi registrado no 100o Distrito Policial como desaparecimento.

A prática na Vila Gilda repete o que ocorre na Guarapiranga, há pelo menos 30 anos. Os terrenos são invadidos com a anuência do proprietário, ou por um grileiro. Uma associação é montada - geralmente ligada a um deles - e cobra prestações dos invasores. Aterrar para construir na área da represa que abastece 3,7 milhões de paulistanos, de Santo Amaro, Campo Limpo, Morumbi e Butantã, custa de R$ 60 a R$ 200 mensais. A novidade é a entrada do PCC nas associações. 'Em alguns lugares são eles que cobram, sim', diz um morador que não quer ser identificado. 'Mas são justos na cobrança.'

O subprefeito de M'Boi Mirim, Lacir Baldusco, não confirma a violência. 'Se houve histórias assim, foi há muito tempo. Tenho três ações (de reintegração de posse) para cumprir. Não quero mexer com quem está quieto.' A visita da reportagem, porém, foi marcada por advertências de moradores e até de um policial. No primeiro semestre de 2006, uma pessoa morreu por semana na área do 100o DP.

A vida na vila onde tudo é ilegal
Bem à beira da represa, moradores chegam a se divertir por estragarem a água que o 'pessoal do Morumbi' bebe

Sérgio Duran

Diz a lenda da Vila Muriçoca que a Sabesp solta piranhas na Represa Guarapiranga para que os invasores das margens morram à míngua, sem poder pescar. A Favela do Jardim Aracati, região da Subprefeitura do M'Boi Mirim, está dentro do reservatório, numa parte que um dia foi alagada, mas acabou virando pântano com a seca.

Todos ali sabem que são ilegais e chegam a se divertir com o fato de estarem 'estragando' a água que 'o pessoal do Morumbi' bebe. Mas afirmam não enxergar outra opção de moradia. 'Ah, pode ser o que for, mas eu estou no céu', conta a auxiliar de limpeza Roseli Rezende dos Santos, de 34 anos, que trocou Osasco pela Muriçoca. 'Melhor do que pagar aluguel.'

Como Roseli, o jardineiro desempregado Ronaldo Alexandre, de 36, comprou de terceiros o terreno na favela, onde ergueu um sobrado sem reboco. Alexandre vivia numa invasão de terreno público no Jardim Ângela. 'Foi a melhor coisa que eu fiz', conta Alexandre. Apesar de ser uma ocupação de cinco anos, poucos da Muriçoca são os moradores originais.

O pedreiro Joaquim Justo da Silva, de 64, está entre os pioneiros do lugar. Ele conta que o proprietário do terreno, uma gleba de 15 mil m2, deixou que eles invadissem, e, depois, o próprio montou a associação e começou a cobrar prestações dos invasores pelo terreno. 'Eram umas cem famílias pagando R$ 60 por mês. Ele chegou a levar R$ 92 mil pela nossa conta, sempre ameaçando ir na Justiça contra a agente. Hoje, está tudo parado', diz Silva.

Silva acha injusto que, hoje, a maioria dos moradores da Muriçoca venda seus barracos por até R$ 8 mil sem nunca ter pago à associação. 'Quem pagou, ainda está aqui, lutando pela casa própria.' Poucos, como ele, rejeitam a idéia de morar em um apartamento da Companhia de Desenvolvimento Urbano e Habitacional (CDHU). 'Tem uns que vêm para cá atrás disso', considera.

A vida na favela não é fácil. Da Avenida Embu-Guaçu, a ocupação desce rumo à represa em ruas sinuosas e de terra. O solo frágil dos mananciais faz qualquer chuva provocar erosões imensas. A água e a energia elétrica são puxadas ilegalmente. Para os Correios, não existe a Muriçoca, e sim o número 702 da 'Avenida de Cima', que recebe em média 1.500 correspondências por mês.

Luciano José dos Santos, de 36 anos, é quem distribui as cartas aos moradores. É ele também que confirma o endereço de todos os moradores da favela que abrirem crediário nas Casas Bahia, por exemplo. 'Ligam para o meu telefone e eu digo que sim, que ele mora aqui', explica. Santos trabalha na Associação dos Moradores do Jardim Aracati e Chácara Bandeirante, uma das várias que atuam na região da Muriçoca.

Agora, eles fazem a conta para puxar TV a cabo para a favela, que, localizada em uma parte baixa, não tem bom sinal. 'A gente soube que se dez assinarem, eles passam o cabo na Embu-Guaçu, aí...', explica Santos.

Não fosse o pântano, a favela estaria colada ao reservatório. Uma das poucas áreas não invadidas da Muriçoca é o campo de futebol. 'Disseram para deixar porque campinho ninguém invade', diz o diretor da associação. Do chão do campo, porém, mina água. 'É assim em todo lugar. Cavou, sai água.'

A fama da favela é de ser território do PCC. Os moradores desconversam quando o assunto é a facção. 'Sei não. Só posso dizer que aqui é calmo', diz a auxiliar de limpeza Roseli. 'Tem sempre uns moleques que gostam de correr da polícia', insinua Santos, que, na camiseta, traz estampados os dizeres 'facção criminosa', seguidos do desenho de um punhal e uma pomba ensangüentada.

O subprefeito de M'Boi Mirim, Lacir Baldusco, ainda não sabe dizer quanto da Muriçoca terá de ser removida, após a conclusão do mapeamento da Prefeitura. Semana passada, o prefeito Gilberto Kassab anunciou medidas de combate à ilegalidade nos mananciais.

A região da Subprefeitura de M'Boi Mirim tem 600 mil habitantes, 270 favelas e 70% do seu território em área de proteção ambiental.

Semana passada, moradores de toda a região, incluindo a vizinha Vila Gilda, se reuniram para discutir o aperto na fiscalização pela Prefeitura e a possibilidade de remoção de parte dos moradores. Hoje, haverá outra reunião.

Enquanto uns pensam na possível remoção, outros calculam a valorização dos terrenos dos que ficarem. 'Aqui é ótimo. O único porém é a mosquitada', diz Roseli.

Planos para a área mostram conflitos políticos

O anúncio de dois planos distintos para recuperar os mananciais - um do prefeito Gilberto Kassab (PFL) e o outro do secretário de Estado do Meio Ambiente, Francisco Graziano - denunciou os conflitos políticos que a região desperta. De um lado, o Estado somando a desapropriação de 30 mil famílias somente da Guarapiranga. De outro, Kassab falando em 5 mil na área dos dois reservatórios.

O manancial não é apenas área de proteção ambiental, mas também território político. Não há associação na Vila Gilda, cujo muro não esteja pintado com o nome de algum vereador, em especial do PMDB, que predomina na zona sul de São Paulo. Desapropriar em massa significa brigar com a Câmara.

Na cerimônia de lançamento da operação Defesa das Águas, da Prefeitura, sexta-feira, os números foram desmentidos. No lugar, foi oferecido um novo mapeamento, porém à administração municipal interessa a desapropriação mínima de moradores. Segundo Gerson Ortega, criador da operação, a remoção será usada em último caso. "A urbanização é a opção preferencial."

No lançamento da sua proposta, o secretário Graziano chegou a acusar vereadores - sem citar nomes - de incentivar a ocupação dos mananciais, com a distribuição de "kits barraco", espécie de cesta básica de materiais de construção.

A operação Defesa das Águas, porém, vai em outra direção. Propõe a demolição apenas das construções recentes, a implantação do sistema de limpeza da orla da Guarapiranga e dos córregos, além da criação de um projeto de desenvolvimento sustentável para a população da região.

Com a operação, Kassab regulamenta a nova legislação do reservatório, aprovada ano passado, que transfere ao Município a missão de fiscalizar a região, antes restrita à divisão ambiental da Polícia Militar.

Cerca de 200 homens treinados na Guarda Civil Metropolitana atuarão na área das três subprefeituras que abrange a Guarapiranga, orientando a população a não mais invadir áreas protegidas e fiscalizando a margem.

OESP, 25/03/2007, Metrópole, p. C1, C3

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