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Parece disco voador. Mas é fruta nativa

OESP, Paladar, p. D4-D5
23 de Jul de 2015

Parece disco voador. Mas é fruta nativa

Por Jose Orenstein

Os índios daqui chamavam-na kamu'si - pote d'água em tupi-guarani. Ficou cambuci. A fruta abundava nos altos da Serra do Mar, espécie nativa da Mata Atlântica que era. São Paulo então cresceu, as árvores foram ao chão, um bairro até levou seu nome - memória de quando era fácil encontrar a fruta que lembra um disco voador. Hoje, para muitos, cambuci é ainda objeto não identificado. Mas isso deve mudar: ele vem aparecendo em plantações nas bordas de São Paulo e nos mercados, restaurantes e sorveterias da cidade.
Contam-se, atualmente, ao menos 150 produtores de cambuci em municípios vizinhos da capital paulista, como Mogi das Cruzes, Rio Grande da Serra e Salesópolis. "O potencial é muito grande. Sempre descobrimos gente que tem vários pés de cambuci, mas ainda não sabe que tem um produto tão valioso no quintal", diz Gabriel Menezes, do Instituto Auá. Mapeando e reunindo produtores e, especialmente, levando o cambuci ao consumidor final, o instituto tem papel determinante no resgate do cambuci.
Desde 2009, o Auá fomenta a Rota Gastronômica do Cambuci, série de festivais organizada em onze cidades ao longo do ano. Neles, produtores vendem a fruta e as cachaças, geleias, molhos, doces e licores que fazem com o cambuci.
Paralelamente, neste ano, por meio do Empório Mata Atlântica (braço comercial do Instituto Auá), a fruta tem sido apresentada a chefs, cozinheiros e sorveteiros paulistanos.
"É incrível, tem acidez pronunciada, um perfume intenso e faz a boca salivar", diz a chef Bel Coelho. Nos jantares do projeto Clandestino, ela usa cambuci numa espécie de raspadinha com carpaccio de vieiras e pimenta. No restaurante Tuju, o chef Ivan Ralston também usa o cambuci como entrada. Ele faz uma geleia da fruta, que é servida com tapioca e foie gras. "É um prato que pergunta: O que é luxo? Para a gente, não é o foie gras, mais fácil de encontrar. É, ironicamente, o cambuci, fruta nossa, que virou rara", diz.
Já na Le Botteghe di Leonardo, o sorvete de cambuci é dos mais vendidos. "Sai mais que abacaxi! E vende igual a manga, morango", diz Roberto Galisai, um dos sócios da sorveteria. Italiano, ele conta ter que explicar aos clientes, brasileiros, o que é a fruta. "Mas quem prova sempre gosta e repete. Lembra um pouco a jabuticaba, uma goiaba verdinha."
No restaurante Tête à Tête, o chef Gabriel Mateuzzi também usa o cambuci para fazer sorvete, com xarope de baunilha e hortelã-pimenta. Ele é servido no menu-executivo. "Quando as pessoas pensam em fruta ainda é abacaxi, melancia e 'frutas vermelhas'. Cambuci, pouquíssimos conhecem. Mas os clientes têm adorado", diz.
Os restaurantes Attimo, Clos, Ema, a sorveteria Casa Elli e a padaria PÃO também têm usado o fruto, que pode ser comprado congelado no Mercadão, no Supernatural e no Instituto Chão (veja endereços ao lado.) No Mercado de Pinheiros, no espaço que o Instituto Atá, de Alex Atala, terá, o cambuci - e seus derivados - deve ser vendido ao lado de outros frutos nativos da Mata Atlântica, como araçá, juçara, grumixama e uvaia.
Espécie até há pouco considerada em extinção, os cambucizeiros, e seus frutos, voltam a ganhar Piratininga, seus pratos e paladares.

Colheita na mata a uma hora do caos da cidade

Por Jose Orenstein

Em uma hora de carro, saindo do bairro do Limão, chega-se a Mogi das Cruzes. Poucos minutos mais, pela Estrada do Beija-Flor, e chega-se ao que parece outro mundo. Descortinam-se os mares de morros da Serra do Mar e da Serra do Itapeti. É ali que Alexandre Sousa Franco cuida de 350 pés de cambuci. "Tinha uma árvore velha aqui perto. Aí resolvi fazer muda", diz ele, que começou a colher os frutos do que plantou há nove anos. Hoje, vive da venda do cambuci.
Bem perto de sua casa, em meio à Mata Atlântica, Alexandre mantém pomares com árvores que passam dos três metros. O técnico agropecuário do Instituto Auá Hamilton Trajano, que ajuda produtores em diversos municípios paulistas, conta que o cultivo de cambuci funciona como uma transição para a mata. "O cambuci, aqui, está disputando com pasto e eucalipto. O que estamos mostrando é que ele pode ser mais rentável - sendo sustentável", diz. O cambucizeiro é nativo da Mata Atlântica e pode dar 200 quilos de fruta por safra.
Na propriedade de Alexandre, a safra está no finzinho, estendida: geralmente, o cambuci dá de fevereiro a junho. Ele avista um graúdo disco voador verde, na ponta de um ramo, e colhe o fruto carnudo e aromático. "O certo mesmo é pegar do chão, logo que cai - e de manhã, antes que esquente. Senão preteja demais, muito rápido." Quando o cambuci está no ponto ele ainda é verde, mas fica levemente amarelado e com a carne mais macia.
A fruta é polpuda e delicada. Hamilton conta que chega-se a perder 70% da safra, quando os frutos ficam machucados - eles se machucam facilmente. O cultivo em si não exige maiores cuidados, além de roçagem e adubação da terra. Alexandre maneja sozinho sua produção.
Toda a plantação de cambuci em São Paulo é de agricultura familiar. "O cambucizeiro pode chegar a 100 anos dando muita fruta. Ele pode ser uma alternativa real para as famílias, como as oliveiras são na Europa. Por que não?", diz Hamilton.
Alguns produtores atuam também como beneficiadores. Alexandre já produziu licor e cachaça, mas hoje se concentra na venda do fruto e de mudas. Ainda guarda, contudo, um belo pote com aguardente de cambuci, que ele tira, orgulhoso, de uma pequena sala.
Transparência
No arranjo produtivo estabelecido pelo Instituto Auá, os beneficiadores (que lavam, congelam e embalam) pagam até R$ 3 por quilo junto aos produtores. O Empório Mata Atlântica, braço do Instituto Auá que faz a distribuição, compra por R$ 5 o quilo e vende a R$ 10 para a indústria e supermercados, a R$ 12 para estabelecimentos gastronômicos e de R$ 15 a R$ 18 para o consumidor final. "Por ser um negócio social, todo o lucro é revertido na cadeia produtiva", diz o gestor do Instituto Auá, Gabriel Menezes.
Neste ano, foram colhidas 20 toneladas de cambuci. Nem tudo foi vendido, mas a fruta é bem conservada congelada. Para o ano que vem, espera-se colher e processar de 50 a 60 toneladas de cambuci.

Um bairro é semeado

Por Jose Orenstein

Os tropeiros que venciam a Serra do Mar paravam no Planalto de Piratininga em busca de água, descanso e sombra. O córrego Lavapés lhes fornecia isso e ainda as suculentas frutas que pendiam dos cambucizeiros. Era tanta a árvore da espécie ali, que ficou o nome: nasciam o bairro do Cambuci e a rua Lavapés, na zona sul de São Paulo.
Hoje a espécie já não é tão comum ali como antes, mas no Largo do Cambuci ela está lá - e mutirões de plantio recentes, promovido pelo Instiuto Auá com moradores, têm tratado de devolver à paisagem do tradicional bairro paulistano os ácidos discos voadores verdes.
Outro bastião do resgate da fruta no bairro é um tradicional restaurante local, o Javali (R. Luiz Gama, 847, Cambuci, 3271-8234). A casa existe desde 1962, mas foi a partir de 2009 que começou a colocar o cambuci como estrela no cardápio. O nhoque com molho da fruta é dos pratos mais pedidos. A caipirinha de cambuci, feita com a cachaça da fruta envelhecida em carvalho, também vai bem. E sucos e sorvetes honram a fruta que dá nome ao bairro.

Acidez punjente
O cambuci, como os índios notaram, lembra na forma um pequeno pote atarracado. Tem casca bem fina e lisa. Não costuma passar dos 6 cm de diâmetro. É verde - mesmo se maduro. É azedo e trava um tanto a boca. Mas é bom também abocanhá-lo direto do pé. A pele rompe-se facilmente à primeira dentada feito uma carambola. A polpa é razoavelmente cremosa e bem suculenta. Primeiro ela amarra, adstringente, depois ataca as laterais da língua com acidez pungente. Há quem diga que parece jabuticaba com limão - e um pouco de goiaba.

Suco - O jeito mais fácil de aproveitar o cambuci é batendo-o no liquidificador com água e açúcar. Basta misturar três frutas maduras com 400 ml de água - a porção deve dar para dois copos como este da foto ao lado. O cambuci tem muita água na sua composição. Para o suco, serve a fruta congelada e com casca (mas não é difícil tirá-la). Por ser muito ácida, vale equilibrar com açúcar. Uma boa ideia também pode ser adicionar capim-santo ou hortelã para dar um aroma ainda mais interessante.

Geleia - Não é exagero dizer que o cambuci nasceu para virar geleia. É que a fruta tem alta concentração de pectina, um elemento gelificante natural. Dessa forma, não é preciso acrescentar limão ou maçã-verde (ou pectina comercial) para ter uma saborosa geleia de cambuci - bastam 500g de polpa da fruta e 500g de açúcar, cozidos em fogo médio até dar o ponto. Quando vira geleia, o cambuci ganha tom vermelho alaranjado. E a textura fica perfeita, com boa distribuição de frutos na massa.

Cachaça - Geralmente, as pessoas não associam cambuci à fruta, mas à cachaça. É que é das forma mais tradicionais e antigas de aproveitar a espécie nativa da Mata Atlântica. Os tropeiros que subiam a Serra do Mar agarrados numa aguardente teriam sido os primeiros a colocar a fruta que encontravam nos altos de Piratininga para descansar na bebida. Ainda hoje é hábito familiar: nas casa que têm pé de cambuci, é comum ver um grande pote de vidro onde a fruta é deixada em infusão na pinga por alguns meses.

Sorvete - Gelado, o cambuci vai bem demais: é refrescante, com intenso sabor. Assim como no suco, a fruta sozinha é suficiente - com um pouco de açúcar para equilibrar a acidez. Pelo menos duas sorveterias italianas em São Paulo incorporaram o cambuci ao seu cardápio este ano: a Le Botteghe di Leonardo (de onde veio o sorvete da foto ao lado) e a Casa Elli. Ambas usam a polpa pura, com água e não leite. Pequenos pedaços da fruta aparecem na massa, que se mantém verde. Da próxima vez, em vez de limão, tente o cambuci.
ONDE ENCONTRAR
Mercados
Mercadão. Pomar do Campo. R. da Cantareira, 306, box K5, 3313-2022
Supernatural. R. Augusta, 2.992, 3062-4945.
Instituto Chão. R. Harmonia, 123, 3530-0907
Sorveterias
Casa Elli. Alameda Tietê, 163, 3063-4741
Le Botteghe di Leonardo.
R. Oscar Freire, 42, 2528-2000
Restaurantes
Tuju. R. Fradique Coutinho, 1.248. 2691-5548
Tête-à-Tête. R. Melo Alves, 216, 3796-0090

OESP, 23/07/2015, Paladar, p. D4-D5

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