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Paraíso em perigo

CB, Caderno C, p. 3
Autor: Tiago Faria
11 de Mar de 2007

Paraíso em perigo
Duas décadas depois de revelar o cotidiano de índios do Xingu, Washington Novaes encontra aldeias ameaçadas pelo avanço da fronteira agrícola

Tiago Faria

Exibida em 1984 na extinta Rede Manchete, a série Xingu, a terra mágica venceu desafio que continua a soar fora do comum: o de conquistar uma multidão de 3,5 milhões de telespectadores (o episódio final atingiu 20 pontos de audiência no país inteiro) com o registro de rituais, tradições e detalhes do cotidiano de aldeias indígenas. Durante quatro meses, o documentarista Washington Novaes se integrou a cinco comunidades do Parque Indígena do Xingu (no norte do Mato Grosso) e captou imagens que revelaram ao público os rostos, os gestos e a prosa de vizinhos ainda pouco conhecidos. A jornada, porém, não terminou no último capítulo do programa. "Permanecemos em contato durante esse tempo todo. Os índios se hospedavam em minha casa, trocávamos informações. Eu sentia a necessidade de redocumentar as aldeias", conta Novaes, paulista que atualmente reside em Goiânia.

Um susto ecológico serviu de gatilho para o projeto, que começou a ganhar corpo em 1999. As notícias de que agressões ambientais assombravam a reserva indígena provocaram em Novaes o desejo de mapear as mudanças sofridas pelas comunidades no espaço de duas décadas. "O entorno do parque estava ocupado pela pecuária e pela soja. Estradas foram abertas. Era preciso conhecer o impacto disso", diz. Resolvidas as dificuldades de buscar recursos para a produção, com patrocínio da Petrobras, da Natura e da Ancine, o documentarista remontou a viagem em 2006, durante 40 dias, nas mesmas tribos do projeto original. Mais que atualizar as próprias memórias, descobriu um paraíso em perigo. Daí o título da nova série. Com estréia prevista para a primeira quinzena de abril na TV Cultura e na TV Nacional, Xingu , a terra ameaçada é, simultaneamente, radiografia do presente e alerta para o futuro.

Na nova viagem, Novaes, com mais de 50 anos de atuação profissional, descobriu um painel que complementa e atualiza o de 1984. Hoje, coexistem nas comunidades do Xingu costumes antigos e novas mudanças provocadas por pressões que vêm de todos os lados - acionadas por agentes externos e internos. "O Xingu é uma ilha de vegetação intocada numa área desmatada pelo plantio de soja e pela pecuária. A conseqüência dessa ocupação é a poluição das águas e o aumento da temperatura. A fauna aquática, tão importante para os índios, está prejudicada", observa o diretor. Localizado numa área de 27 mil quilômetros quadrados, o parque habitado por 5.500 índios de 14 etnias é um dos principais espaços de preservação do meio ambiente no Brasil - e reconhecido por especialistas como formidável mosaico lingüístico. "As reservas indígenas têm papel estratégico. É a melhor forma de conservar a biodiversidade de uma região", ressalta Novaes.

A essa gama de interferências externas, a vida no Xingu também soma transformações nas dinâmicas dos próprios grupos indígenas, provocadas pelo contato com a cultura branca - que começava a se manifestar ainda durante as pesquisas para Xingu , a terra mágica. "Naquela época, a influência vinha da presença da Funai, de jornalistas, antropólogos", nota. Em 2006, porém, os índios demonstraram intimidade maior com hábitos de consumo que, nos anos 1980, ainda pareciam exóticos na região. Antenas parabólicas e aparelhos de DVD enfeitam as casas, bicicletas e motos levantam poeira nas aldeias e roupas passaram a cobrir os corpos nus de antigamente. "O consumo de objetos obriga que os índios encontrem formas de ganhar dinheiro. Eles passaram a produzir mais artesanato, a sair para apresentações em cidades próximas", conta. "Essa necessidade de dinheiro provocou diferenças entre as culturas, entre os que têm mais e menos."

Distorções culturais

O maior perigo dessas distorções atiçadas pelo homem branco está na extinção de culturas. Poucos são os jovens índios que têm interesse em se formar pajé - função que exige longo processo de aprendizagem. Sem a figura do líder que entra no mundo dos espíritos, perde-se todo um leque de manifestações artísticas relacionadas ao ritual. "Existe um conflito entre os jovens e os mais velhos. Para os índios mais antigos, os novos querem viver como brancos", revela o documentarista. No momento, os costumes ainda resistem em festas, danças e diversos rituais. Se é difícil prever o desenrolar desse processo de "embranquecimento", o perigo está na perspectiva de que, ao abandonar as tradições, os índios deixariam de cumprir o papel de preservar o ambiente. "Numa época de mudanças climáticas e de esgotamento dos recursos naturais, é fundamental cuidar das reservas", diz.

Para Novaes, editor-chefe do Globo repórter entre 1977 e 1981, esse diagnóstico triste dos grupos Waurá, Kuikuro, Yawalapiti, Mentuktire e Panará revela preocupação também pessoal. Uma das maiores descobertas durante a gravação da série de 1984, e confirmada em 2006, foi a de uma rotina de simplicidade, de valorização de aspectos fundamentais da vida - como o contato do homem com a terra, a água e a vegetação. "Para mim, seria uma pena ver essa cultura se perder", observa. "O modo de vida indígena aponta para uma série de utopias humanas. Nas aldeias, não existe delegação de poder, os indivíduos são autosuficientes e a informação é aberta. Isso é um privilégio."

Com o retorno de parte da equipe do programa original (entre eles, o artista plástico Siron Franco) e a adaptação de dois índios-videastas (formados pelo projeto Vídeo nas aldeias) à função de diretores assistentes, Xingu, a terra ameaçada será exibido em cinco capítulos de 50 minutos cada, acompanhado dos 10 episódios do projeto anterior. "Quando lançamos o primeiro programa, a Manchete era um canal de pouca audiência e ele surpreendeu. Espero que isso se repita. O tema interessa cada vez mais", avalia. Novaes também pretende lançar um diário da odisséia. Prova de que essa missão ainda está longe de ter chegado ao fim.

XINGU, A TERRA AMEAÇADA
Série de televisão sobre comunidades do Parque Indígena do Xingu.
Direção:Washington Novaes. Estréia na primeira quinzena de abril (data ainda não definida), na TV Cultura e na TV Nacional.

CB, 11/103/2007, Caderno C, p. 3

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