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Paraíso ameaçado

JB, Cidade, p. A18
20 de Fev de 2005

Paraíso ameaçado
Turismo predatório, lixo e falta de saneamento: as tristezas da Ilha Grande

No início do século passado, a Ilha Grande era uma espécie de posto de fiscalização sanitária para navios que vinham da África e da Europa. Em meio a epidemias graves como gripe e febre tifóide, a tristeza dos dramas pessoais contrastava com a felicidade exultante da natureza viva da ilha. A partir da década de 20, quando foi criada a cadeia apenas para presos idosos (ou em fim de pena), o contraste com o verde se tornou maior ainda. Em 1936, o escritor Graciliano Ramos viveu um calvário naquela prisão do ainda nascente Estado Novo de Getúlio Vargas.
Em 1960, quando a ilha passou a ser associada com sua prisão de segurança máxima, o Brasil era outro. Quarenta e cinco anos depois, já sem o Presídio Candido Mendes, derrubado em 1994, as tristezas da ilha passam longe das ameaças de epidemia ou da privação da liberdade. Hoje as doenças são mais modernas: turismo predatório, despejo de esgoto em rios e lixo nas praias.

A cura foi tentada em 2002: por intermédio dos ministérios públicos estadual e federal foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por todas as instâncias governamentais: Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), governo do Estado do Rio de Janeiro (Secretaria de Meio Ambiente, Feema e IEF), Uerj e município de Angra dos Reis.

Três anos depois, a Ilha vive entre a exploração bem-sucedida do turismo, que garante renda para moradores insulares e do continente, e a ameaça de danos ambientais graves.

- A prefeitura tinha que resolver a questão do saneamento em um ano. Mas nada mudou. Se nada for feito, a Ilha Grande vai pelo mesmo caminho de Paquetá e da Ilha do Governador. Na Vila do Abraão, por exemplo, moram de 2.500 a 3 mil pessoas. Precisamos de um sistema de água, esgoto e lixo. Nossa água é de baixa qualidade. Com o verão vivemos quase sempre um colapso. O lixo é retirado por uma embarcação e navega embalado em sacos - protesta o ambientalista Alexandre Guilherme de Oliveira e Silva, 60 anos, presidente do Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig).

A Prefeitura de Angra garante que há projetos de saneamento ainda não iniciados e reconhece que o lixo da ilha é retirado por meio de aluguel de barcos. O prefeito Fernando Jordão (PSB) admite que há praias poluídas pelo esgoto mas garante que procura parcerias com a iniciativa privada. E ataca o governo federal.

- Nós queríamos o investimento proposto pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), mas não da maneira que era oferecido - diz o prefeito, referindo-se ao Programa de Turismo Inclusivo, criado pelo BNDES em parceria com o Instituto de Pesquisa Virtual de Turismo na Coppe, da UFRJ.

O projeto idealizado pelo economista Carlos Lessa, que deixou a presidência do banco em novembro, rachou a ilha ao meio. De um lado, ambientalistas que defendem o turismo inclusivo com responsabilidade social e ambiental. De outro, a Prefeitura de Angra e o subprefeito da Ilha Grande, Álvaro Alexandre de Oliveira Segneri, que em lugar do turismo proposto pelo BNDES tem uma idéia no mínimo controvertida:

- Queremos investir no turismo evangélico em Provetá, porque 80% da população é evangélica - diz, referindo-se a uma das comunidades mais interessantes da ilha. Em 1994, na Praia de Provetá, onde há uma vila de moradores, um fenômeno surpreendeu todos os evangélicos: o surgimento de moedas de diversas épocas, aparecendo esporadicamente. O episódio reforçou a fé. No carnaval, em vez de corsos, blocos ou rodas de samba, Provetá contou com a euforia contida de uma banda gospel.

O filão evangélico, portanto, não está descartado. O subprefeito vai ainda mais longe em seus projetos:

- Quero acabar com esse turismo de quem vai passar um dia apenas na Ilha Grande. Gente que não deixa nada na ilha, só lixo. É um turista nocivo, que pega a barca de manhã e vai embora quando entardece. Em 2006, Ilha Grande vai se tornar rota de transatlântico. Queremos diminuir o número de turistas que vão para a ilha. Já começamos um trabalho para acabar com as vans marítimas e fizemos um cadastramento desses saveiros que oferecem o serviço de travessia

Ilha receberá verbas

O Instituto Estadual de Florestas (IEF) conseguiu, por meio de acordos de compensação ambiental com a Termo-Rio em Duque de Caxias, garantir mais R$ 350 mil para serem usados nas unidades de conservação da Ilha Grande. O dinheiro será repassado mediante a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). De acordo com o presidente do IEF, Maurício Lôbo, mais R$ 800 mil estão à espera de liberação para o projeto que ele chama de Plano Diretor de Manejo. Por incrível que pareça, a Ilha Grande não recebia nenhuma compensação ambiental.
Pelo plano, as regiões da Ilha Grande ficarão finalmente divididas em setores transitáveis e outros intransitáveis.

Maurício revela que outro problema para a Mata Atlântica presente na Ilha Grande é a existência de casas irregulares e fora de padrão, de ex-funcionários do presídio extinto.

- Se fossem casas de madeira com o formato original, poderíamos manter do jeito que estão. O problema é que as construções são modificadas ao longo do tempo e ficam descaracterizadas - diz Maurício.

Para o advogado Rogério Rocco, especializado em meio ambiente e integrante da Organização Não-Governamental Os Verdes, o problema é a falta de planejamento.

- O turismo pode estar associado com desenvolvimento. A indústria do turismo deve caminhar junto com a preservação dos recursos naturais. Se o TAC da Ilha Grande não vem sendo cumprido, é hora do Ministério Público Federal intervir.

Vila do Abraão inchada

A publicidade nas TVs sugere que a Vila do Abraão, o mais famoso logradouro da Ilha Grande, é o paraíso na terra. Porém, até mesmo para certas agências de ecoturismo, as 40 pousadas existentes e os 10 campings deixam o local com cara de purgatório.
- Nós já não consideramos aquilo como sendo parte da Ilha Grande - diz Tatiana Gomes, dona de agência de ecoturismo em Campinas (SP).

Um dos traços de como o tempo fez mal à Ilha Grande está exatamente na Vila do Abraão. Casas à beira do riacho que forma a cachoeira (de mesmo nome que a vila) despejam esgoto in natura.

- Hoje, na cachoeira, se sente cheiro de esgoto. Não levo meus clientes lá - diz outro dono de empresa ecoturística, que prefere não se identificar.

O uso da água pelas pousadas e pelo camping diminuiu o fluxo. Aos moradores mais antigos, restam as lembranças: nos tempos em que havia um leprosário nas terras do Abraão, era comum que os dias de chuva trouxessem enchentes do rio. Hoje, a água sequer chega ao terreno onde ficava o prédio.

O lixo nas praias é outra ameaça. Os visitantes, que vão à ilha levados por agências com preocupação ambiental, são instruídos a evitar jogar fora guimbas de cigarro.

- Recolhemos lixo nas praias de Abraãozinho, Comprida, Crena, Biquinha, Julia e Preta. Vamos aos lugares aonde a coleta não chega. Usamos uma embarcação e entregamos o lixo ao barco da prefeitura - diz Rodrigo de Oliveira Chagas, supervisor do projeto Brigada Mirim Ecológica da Ilha Grande, uma ONG que tenta lutar pela preservação.

Convênio não sai do papel

Em maio de 2004, a Prefeitura de Angra dos Reis assinou um convênio com o Centro de Estudos Ambientais (CEA) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp). Com pouco mais de R$ 100 mil começariam as obras de saneamento ambiental na Vila do Abraão. Desde que o convênio foi assinado nada saiu do papel.
- No primeiro momento, nós iríamos criar uma logística para a retirada e o tratamento do lixo em Abraão. Também teríamos uma embarcação que serviria para monitorar e para promover educação ambiental. Começaríamos pela Vila, que é o porto de entrada da ilha. A idéia era expandir para outras comunidades - conta Gilson Coutinho Junior, pesquisador do CEA, da Unesp, e criador do projeto.

Freqüentando a ilha desde 2001, em julho de 2003, Gilson apresentou à Prefeitura de Angra o programa da universidade. Diferentemente do formulado pelo BNDES, este não tem tópicos tratando da questão do turismo.

- O projeto do BNDES previa saneamento, mas também falava em turismo inclusivo e em criar um camping em Lopes Mendes. Isso geraria mais lixo e a prefeitura não concordou - lembra Álvaro Alexandre de Oliveira Segneri, subprefeito de Ilha Grande.

Segundo Gilson Coutinho, mesmo não tratando especificamente sobre turismo, o programa contribui para que os visitantes não deixem de freqüentar Ilha Grande.

- Sem saneamento não há como manter os turistas. Hoje, a situação é preocupante - conta o pesquisador.

JB, 20/02/2005, Cidade, p.A18

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