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Paraíba: um rio entre a energia e a degradação

O Globo, Rio, p. 19, 22
23 de Set de 2007

Paraíba: um rio entre a energia e a degradação
Construção do Complexo Hidrelétrico de Simplício vai redesenhar a principal
bacia hidrográfica do estado

Rolland Gianotti e Tulio Brandão

Um novo caminho se desenha para a Bacia do Paraíba do Sul, responsável pelo abastecimento de 14,3 milhões de pessoas, entre as quais 8,7 milhões na Região Metropolitana. Por meio de um pouco usual sistema de canais, túneis, reservatórios e diques, o rio está sendo preparado para ter mais da metade de seu volume d'água desviada do curso original. O projeto de R$ 1,2 bilhão, tocado por Furnas Centrais Elétricas, é a molamestra do Complexo Hidrelétrico de Simplício, que, a partir de 2011, vai gerar 333,7 megawatts, equivalentes à metade da produção da Usina Nuclear de Angra 1. Simplício contribuirá com 5% da produção de energia do estado. No entanto, a corrida contra o colapso energético - principal argumento para o empreendimento - terá interferência direta na vida de 8.700 habitantes da região e um impacto ambiental no Médio Paraíba.

Trechos de rodovia e ferrovia serão relocados
A mudança na geografia do estado é certa. Para fazer funcionar as três usinas do Sistema Simplício, uma grande barragem e pequenos reservatórios ocuparão uma área de 11,8 quilômetros quadrados, fora a calha do próprio rio. O reservatório maior, entre os municípios de Sapucaia, Três Rios e Chiador (MG), começará a se formar em 2010, terá 29 quilômetros de comprimento e fará com que nove quilômetros da BR-393 e um trecho de estrada de ferro sejam relocados. A inundação fará com que 1.100 moradores de lugarejos tenham que deixar suas casas. A água vai encobrir ainda duas escolas, posto de gasolina, duas olarias, sítios e vegetação de Mata Atlântica.

As perdas e ganhos que surgirão no rastro de Simplício já criam polêmica. Há moradores e técnicos a favor e contra a obra. Para Marcio Porto, assistente da Superintendência de Empreendimentos de Geração de Furnas, os estragos serão compensados e, apesar dos impactos negativos da terceira maior hidrelétrica em construção no país - superada pelas de Estreito (TO) e Chapecó (SC) -,o sistema, já a partir da construção, terá mais prós do que contras.

- Simplício é extremamente importante para a matriz energética nacional. E, com a obra, a vida da população das áreas que recebem o investimento só tende a melhorar - diz Marcio, que destaca 38 ações de compensação ambiental, como criação de estações de tratamento de esgoto para as cidades atingidas e reflorestamento.
- Se a vida da população vai melhorar, isso depende do ângulo de que se olha. Mas não há dúvida de que Simplício não resolverá nem de longe a questão da crise energética - rebate Alexandre Szklo, professor de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ.

De fato, a vida mudará para quem mora na região que em 2010 estará submersa e também para aqueles que escaparão do alagamento. Do reservatório maior, explica o engenheiro Luiz Antônio Buonomo de Pinho, responsável pela obra, o Paraíba será desviado para a esquerda, avançando três quilômetros por terras mineiras. A partir daí, o volume d'água utilizado na geração de energia só voltará ao leito normal em Simplício (Além Paraíba), 25 quilômetros adiante.

Em Sapucaia, Paraíba deixará de ser caudaloso
Entre os dois pontos, atualmente passam em média 260 metros cúbicos de água por segundo. Com o desvio, restarão só 90 metros cúbicos, chegando a 71 metros cúbicos em época de seca. A vista que os habitantes de Sapucaia têm do rio caudaloso deixará de existir.

- De que serve uma vista dessa sem dinheiro no bolso? - questiona o motorista José Avilino Alvarenga, de 59 anos, que, após dois anos de desemprego, conseguiu uma vaga na terraplanagem da obra, com salário mensal de R$ 830.
Em Bairro 21, trecho de Três Rios que também será alagado, o produtor de flores Ademir Cardoso de Souza, de 60 anos, estava indignado com a escassez de informação sobre a obra. Sem saber o que fazer, ele parou de investir em seu negócio.

- Funcionários de Furnas entraram em minha propriedade e, com o argumento de que a estrada passaria por lá, roçaram o terreno todo. De lá para cá, surgiu um boato de que a estrada não passaria mais por lá. Desde então, não planto mais nada. Só colho, porque não sei se vale o investimento.

Há outros produtores rurais parados, porque não sabem o que vai acontecer. Quem vai pagar o preço da desinformação?
Furnas explica que todas as famílias do local serão inseridas no programa de compensação fundiária. Segundo a empresa, R$ 200 milhões serão gastos em indenizações e assentamentos.
Não bastassem os problemas ambientais e sociais do empreendimento, o Tribunal de Contas da União (TCU) detectou, semana passada, indícios de superfaturamento e contratações por dispensa de licitação. Simplício é uma das quatro grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Furnas afirmou já ter enviado todas as informações ao TCU.

Medo e esperança dividem os desapropriados
Apesar da desconfiança, alguns já sonham com tempos melhores depois do pagamento da indenização

Rolland Gianotti e Tulio Brandão

A inundação quase bíblica que se anuncia nos vilarejos Bairro 21 e Grama, pertencentes a Três Rios, no interior do estado, é tratada como um "mal sem remédio" pelos moradores da região. A matriarca Lourdes Esteves, de 77 anos, nasceu, foi criada e até hoje mora com seis filhos e dez netos na Grama, terra condenada a submergir depois da construção da Usina de Simplício. De aparência frágil, ela tenta se conformar e abrir mão de sua história:
- Não adianta reclamar, mas acho muito ruim. Minha vida é aqui, onde nasci, me casei e criei os filhos. Nunca morei em outra terra. Não sei se vou conseguir mudar para outro lugar - disse ela, na varanda de uma das casas da família.

Escola fechada sofre com furtos
A metros dali, dois de seus filhos - Manuel Francisco, de 53 anos, e Paulo Luiz, de 55 peneiravam o feijão, colhido na própria roça, para vendê-lo em feiras de cidades vizinhas. Por ano, colhem 1,5 tonelada do grão, fora as outras culturas, como de quiabo e aipim. Paulo Luiz ainda não ouviu propostas de Furnas para comprar as terras, apenas uma garantia que o deixou mais tranqüilo.

Eles prometeram que ninguém vai ficar pior do que está. Vamos ver, né? Hoje, temos nossa terra e nossa vida por aqui - afirmou Paulo Luiz, com a peneira na mão.
No bairro 21, na altura do antigo Km 21 da BR-393, os moradores já sentem os primeiros impactos da futura inundação. A Escola Municipal Santa Terezinha foi fechada pela prefeitura de Três Rios e,desde então, sofre com furtos.

A capela que leva o nome da mesma santa ainda serve como local de oração da comunidade, mas também vem sendo saqueada. Elizabeth Bravo, de 45 anos, sofre ao imaginar que a casa em que foi batizada estará no fundo de um lago.

Ninguém mais vem para cá. Tem gente entrando em depressão por conta desse lago.

Minha filha Victoria teve que sair da escola perto de casa e, agora, fala que não quer sair daqui. É triste, porque são pessoas que se conhecem e, agora, com esse negócio de usina, vai cada um para um lado. E é uma terra boa, com água da mina. Agora, vamos ter que tomar água com cloro - lamentou ela.

Pai de Elizabeth, o aposentado José da Rocha Cabral é o patriarca de uma enorme família com integrantes espalhados por várias casas da área a ser inundada. Assim como seus parentes, ele mora de aluguel numa pequena casa erguida no alto de um barranco com o próprio esforço:
- Acho que a água não chega à minha casa. Para pegar, só com muita chuva. Mas, assim mesmo, já estamos "suspensos" daqui. Dizem que onde não tiver água vão transformar numa floresta. Até hoje ninguém me disse se eu vou ganhar alguma coisa com a saída. Levantei a casa levando a pedra do rio no meu lombo.Mas não tem jeito, não é?

Em Sapucaia, faturamento de restaurante aumentou 50%
No Bairro 21, quase todas as terras pertencem aos herdeiros do produtor rural Manoel Soares Gonçalves, conhecido como Neném Leite. No trecho próximo ao maior túnel de água da usina, no distrito de Sapucaia de Minas, em Chiador (MG), a moradora de uma pequena casa isolada num vale que será inundado pelas águas do Paraíba se disse perdida:
- O que vai ser de nós ninguém sabe - diz Rosângela Soares Vitor, que divide a casa de pau-a-pique com o marido, dois filhos e sete cães e ainda não sabe se será indenizada.

Mas há quem esteja contente com as transformações da região, como o gerente do posto de gasolina do Bairro 21, Renan Langoni. O negócio, que estava parado há anos, foi reaberto há apenas seis meses.

- Acho que vai ser vantajoso para todo mundo. Arrendei isso aqui recentemente. O posto vai funcionar até quando puder. Depois, damos um jeito.

Em Sapucaia, no Restaurante da Nanci, o movimento aumentou 50%, e quatro empregos de garçom e na cozinha foram criados.
- Se Deus quiser, isso é só o começo - comemorou Paula Magalhães de Almeida, filha da dona do restaurante.
De acordo com Furnas, 1.200 homens trabalham na construção do Sistema Simplício. Em 2008, ano de pico da obra, serão 4 mil operários.

Como será o empreendimento

O Complexo Hidrelétrico de Simplício, de Furnas, está sendo construído no curso médio do Rio Paraíba do Sul, da confluência dos rios Piabanha e Paraibuna até Além Paraíba (MG). A energia será gerada em duas usinas (Anta e Simplício) através de um sistema de reservatórios, diques, túneis e canais, aproveitando o desnível natural de 115 metros do Paraíba

Túnel 3
Furnas calcula que 12% de todo o empreendimento já estejam prontos.
A principal frente de trabalho, neste momento, é a abertura de um túnel de seis quilômetros em rocha entre os reservatórios de Antonina e Calçado, por onde passará a água. O diâmetro é de 15 metros

Complexo hidrelétrico de simplício
Capacidade 333,7 MW, metade da energia gerada por Angra I
Municípios Três Rios e Sapucaia, no Estado do Rio, e Chiador e Além Paraíba, em Minas Gerais

Impactos imediatos da obra
Trecho do rio que terá a vazão reduzida: 25km, a partir da barragem de Anta (Sapucaia)
Área inundada: 11,8 km2, fora a calha do rio
Total de famílias remanejadas: 416
Propriedades desapropriadas: 237 unidades
Estrada relocada: 9km da BR-393
Ferrovia relocada: 3km
Cerâmicas/olarias desativadas: 2
Vegetação de Mata Atlântica inundada: 3 km2
Durante as obras: piora da qualidade do ar, da água, do solo e o aumento do nível de ruído

O Globo, 23/09/2007, Rio, p. 19, 22

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