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Para não perder o futuro

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Washington Novaes
07 de Mai de 2004

É muito preocupante que se esteja expandindo em parte do mundo empresarial, da comunicação e até mesmo em setores do governo federal a visão de que a chamada questão ambiental, assim como a demarcação de terras indígenas, constituem hoje obstáculos ao desenvolvimento econômico e à geração de empregos no País. Para essa visão têm contribuído até visões apressadas do presidente da República, que, segundo os jornais, reclama com freqüência da "lentidão" do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. E para agravar o quadro se esboça um conflito entre as áreas federal e dos Estados, nessa matéria.

Além da demarcação de terras indígenas - um direito a eles assegurado pela Constituição em vigor, e que é preciso respeitar, além de ser caminho muito eficiente para a conservação de áreas relevantes para a biodiversidade -, a questão centra-se principalmente no licenciamento de hidrelétricas, gasodutos, pavimentação de rodovias e autorizações para desmatamento de áreas, de modo a permitir o avanço da fronteira agropecuária, principalmente na Amazônia e em áreas de transição para o cerrado. O próprio ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior tem afirmado (Estado, 17/3) que as "rígidas posições" do Ministério do Meio Ambiente são "uma pedra no sapato" em quase todas as discussões.

É curioso que um ministério tão desprovido de recursos como o do Meio Ambiente seja apontado como tão poderoso. Ele continua a ter - como no governo anterior - menos de 1% das dotações orçamentárias. De 2003 para 2004, viu-as crescer apenas 9% (contra 27,8% na Agricultura ou 50% no Planejamento). No último corte nelas promovido, perdeu 15% (R$ 71,8 milhões) do pouco que tinha. O Ibama, órgão apontado como emperrador por excelência nos processos de licenciamento, até poucas semanas atrás só dispunha de sete servidores em seu quadro técnico e tinha de recorrer a consultores externos (agora tem 70 e vai fazer concurso para 150 analistas). Das multas que aplicou entre 1995 e 2004 só recebeu efetivamente 2%, ou R$ 62milhões de R$ 2,9 bilhões.

Pois é com essa estrutura que cabe ao Ibama e ao ministério examinar complexos projetos nas áreas mencionadas. E licenciá- los ou não. Sabendo, como sabem os que já transitaram por essa área, que os chamados estudos de impacto ambiental quase invariavelmente só são feitos pelos empreendedores - quando são - depois de concebidos os projetos técnicos, freqüentemente sem nenhuma preocupação com os impactos sociais e ambientais. Por isso, também quase invariavelmente incluem apenas algumas "medidas mitigadoras" que em nada ou quase nada alteram a questão.

É preciso olhar esse quadro com outros olhos. Ainda na semana passada, dirigindo- se a mais de 80 ministros do Meio Ambiente, o secretário- geral da ONU, Kofi Annan, afirmou que conflitos como o do Iraque têm impedido o mundo de enxergar com clareza as maiores e mais reais ameaças que pesam sobre a humanidade: mudanças climáticas e insustentabilidade dos atuais padrões de produção e consumo no mundo, além da capacidade de suporte e reposição do planeta. Poucas semanas antes, numa conferência em Nova York, o mais respeitado dos estudiosos da biodiversidade - Edward Wilson, professor em Harvard - lembrara que, "num mundo cada vez mais interdependente, o futuro do Brasil, que tem o maior número de espécies vivas do planeta, é crítico para todo o mundo".

Se é assim, cabe perguntar: e a que serve fundamentalmente grande parte dos projetos que têm encontrado dificuldade de licenciamento ambiental? Os projetos de megahidrelétricas na Amazônia não servem essencialmente à expansão da exportação de eletrointensivos destinados aos países industrializados que não querem produzi-los por causa de seus altíssimos custos ambientais, sociais e energéticos? Eles não custaram ao Tesouro Nacional subsídios da ordem de US$ 2 bilhões nas duas últimas décadas, recursos que foram obtidos sobrecarregando a conta dos consumidores residenciais? E não se vai ampliar esse modelo?

Rodovias, hidrovias e ampliação do desmatamento principalmente na Amazônia não servem ao mesmo modelo que coloca ênfase na exportação de commodities, principalmente soja e carne - enfrentando perdas de valor real nas séries históricas e concorrendo com os altíssimos subsídios que ajudam os países industrializados a controlar da forma que lhes convém os preços no mercado internacional? Não se trata ainda de um modelo com altos custos ambientais e sociais não contabilizados - perda da biodiversidade, alto nível de erosão (e custos para reposição da fertilidade por insumos químicos), degradação das bacias hidrográficas pelo carreamento desses sedimentos e deslocamento de dezenas de milhões de pessoas para as zonas urbanas (cerca de 40 milhões em 40 anos; em uma década a perda líquida de postos de trabalho nas áreas do agribusiness foi de 3 milhões), contribuindo para a degradação urbana e o processo acelerado de perda da governabilidade das metrópoles?

É nesse modelo que se pretende permanecer e ainda aprofundar? Contribuindo para agravar a insustentabilidade dos padrões mundiais a que referiu Kofi Annan? Esquecendo que o Brasil - por sua dimensão territorial, sua disponibilidade de recursos hídricos, a maior diversidade biológica do planeta, potencial para matriz energética absolutamente limpa - é provavelmente o país com maior possibilidade de avançar em direção a ummodelo alternativo, adequado e muito mais remunerador no seu comércio, se tiver uma nova estratégia que leve em consideração essas questões?

É preciso dar força às tentativas do Ministério do Meio Ambiente de discutir esses problemas com as áreas de governo que têm interface com as questões e com os setores empresariais envolvidos. Da mesma forma, é preciso que ele desarme com urgência os conflitos que levaram os órgãos estaduais de meio ambiente a manifestar, na Carta de Fernando de Noronha (6/3), seu "profundo desapontamento" com vários procedimentos do ministério, que julgam centralizadores e descabidos, além da perda de força do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Em hora tão aguda, tal confronto é indesejável e perigoso.

São mais que justas as preocupações com o desenvolvimento econômico e a geração de empregos. Mas o caminho não está na perda do futuro.

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