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Papo de índio: O protagonismo indígena na gestão de projetos

Página 20-Rio Branco-AC
19 de Mar de 2006

Uma das peculiaridades das sociedades humanas é a sua capacidade de incorporar e ressignificar elementos culturais necessários para a implementação do seu "Plano de Vida" (aspirações coletivas de um determinado povo ou comunidade).

No caso das sociedades indígenas, os recursos externos podem ser apropriados como ferramentas importantes para o seu desenvolvimento ou, inversamente, podem interferir de maneira negativa nas suas relações sociais, econômicas e culturais. O que irá definir se um recurso é adequado ou não aos interesses comunitários será a possibilidade ou a impossibilidade da comunidade decidir sobre a natureza e os objetivos das ações propostas, sobre o ingresso, a administração e a aplicação dos recursos, sobre as estratégias de participação comunitária e sobre o processo de formação dos atores nele envolvidos.

Assim circunscritos, os projetos externos adequados serão aqueles que trouxerem maior controle comunitário sobre si e sobre outros elementos culturais apropriados nas relações intersocietárias.

Esse exercício do controle coletivo qualifica as sociedades indígenas e pode ser um novo instrumento de luta por maior autonomia, liberdade e desenvolvimento.

Entretanto, a história recente mostra que o poder público pouco tem feito para ampliar a autonomia das comunidades indígenas e que, ao contrário, vetou-lhes sistematicamente a possibilidade de exercer o controle sobre os seus projetos.

Um dos marcos dessa relação restritiva remonta à primeira metade do século passado, ao período de vigência do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e ao início da atuação da FUNAI. Até a década de 1960, quase inexistiam projetos voltados para as comunidades indígenas e, quando propostos, não contavam com a sua participação. Os projetos eram apenas localizados sobre as terras indígenas e o seu objetivo explicito era o de integrar os povos indígenas à sociedade nacional.

Nos anos 1970 e 80, no bojo da expansão desenvolvimentista do Estado brasileiro e ainda sob a égide da ditadura militar, deu-se início a um conjunto de iniciativas oficiais voltadas para a integração nacional. Nesses programas, as ações mitigatórias para as sociedades indígenas tiveram vários objetivos: justificar a captação de empréstimos externos; reduzir os conflitos com as frentes de ocupação; amenizar os impactos decorrentes da redução dos territórios indígenas. Neste período houve uma inclusão compulsória dos indígenas em atividades periféricas dos projetos. Os dois objetivos principais dos projetos foram a captação de recursos para financiar o órgão indigenista oficial e a mediação dos conflitos entre os índios e as frentes de ocupação.

Nas décadas de 1980 e 90, no contexto geral da democratização do país e das lutas das minorias por seus direitos, propôs-se a inclusão solidária das sociedades indígenas no âmbito das políticas públicas voltadas para as chamadas "populações desassistidas". Tais iniciativas de caráter assistencial contemplavam algumas formas de participação indígena e se propunham a "resgatar os valores étnicos, culturais e de cidadania". O modelo de financiamento e de gestão dos chamados projetos solidários representou um grande avanço em relação aos períodos anteriores, porém manteve a perspectiva tradicional de ser concebido, elaborado e avaliado segundo os critérios dos atores externos. Eram projetos que contavam apenas com a participação indígena.

Nos tempos atuais começa a frutificar no âmbito do movimento indígena e das instituições apoiadoras uma nova concepção de projetos. Eles passam a ser vistos como partes integrantes do Plano de Vida de um povo e/ou de uma comunidade. A participação indígena é assegurada em todas as suas etapas, desde a definição das prioridades até a sua localização, elaboração, busca de financiadores, planejamento e administração dos recursos, acompanhamento das ações, avaliação, registros, divulgação...

Nessa nova perspectiva, os projetos se ancoram no protagonismo indígena e na relação dialógica entre todos os atores sociais e as todas as esferas do poder público. Tratam-se, portanto, de projetos indígenas.

A incorporação da participação e da responsabilização compartilhada tomou força na medida em que se percebeu que o protagonismo indígena no âmbito dos projetos só será possível se forem assegurados os espaços estratégicos para a sua consolidação, e dentre eles, o domínio dos saberes relativos a sua gestão (entendida numa perspectiva bem ampla).

Foi com o propósito de consolidar esse espaço estratégico que lideranças do movimento indígena, no âmbito do PDPI (Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas), vinculado à Secretaria de Coordenação da Amazônia (SCA), do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e agências da cooperação internacional, decidiram implementar um curso voltado especificamente para a "Formação de Gestores de Projetos Indígenas".

O Curso oferecido pelo PDPI visava criar uma oportunidade concreta para a consolidação da autonomia e do protagonismo indígena, possibilitando o exercício do controle sobre os recursos estratégicos disponibilizados em seu meio societário.

O curso de "Gestores de Projetos Indígenas" do PDPI

É oportuno pontuar questões que nortearam a realização deste curso:

a) os gestores de projetos indígenas são atores sociais cuja formação e ação devem contribuir para a concretização do "Plano de Vida" do seu povo ou comunidade - entendido como um conjunto de aspirações coletivas (qualidade de vida, garantia territorial, fortalecimento cultural etc.);

b) os projetos são entendidos como ferramentas estratégicas e como tal devem orientar-se por valores éticos e políticos (respeito à diferença e direito a autodeterminação dos povos);

c) os gestores devem priorizar o modo de ação participativo, com envolvimento efetivo das comunidades em todas as fases de desenvolvimento de um projeto; e

d) os gestores indígenas precisam aprimorar a capacidade de articular as atividades relacionadas aos projetos com as demais atividades comunitárias, transformando-as ações articuladas com o cotidiano comunitário.

Trata-se, portanto, de uma iniciativa que respeita as formas tradicionais de organização dos povos indígenas e em seus modos de produção e transmissão de conhecimentos e, ao mesmo tempo, os capacita para lidar com os impactos causados pela ocupação da Amazônia e pelas relações interculturais.

Para atender a esses princípios, o curso propunha-se a desenvolver os seguintes conhecimentos e habilidades prioritárias: a) aprofundar a análise e a capacidade crítica acerca da realidade histórica e atual das sociedades indígenas, suas estratégias e demandas; b) diagnosticar os problemas, potencialidades e prioridades relacionadas a projetos e; c) capacitar os gestores para a mobilização e assessoramento das comunidades e organizações indígenas.

No enfrentamento destas questões, o curso deixou de ser um instrumento etnocêntrico ou "integracionista", e atendeu a uma necessidade urgente e inadiável de formar gestores indígenas para projetos indígenas, de maneira a romper com a cadeia de dependências caracterizada pela falta de controle sobre o ingresso de recursos externos em seus sistemas culturais.

De igual forma, a existência de um quadro técnico habilitado a desenvolver todas as etapas de um projeto, todo o seu "Ciclo de Vida", enseja a melhoria da qualidade dos projetos, superando a maneira artesanal com que muitos deles foram elaborados até aqui e propiciando a escolha de projetos do seu interesse (como alternativa aos "pacotes" impostos que suplantaram a diversidade e enfraqueceram a autodeterminação).

Os possíveis riscos advindos do papel social do gestor de projetos, envolvem concentração de poder de decisão; uma eventual falta de respaldo comunitário na negociação de parcerias; riscos de desagregação comunitária; privilégios pessoais ou institucionais; e a tendência ao "projetismo", isto é, a busca imediatista por recursos externos.

Proposta político-pedagógica do curso

O curso foi estruturado em módulos seqüenciais que contemplam conteúdos teóricos e práticos, ações individuais e coletivas, além de envolvimento institucional e interinstitucional que possibilitassem a sua consecução.

Ainda do ponto de vista organizacional, o curso teve a seguinte configuração: a) foi parte integrante do "Componente Fortalecimento Institucional" do PDPI. A execução, coordenação e acompanhamento do curso estiveram a cargo do PDPI; b) teve a participação de 30 cursistas indicados pelas organizações indígenas e selecionados de acordo com critérios técnicos (formação escolar, familiaridade com projetos); c) foi concebido como um curso de aperfeiçoamento, certificado pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT); f) Foi organizado em cinco módulos ou etapas de estudos presenciais ("Módulos de Concentração"), com duração média de 120 horas cada (cerca de 18 dias), e em cinco períodos de estudos dirigidos ("Módulos de Dispersão"), com duração média de 60 dias, realizados nos locais de origem dos cursistas, entre uma etapa intensiva e outra; e) teve uma carga horária total de 1.500 horas, distribuídas em estudos presenciais (5 etapas) e estudos e atividades de campo (4 etapas); e f) contou ao final com um seminário integrador com a presença de vários atores (governo federal, ONGs, cooperação internacional) que apoiam políticas, programas e projetos direcionados aos povos indígenas e com a apresentação dos trabalhos de conclusão de curso ("dossiês").

O curso durou 12 meses (tendo sido concluído em junho de 2005) e contou com os seguintes temas centrais (módulos): i) realidade indígena brasileira; ii) diagnóstico geral de projetos; iii) formulação, apresentação e financiamento de projetos; iv) implantação, acompanhamento e avaliação de projetos; e v) lições aprendidas e perspectivas dos gestores de projetos.

O conceito de "ciclo de vida de projetos", que abrangeu todas as etapas e atividades relacionadas à gestão de projetos, foi crucial para a abordagem desses temas e encadeamento de seus conteúdos. Por meio deste conceito tornou-se mais fácil a tarefa de relacionar as várias etapas de gestão de projetos, notadamente as suas três dimensões cruciais: diagnóstico participativo; planejamento, elaboração e execução; e monitoria e avaliação.

Os conteúdos desenvolvidos no primeiro módulo permitiram aos cursistas um "choque" (no sentido positivo) de informações e de reflexões acerca da realidade indígena brasileira e seus pontos centrais: histórico do contato, direitos indígenas, desafios do movimento indígena, políticas públicas etc.

No segundo módulo, a principal tarefa foi a de desenvolver teorias e práticas relacionadas à etapa de diagnóstico geral para fins de elaboração e gestão de projetos. Foi dada especial ênfase à participação comunitária na realização dessa etapa dos projetos. As técnicas do Diagnóstico Rural Participativo (DRP) foram apresentadas de forma objetiva e acompanhadas de exercícios práticos.

O desenvolvimento dos conteúdos do terceiro módulo deu-se através da análise dos elementos gerais de projetos (como matriz de planejamento), da utilização de formulários (com destaque para o formulário eletrônico do PDPI), de critérios de análise de projetos etc. Nesse módulo, os cursistas utilizaram computadores para elaborar projetos com o formulário eletrônico do PDPI.

Para o módulo de dispersão foi desenvolvido um roteiro de elaboração de pré-projetos de caráter concorrencial (cartas de intenção), atividades de campo orientadas por consultores e elaboração de projetos individuais em formulário eletrônico (ou manual) que permitiram um grande salto de qualidade no domínio das técnicas de elaboração e gestão de projetos.

O quarto módulo foi dedicado ao "ciclo de vida de projetos" e o seu foco central foi o monitoramento e avaliação de projetos, tanto em termos físico-técnicos, quanto em termos financeiros.

No quinto e último módulo do curso, os consultores procederam a uma avaliação das atividades e resultados alcançados no módulo de dispersão anterior e a uma re-memorização dos temas e conteúdos aprendidos, através do conceito de "ciclo de vida de projetos" e de oficinas de gestão de projetos voltadas para suprir lacunas de formação.

Após o reforço referente às técnicas de gestão foi realizada uma oficina de políticas públicas e outra de comunicação. Dando seqüência aos trabalhos de "amarração dos conteúdos" foi realizado um seminário integrador, cuja programação contou com a participação do movimento indígena, do governo federal, das agências de cooperação técnica e financeira internacionais e de entidades do terceiro setor.

Povos indígenas do Acre participarão de capacitação

Os povos indígenas do Estado do Acre terão a oportunidade de participar da implantação de um processo de capacitação indígena diferenciada, que irá contemplar temas e conteúdos associados às suas demandas e de suas organizações.

A proposta, desencadeada pela Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas (SEPI) e demais secretarias envolvidas com a implementação de políticas e programas direcionados aos povos indígenas, em parceria com ONGs e demais parceiros nos níveis estadual e federal (incluindo o PDPI), terá início a partir deste ano e terá os seguintes componentes: a) programa de formação de gestores de projetos indígenas; b) programa de formação de gestores de organizações indígenas; c) programa de formação de gestores indígenas de atividades econômicas sustentáveis; e d) implementação de rede de intercâmbio de formação indígena e consolidação de programa de formação Indígena diferenciada para os povos indígenas no Acre.

O primeiro componente a ser implantado será o de formação de gestores de projetos indígenas, cujo conteúdo e temas serão adaptados à realidade dos povos indígenas no estado.

Por Alexandre Goulart de Andrade * & Darci Secchi **

* Alexandre Goulart de Andrade, mestre em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente (UNICAMP), com dissertação sobre a produção de "couro vegetal" na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Em 2004/05, foi responsável pela coordenação do "Curso de Gestores de Projetos Indígenas", no âmbito do PDPI. Trabalha atualmente na Gerência de Gabinete da SEPI.

* * Darci Secchi, doutor em Educação. Professor Titular da Universidade Federal do Mato Grosso e pioneiro da formação de professores bilíngües, através do Projeto TUCUM, com professores indígenas do Estado de Mato Grosso.

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