VOLTAR

Papo de índio - Invasão de madeireiros peruanos no alto rio Envira: um chamado à atenção

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Marcelo Piedrafita Iglesias
19 de Fev de 2006

Por duas vezes na última semana, o chefe da Frente de Proteção Etno-Ambiental Rio Envira, e atual diretor substituto da Coordenação Geral de Índios Isolados, da Funai, José Carlos dos Reis Meirelles, alertou sobre a eminente movimentação de madeireiros peruanos nas cabeceiras do rio Envira, nas proximidades da fronteira Brasil-Peru. Notícias a este respeito, com depoimentos de Meirelles, foram publicadas nos sites da Funai, a 9 de fevereiro, e da Radiobras, quatro dias depois, e estão abaixo reproduzidas.

No lado acreano da fronteira, os primeiros indícios dessa atividade foram detectados por funcionários da Frente da Funai ainda em início de novembro do ano passado, e se repetiram nos meses seguintes. O que era uma forte suspeita, transformou-se, na primeira semana de fevereiro, em constatação segura, com o aparecimento, após um repiquete causado por fortes chuvas, de quantidade significativa de pranchas de mogno flutuando no rio Envira. O fato de essas pranchas estarem marcadas por seus "proprietários" indicaria, segundo Meirelles, a existência de mais de uma turma de madeireiros atuando naquela região, por isso a necessidade de identificar as pranchas antes mesmo do seu definitivo escoamento.

Inicialmente, deve destacar-se a ilegalidade dessa atividade madeireira, realizada em território tradicional dos indígenas "em isolamento voluntário" Mashco Piro, localizado no Parque Nacional Alto Purus e na Reserva Territorial Mascho Piro, incorporada a esse Parque desde novembro de 2004.

As atividades dos madeireiros nessa região não são recentes. Desde final dos anos 1990, há dados confirmados sobre a crescente penetração de madeireiros nas Reservas Territoriales Murunahua e Mashco Piro, com trágicas conseqüências para os indígenas "em isolamento voluntário" que ali habitam: "correrias", deslocamentos forçados, epidemias, conflitos interétnicos, cativeiro por dívidas e escravidão. Estes processos foram novamente destacados no estudo "Trabalho forçado na extração de madeira na Amazônia Peruana", publicado, em março de 2005, pelo Programa de Ação Especial para Combate ao Trabalho Forçado, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Um outro estudo, "Uma investigação da extração ilegal de madeira no Parque Nacional Alto Purus e arredores", divulgado pela Parks Watch, em janeiro de 2005, traz conclusões igualmente esclarecedoras. Dentre as principais características dessa exploração, o estudo destaca: a) o desrespeito à proibição, por 10 anos, estabelecida pela Lei Florestal e de Fauna, de 2000, da extração de mogno (caoba) e cedro; b) práticas de "esquentar" madeira retirada no Parque como se fosse oriunda de áreas de concessão florestal outorgadas pelo governo peruano, a oeste da "área natural protegida"; c) a ausência de qualquer fiscalização dos limites do Parque, bem como dos carregamentos de mogno dali extraídos, escoados por rio para a cidade de Sepahua, e daí para Pucallpa; d) a falta de fiscalização sobre as atividades dos madeireiros nos territórios das "comunidades nativas", reconhecidos pelo governo nas adjacências do Parque, feitas, ao contrário do previsto nas licenças obtidas por algumas dessas comunidades, sem planos de manejo, com grandes impactos ambientais, e implicando, muitas vezes, em relações de aviamento e exploração econômica; e) a carência de qualquer controle, em Puerto Esperanza, capital da Província de Purus, sobre a saída de madeira, escoada em aviões (inclusive do Exército) para Pucallpa; e f) a invasão sistemática dos territórios dos índios "isolados" dentro da Reserva Territorial Mashco Piro e do Parque, gerando encontros cada vez mais freqüentes com os madeireiros, enfrentamentos violentos e a disseminação de doenças (Parks Watch, 2005: 8-9).

Do lado brasileiro, no Estado do Acre, imensos prejuízos socioambientais têm sido causados, nos últimos anos, por seguidas invasões de madeireiros peruanos nas Terras Indígenas Ashaninka do Rio Amônia e Mamoadate, bem como no Parque Nacional da Serra do Divisor, situados na fronteira internacional. Por outro lado, três novos conjuntos de malocas de índios "isolados", ao que tudo indica, povos Pano, foram mapeados em diferentes afluentes do rio Envira, em dois sobrevôos realizados, no biênio 2003-04, por grupos de trabalho da Funai que, com o apoio de Meirelles, faziam estudos para a identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Riozinho do Alto Envira (antes denominada TI Xinane). Esse considerável aumento dos locais de habitação permanente e da população de índios "isolados" no rio Envira, em território acreano, é conseqüência direta da exploração de mogno e outras madeiras nobres do lado peruano e da atuação de missionários norte-americanos, da South American Mission (SAM), no rio Curanja, afluente do alto rio Purus.

Para o povo do Acre, e principalmente para os povos indígenas que aqui vivem, deve ser uma profunda satisfação poder receber a esses grupos de índios "isolados", portadores de culturas e formas de vida únicas no planeta. Por isso, esforços devem continuar a ser feitos, pelos governos federal e estadual, para garantir-lhes proteção. Essa, aliás, tem sido a tônica das ações de ambos os governos nas últimas três décadas, quando pouco mais de dois milhões de hectares, distribuídos em nove terras indígenas e um parque estadual, foram criados ao longo da fronteira internacional para abrigar diferentes povos "isolados". Faz vinte anos, na foz do igarapé Xinane, na atual TI Kampa e Isolados do Rio Envira, está localizada a Frente de Proteção Etno-Ambiental Rio Envira (denominação que assumiu em 2000), sempre coordenada por Meirelles. Ano passado, outro posto de vigilância, jurisdicionado à Frente, foi instalado na foz do rio D'Ouro, na TI Alto Tarauacá, para evitar as constantes invasões antes realizadas por caçadores dos seringais dos arredores e da sede do Município de Jordão.

É preocupante, todavia, constatar que a entrada desses povos "isolados" em terras indígenas no Acre é, cada vez mais, resultado de processos genocidas levados a cabo por madeireiros e da sistemática omissão das autoridades indigenistas, ambientais e policiais do país vizinho. E, ainda, que tanto o estabelecimento permanente como os deslocamentos sazonais desses povos em terras indígenas habitadas pelos Kaxinawá, Ashaninka, Jaminawa e Manchineri, e por outros grupos de índios "isolados", Pano, há pouco anos chegados do Peru, podem resultar em novos enfrentamentos e mortes.

Os atuais alertas de Meirelles, portanto, chegam em momento oportuno. Está novamente em curso a atividade madeireira no lado peruano da fronteira, agora no alto rio Envira, já próxima ao território acreano. Durante toda a estação chuvosa, os madeireiros têm invadido territórios tradicionais de índios "isolados", distribuídos nas Reservas Territoriais Mashco Piro e Murunahua, e no Parque Nacional Alto Purus, uma "área natural protegida", para explorar mogno e transformá-lo em pranchas, atividades ilícitas e crimes ambientais previstos na legislação peruana.

Estará essa madeira destinada a Puerto Esperanza, na Província do Purus, ou seguirá pelos rios Juruá e Ucayali, até chegar, em qualquer um dos dois casos, a Pucallpa, capital do Departamento do Ucayali e principal centro de beneficiamento e exportação de mogno dessa região?

Um sobrevôo nas cabeceiras do Envira, com a participação de representantes dos governos brasileiro e peruano, é um primeiro passo necessário, para constatar a óbvia atuação dos madeireiros, mapear com exatidão o lugar da retirada de madeira e identificar os autores e seus patrões. Para tal, Meirelles espera contar com apoio dos governos estadual e federal, e conseguir o respaldo e a mobilização do governo peruano.

Outras medidas, todavia, são necessárias do lado peruano. A proteção dos indígenas "isolados" e de seus territórios, o efetivo controle sobre as reservas territoriais e o parque nacional, o enquadramento legal das atividades de extração feitas em áreas de concessão florestal e nas florestas das "comunidades nativas", bem como a definitiva interrupção das ações ilegais dos madeireiros na vasta região de fronteira entre Brasil e Peru são prioridades urgentes, e atribuições que cabem ao governo do Peru.

Meirelles também tem procurado chamar a atenção, e esta não é a primeira vez que o faz nos últimos anos, para outro aspecto igualmente crucial: a necessidade de uma atuação articulada entre os governos de ambos os países, para assegurar a integridade dos povos "isolados", seus territórios, bem como a biodiversidade existente nessa rica região fronteiriça, onde nascem oito importantes rios que cursam para o Estado do Acre.

Vale destacar, por fim, que ações deste tipo também devem fazer parte das agendas dos governos, brasileiro e peruano, acreano e ucayalino, no âmbito das negociações e dos acordos em curso para consolidar a tão propalada "integração regional": esta, como mais uma vez se torna evidente, não se concretizará apenas construindo estradas binacionais, como a Transoceânica ou a planejada Pucallpa-Cruzeiro do Sul.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.