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Pandemia se alastra rapidamente entre povos indígenas

Valor Econômico, Especial, p. A1 e A12
Autor: CHIARETTI, Daniela
02 de Jun de 2020

Pandemia se alastra rapidamente entre povos indígenas
Grupos de assistência tentam manter população nas aldeias para evitar a aceleração do contágio

Por Daniela Chiaretti

A pandemia se espalha rapidamente pelos povos indígenas. O coronavírus sobe os rios da Amazônia e entra nas aldeias. No Centro-Oeste, vinga em reservas lotadas onde o acesso a água é difícil e um cuidado básico, lavar as mãos, uma dificuldade. Os últimos dados, coletados por associações indígenas e pesquisadores, mostram que ontem havia 178 mortes entre 78 povos que vivem em 14 Estados brasileiros, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), referência nacional do movimento indígena no país. São 1.809 contaminados, e os números, como no resto do país, estão subnotificados.

Os dados oficiais, do governo, estão bem atrás. A situação é muito grave, alertam lideranças indígenas, entidades e antropólogos. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), braço do SUS criado em 2010 para dar atenção básica aos índios, em 31 de maio havia 51 mortes e 1.312 contaminados. A Sesai atende apenas aos "habitantes de terras indígenas homologadas", informa a assessoria de imprensa do órgão em nota ao Valor.

"Os indígenas em contexto urbano são atendidos pela rede pública do SUS e constam, portanto, das estatísticas municipais e estaduais", segue a nota. A Sesai presta atenção básica a 800 mil índios que vivem em aldeias, através dos distritos sanitários conhecidos por Dsei. Índios que vivem em cidades, em territórios ainda não homologados ou ao longo de estradas, não estão nas estatísticas oficiais e têm que buscar ajuda nos postos do SUS. Ou onde conseguirem. A Sesai presta apenas ajuda médica básica aos índios "aldeados", como se diz. Quando o caso se agrava, como acontece entre os doentes de covid-19, é preciso recorrer aos hospitais nas cidades. Como se sabe, a logística na Amazônia é difícil, as distâncias, longas, e a infraestrutura, precária.

O Ministério da Saúde não divulga as etnias e as localidades de cada caso, "por respeito ético", diz a nota. "Não queremos ser invisíveis. São vidas que foram interrompidas", rebate Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Apib, citando a criação do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, que procura dar dignidade à vida dos índios que morreram. "A alguns foi negada a vida, a história e agora está sendo negada a morte. Vamos fazer registros", promete. Sonia diz que a reação inicial da Apib foi rápida. "Trouxemos muitas orientações, desde os cuidados de higiene até o bloqueio na entrada das aldeias, para que ninguém entrasse ou saísse. Pedimos para quem estivesse circulando voltasse imediatamente às aldeias", diz. "O pessoal entendeu que era grave".

Ela segue: "Seguramos o povo nas aldeias e orientamos para que não recebessem visitas de forma alguma. Nas aldeias próximas às cidades, entram muitos vendedores ou missionários. A ideia era só deixar entrar as equipes de saúde". "Estava indo legal até que o presidente Bolsonaro disse que (a pandemia) era histeria da imprensa. Isso gerou confusão na cabeça das pessoas", continua Sonia. "Como a Apib diz que não pode sair, mas o presidente diz que sim? Indígenas respeitam autoridade. Neste momento vimos o perigo da contaminação crescer. Não conseguimos mais segurar", lamenta.

Sonia Guajajara lembra que há enorme diversidade entre os mais de 250 povos indígenas no Brasil, de diferentes níveis de contato e situação territorial. Os que estão mais próximos de cidades são mais dependentes da vida urbana, onde estudam, trabalham e vendem artesanatos. Os que vivem na beira de estradas, como os guarani kaiowas, não têm sequer lugar para fazer suas roças. Outros grupos, como os yanomami, vivem em grandes malocas coletivas, onde o isolamento social é prática impossível. Utensílios domésticos são compartilhados. Redes são divididas. "A contaminação está chegando agora e pode significar o extermínio de povos. Precisamos agir para evitar um genocídio", diz ela. Os dados oficiais estão tão defasados que em apenas uma etnia, os kokama, no Amazonas, foram 52 mortos. A covid-19 chegou à aldeia por uma infelicidade - trazida por um médico de São Paulo que não sabia que estava doente. Rapidamente a doença se alastrou.

Os kokama são cerca de 15 mil pessoas, o que é uma população relativamente grande quando se pensa em povos indígenas. Vivem na calha do rio Solimões, no Amazonas, na Colômbia e no Peru. "Quando se fala em povos indígenas, estamos falando em microsociedades, com língua, conhecimento e tradições próprias", diz o antropólogo Tiago Moreira, pesquisador do programa de monitoramento de áreas protegidas do Instituto Socioambiental (ISA). "Se a pandemia tiver o impacto europeu entre os índios, atingindo os mais velhos, matará os guardiões da cultura de muitos povos. A morte destas pessoas representa uma perda muito grande", explica.

O Amazonas, Estado mais indígena do país e que vem sofrendo duramente com a pandemia, lidera o número de mortes também entre os índios. O Pará vem na sequência, com 29 mortes, e Pernambuco, com 10. Nesse ranking sombrio, os kokama sofreram mais perdas até agora, seguidos pelos tikuna, também no Amazonas, e os warao (no Pará, Pernambuco e Roraima).

"Se a trajetória continuar como está, é muito preocupante", diz Moreira. Monitorando os dados oficiais, nos boletins diários divulgados pela Sesai e pela Apib, o antropólogo percebe um crescimento entre 10% e 12% ao dia no número de casos de contaminação. "Temos necessidade de ter modelos para prever qual a extensão da pandemia entre os indígenas", diz Moreira. "Em um povo de apenas 300 pessoas, o impacto pode ser gigantesco", alarma-se. Moreira estima que os casos dobrarão esta semana e podem chegar a 4.000 contaminados em 15 dias. "Considere que em algumas malocas vivem 50 a 100 pessoas. Se ocorrer o contágio, o risco de todos serem infectados é muito grande", diz ele.

Há exemplos em que a pandemia se soma à situação de vulnerabilidade de algumas etnias, e a situação se torna dramática. É o caso dos guarani kaiowa e guarani ñandeva, no Mato Grosso do Sul. São 55 mil pessoas que vivem em 90 áreas de ocupação, em diferentes situações territoriais. "São inúmeras vulnerabilidades sobrepostas", explica a antropóloga Tatiane Klein, pesquisadora dos guaranis no Mato Grosso do Sul, atualmente no Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo. No Mato Grosso do Sul, muitos guarani vivem em reservas indígenas de 3.500 hectares, em média, muito populosas. Há outros em áreas demarcadas, dispersos em áreas de retomada ou em acampamentos à beira das estradas. Em 30 de maio, segundo o boletim do Dsei de Mato Grosso do Sul, havia 74 casos confirmados no polo base de Dourados e 15 suspeitos. "Como os casos estão crescendo entre os indígenas, estão ocorrendo inúmeras manifestações de racismo por parte da população não-indígena, reforçando a visão negativa que a população local tem dos índios", diz a pesquisadora. No território indígena yanomami há pelo menos 10 mil garimpeiros, ameaça a mais para os índios em tempos de pandemia. O líder Davi Kopenawa acredita que o número de garimpeiros pode ser o dobro. "Essas invasões são extremamente perigosas. As políticas públicas estão estimulando invasões de madeireiros, garimpeiros e grileiros", diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, referência internacional no tema indígena e membro da Comissão Arns.

Na terra indígena yanomami existem 27 mil yanomami e 600 ye'kwana. A bióloga Marina Vieira, que atua junto aos índios e participa da rede de apoiadores da etnia que se formou há um mês, explica as dificuldades para conter o avanço da doença. Um dos problemas é que as equipes da Sesai fazem escala de 15 dias, e depois trocam. "O ideal seria ter escalas mais longas", diz ela, lembrando que assim se evitaria o trânsito de gente nas aldeias e que os agentes de saúde poderiam fazer quarentena de sete dias, para ter algum nível de segurança na prevenção do contágio. O esforço é evitar que os índios deixem as comunidades e venham às cidades. Foi assim que a maioria dos yanomami se contaminou. Cerca de 60% ficaram doentes na Casa de Saúde Indígena em Boa Vista. Outros 17% se contaminaram nas cidades e só em 23% o contágio foi dentro da comunidade.

A Funai informou que distribuiu quase 90,2 mil cestas de alimentos a famílias indígenas no país. A autarquia tem R$ 20 milhões para ações de proteção aos índios durante a pandemia, sendo que R$ 13 milhões foram gastos.

Valor Econômico, 02/06/2020, Especial, p. A1 e A12

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/06/02/pandemia-se-alastra-r…

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