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País negligencia fiscalização de barragem

Valor Econômico, Especial, p. A12
29 de Jul de 2016

País negligencia fiscalização de barragem

Murillo Camarotto

O governo federal não tem a menor ideia do que se passa com as centenas de barragens de mineração espalhadas pelo país. Uma auditoria concluída recentemente pelo Tribunal de Contas da União (TCU) revelou a situação caótica da fiscalização desse tipo de empreendimento, cujo potencial de destruição ambiental e humana pôde ser constatado da pior forma na tragédia ocorrida em novembro do ano passado em Mariana (MG).
A auditoria trouxe à tona dados alarmantes: 72% das barragens de rejeitos de mineração consideradas mais perigosas simplesmente não foram fiscalizadas pelo poder público nos últimos quatro anos. Essas são barragens classificadas na categoria "A", ou seja, representam risco alto de ruptura e, ao mesmo tempo, têm potencial de causar grandes danos humanos, econômicos e ambientais em caso de acidente.
Se considerado o número total de barragens de rejeitos cadastradas no país, independentemente da categoria de risco, apenas 41% já passaram por algum tipo de vistoria do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME). Ao avaliarem o trabalho do órgão, alguns técnicos do TCU confidenciaram que poucas vezes tinham visto algo tão sucateado na administração pública.
A constatação do trabalho é de que a fiscalização exercida pelo DNPM é precária, limitada e incompatível com as boas práticas de controle. Apesar da conclusão da auditoria técnica, o processo ainda está em curso no TCU, e não é descartada a punição dos dirigentes do órgão, sobretudo após a tragédia com a barragem da Samarco, que resultou na morte de 19 pessoas e abalou seriamente todo um ecossistema.
Segundo o TCU, o acompanhamento do DNPM é realizado quase que unicamente com base em informações encaminhadas periodicamente pelas próprias mineradoras que deveriam ser fiscalizadas. O departamento teria que fazer inspeções in loco para averiguar se os dados fornecidos, especialmente os que se referem à segurança, são fidedignos.
A Lei 12.334/2010 estabeleceu a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), com o objetivo de garantir a observância de padrões de segurança e reduzir a possibilidade de acidentes. A legislação estabelece que o empreendedor é o responsável legal pela segurança das barragens e que cabe ao poder público, no caso DNPM, fazer as fiscalizações.
Enquanto as mineradoras têm a obrigação de manter atualizados os planos de segurança e de emergência, bem como realizar inspeções quinzenais nas barragens de rejeitos, ao DNPM cabe, entre outras coisas, exigir dos empreendedores o cumprimento das recomendações contidas nos relatórios de inspeção e a revisão periódica de segurança.
As barragens já existentes à época da promulgação da lei DNPM receberam prazo de dois anos para se enquadrarem às novas exigências. Assim, as mineradoras ficaram obrigadas a realizar as inspeções a cada quinze dias e encaminhar um relatório anual de segurança, com informações sobre o estado de conservação das barragens, eventuais anomalias encontradas e a reclassificação do índice de risco, caso necessário.
O problema é que a estrutura do DNPM não conta nem sequer de uma área específica para fiscalização de barragens de rejeitos. Além disso, o órgão não dispõe de meios ou instrumentos concretos para auxiliar na verificação sistemática e rotineira da veracidade dos dados informados pelas empresas. Na prática, essa verificação se dá apenas nas vistorias in loco, que como mostrou a auditoria do TCU, são raras.
A maioria dessas visitas deveria ser feita por técnicos das 26 superintendências estaduais do DNPM. Provocadas pelo tribunal de contas a apresentarem os planos de fiscalização elaborados entre 2012 e 2015, apenas duas superintendências (Goiás e Bahia) encaminharam algum documento. Ainda assim, consistiam em simples planilhas com uma lista de barragens, sem qualquer explicitação de critérios técnicos para as vistorias.
Principal superintendência do país, com 220 barragens cadastradas, Minas Gerais só fiscalizou 35% das estruturas no período analisado. Após a tragédia da Samarco, no entanto, a filial mineira do DNPM desandou a fazer inspeções. De acordo com o TCU, 70% das vistorias realizadas no ano passado aconteceram após o acidente com a Barragem de Fundão e tiveram como alvo empreendimentos da Samarco.
O diagnóstico do TCU foi de que as superintendências estaduais funcionam sem qualquer rotina de planejamento ou elaboração de planos de fiscalização, ou seja, não há critério para definir qual barragem deve ser inspecionada. A dificuldade está justamente na falta de procedimentos para análise dos documentos encaminhados pelas mineradoras.
Curiosamente, após a tragédia de Mariana o DNPM contratou uma assessoria técnica especializada para realizar o mesmo trabalho: verificar os parâmetros informados pelos empreendedores para o cadastramento e a classificação de todas as barragens de rejeitos. Na avaliação dó TCU, essa contratação - que custou R$ 4 milhões - é a prova concreta da incapacidade do DNPM.
A incapacidade do órgão - que em sua defesa alega falta de dinheiro e mão de obra - aumenta a possibilidade de que várias barragens estejam operando normalmente apesar de estarem inadimplentes quanto aos planos de segurança e de emergência. Segundo o tribunal de contas, o quadro atual sugere que muitos empreendimentos podem ficar vários anos sem receber qualquer tipo de fiscalização, tornando real o risco de que tragédias semelhantes ou até piores que a da Samarco voltem a manchar o Brasil de lama.

Projeto da Samarco em Mariana era classificado como de "baixo risco"

Murillo Camarotto

O TCU determinou a realização de uma auditoria sobre o DNPM em 11 de novembro, mesmo dia em que o mar de lama da Samarco chegou a Governador Valadares (MG), paralisando o abastecimento de água e mergulhando a cidade no caos. Calcula-se que 55 milhões de metros cúbicos de rejeito vazaram com o rompimento da barragem de Fundão, volume equivalente a dez lagoas Rodrigo de Freiras, cartão postal do Rio de Janeiro.
Apesar dos números estratosféricos, a barragem era classificada na categoria de baixo risco. Tal avaliação, segundo o TCU, estava baseada em critérios definidos na Lei 12.334/2010 e em informações declaradas pela Samarco. Do ponto de vista do DNPM, a estrutura havia sido vistoriada em 2012 e as condições foram consideradas "satisfatórias" pelo órgão, apesar de a documentação ter sido entregue em atraso.
A barragem de Fundão foi construída pelo método de alteamento a montante, pelo qual após a construção de um dique inicial os rejeitos vão sendo depositados, formando a chamada "praia de deposição", que com o tempo adensará e servirá de fundação para futuros diques.
O alteamento é o mais antigo, mais popular e considerado o menos seguro. Após o desastre da Samarco, o governo de Minas Gerais publicou um decreto suspendendo a formalização de processos de licenciamento ambiental de novas barragens de contenção de rejeitos nos quais se pretenda utilizar o método.
Também após o acidente, o DNPM analisou os planos de segurança e de emergência da Samarco, nos quais foram identificadas algumas inconsistências. Não havia, por exemplo, um cronograma de testes dos equipamentos hidráulicos, elétricos e mecânicos da barragem. No plano de emergência, inexistia uma estratégia de comunicação para um eventual desastre e registros de treinamentos e simulações.
Apesar disso, a Samarco apresentou um laudo técnico que atestava a estabilidade da barragem de Fundão. Questionado, o DNPM ponderou que a garantia da estabilidade da estrutura é avaliada considerando informações contidas no primeiro parágrafo do documento, em que se atesta, de forma direta e expressa, a segurança da barragem.
Diante disso, o TCU concluiu que a classificação de risco das barragens de rejeitos no Brasil é feita a partir de informações declaradas unilateralmente pelos empreendedores, o que implica baixa confiabilidade desses dados e, por conseguinte, da própria classificação das barragens. De acordo com a auditoria, o DNPM desconhecia a real situação da barragem de Fundão quando ela veio abaixo.
O diagnóstico, então, é de que o DNPM foi omisso em seu papel de acompanhar as ações de segurança da barragem. Para o TCU, a omissão da autarquia pode ter contribuído para a ineficácia do plano de emergência de Fundão. O DNPM, portanto, não cumpriu o dever legal de ajudar a evitar o acidente e seus efeitos gravosos.
O TCU guarda a sete-chaves a proposta de responsabilização do processo, que ainda não foi concluído.
Não está descartada a possibilidade de que a direção do DNPM seja penalizada com multas ou até mesmo inabilitação para o serviço público. Ainda não há prazo para avaliação do plenário do tribunal.

Acusado de omissão, DNPM padece de escassez de verba e mão de obra

Murillo Camarotto

O descalabro identificado pelo TCU no funcionamento do DNPM é, em boa medida, explicado pelo processo constante de esvaziamento do órgão, que sofre com cortes de verba e reduções no quadro de pessoal. Durante as diligências com o tribunal de contas, representantes do departamento reconheceram que a carência de recursos e de mão de obra dificulta a rotina de fiscalizações dos empreendimentos e análises das documentações enviadas pelas empresas.
Nos últimos dez anos, o montante total autorizado no orçamento do DNPM aumentou 195%, passando de pouco mais de R$ 110 milhões, em 2005, para cerca de R$ 329 milhões, no ano passado. Apesar disso, se considerado apenas o orçamento para despesas discricionárias - rubrica usada para as fiscalizações - o que se percebe é um declínio progressivo dos valores.
Além da queda no montante autorizado, o percentual de execução dessas receitas ficou estável em 22% nos últimos anos, o que também está dificultando o trabalho do órgão. De acordo com o TCU, a estrutura orçamentária a financeira do DNPM limita a atuação finalística da autarquia, comprometendo seu desempenho como fiscalizador da segurança das barragens.
Instituído em 1934 como um setor do Ministério da Agricultura, o DNPM sofreu uma série de alterações em sua natureza até receber, em 1994, a classificação de autarquia, que mantém até hoje. Está em discussão uma proposta para transformar o DNPM em agência reguladora. A mudança se daria no contexto do novo código mineral, projeto que há anos se arrasta no Congresso.
Em fevereiro do ano passado, o órgão encaminhou à Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração um ofício no qual alertava que a falta de recursos financeiros culminaria no cancelamento de contratos e paralisação de várias atividades.
A instituição da legislação sobre a segurança de barragens, em 2010, acarretou no aumento sistemático das atribuições do DNPM, como a criação de cadastro das barragens, a classificação de cada estrutura conforme critérios de risco e ampliação da necessidade de fiscalizações in loco.
Apesar de alertas feitos tanto pelo DNPM quanto pelo TCU ao Ministério do Planejamento, a resposta para a ausência de novos concursos públicos foi justificada com as discussões para transformação do órgão em agência reguladora. Do total de vagas criadas para o DNPM, apenas 65% estão preenchidas.
Além do número insuficiente de profissionais, muitos que estão na ativa não possuem a qualificação necessária para as funções. De acordo com o TCU, o próprio DNPM admitiu que vários técnicos não possuem o conhecimento especializado necessário para avaliar, por exemplo, os resultados de leituras de instrumentos e cálculos geotécnicos
Em janeiro deste ano, dois meses após a tragédia da Samarco, o DNPM abriu prazo de 30 dias para que todos os responsáveis por barragens de mineração comprovassem a entrega das cópias de seus planos de emergência para os municípios onde operam. Expirado o prazo, o órgão - que não tem assessoria de imprensa - não sabia informar quais empresas entregaram o documento. O levantamento só ficou pronto mais de três meses depois.

Valor Econômico, 29/07/2016, Especial, p. A12

http://www.valor.com.br/brasil/4651825/pais-negligencia-fiscalizacao-de…

http://www.valor.com.br/brasil/4651827/projeto-da-samarco-em-mariana-er…

http://www.valor.com.br/brasil/4651829/acusado-de-omissao-dnpm-padece-d…

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