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Padre Casimiro, uma vida dedicada à cultura indígena

Diário do Amazonas-Manaus-AM
Autor: Elaíze Farias
29 de Ago de 2004

Padre Casimiro Beksta é um referencial silencioso da etnografia amazônica. Mitólogo, consultor, estudioso da cosmologia indígena e fluente em idiomas nativos. Seu domínio em tukano é tal, que ele sabe contar piada nessa poderosa língua do alto rio Negro.

Escritores, antropólogos, teatrólogos, professores não apenas o admiram. Assumem, sim, que bebem na fonte de Casimiro Beksta que, generoso, nunca se exime em repassar o que sabe sobre os povos amazônicos.

O escritor Márcio Souza, a artista plástica Bernadete Andrade, a escritora Regina Melo, a professora de Filosofia Socorro Jatobá, a antropóloga paulista Berta Ribeiro. Todos tiveram em Casimiro uma ponte até os povos do alto rio Negro e um reforço intelectual fundamental para seus trabalhos.

"Eu não fazia nada. Apenas catava línguas, gravava histórias e mitologias. Até hoje tento compreender", diz o padre.

Por mais de 20 anos, Casimiro teve uma vida itinerante pelas comunidades do alto rio Negro, em missão salesiana. De formação clássica e conhecedor do latim e do grego, aprendeu a falar as línguas nativas e dialogou com os indígenas sem a arrogância dos colonizadores e catequistas do passado.

Assimilou lendas e mitos, com a curiosidade de uma criança, errando e recomeçando conforme o ritual de transmissão de cada povo. Reconhecido somente ano passado como cidadão lituano, Pe. Casimiro Beksta diz que comeu "mais chibé do que a comida da sua própria terra".

Corpulento, alto, vozeirão, Pe. Casimiro Beksta não demonstra os 81 anos de vida e a dificuldade de audição. Também é teimoso. E bastante reticente para falar. Diz que tem medo de reportagem, que outros assuntos são mais interessantes e que há temas mais edificantes do que a sua vida.

Quando o procurei, com a intermediação do cenógrafo e diretor de teatro Nonato Tavares, seu amigo de longa data, Casimiro interrompeu a sessão de um trabalho intelectual que realiza há décadas.

Seu empenho justifica-se. Ele acha que o dicionário de Nheengatu elaborado por Ermano Stradelli (1852-1926), um clássico da etnografia amazônica, precisa de reparos. Especialmente lingüísticos. O conde Stradelli, no final do século 19, foi responsável por um calhamaço de 800 páginas sobre a língua geral indígena que um dia se falou no Brasil.

"Gostaria de reeditar o dicionário de Língua Geral. Colocar em ordem, porque ele fez uma mistura", diz o padre, reconhecendo, tardiamente, que poderia ter usado o Nheengatu, língua interétnica, quando foi para o rio Negro.

Casimiro tem um passado digno de roteiro de cinema. Quando tinha 18 anos, acuado pela guerra e perseguido pela ditadura stalinista fugiu da Lituânia, que na época fazia parte da ex-União Soviética, e foi parar na Alemanha.

Órfão de pais e muito religioso, entrou para o seminário e ainda estudante queria ir para a Índia. O convite de um bispo lhe trouxe para o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro em novembro de 1950 e em dezembro de 1951 já estava no Amazonas, enviado pela congregação salesiana.

Anos depois, foi para São Paulo, estudou Teologia no Instituto Pio 12, tornou-se padre e retornou para o alto rio Negro. "Cheguei aqui sem nenhum preparo. Eu sabia apenas que na América do Sul havia índios diferentes dos que tinha nos Estados Unidos", recorda.

A desinformação de Casimiro foi o estopim para que ele não se resignasse com a superficialidade. Ao contrário, o padre embrenhou-se aldeias adentro, comunidades pouco contatadas e passou a conviver com o mundo dos mitos.

Durante sua permanência entre as comunidades amazônicas, o padre morou em praticamente toda a área do alto rio Negro e afluentes, como rios Yauaretê e Tiquié, além de São Gabriel da Cachoeira.

Ao primeiro contato, veio o primeiro susto. Estranhou o fato das línguas nativas serem consideradas "sujas" pela Igreja, daí a obrigatoriedade do português. "Estranhava aquilo. Então eu queria saber o que eles falavam. Pedia que me contassem alguma coisa, uma história. Não encontrei uma palavra suja. Quando precisavam xingar, faziam em português", lembra.

Quando a perseguição à Língua Geral acabou, o padre também descobriu a beleza e a sonoridade do idioma. "Era uma língua mais bonita do que o italiano. Palavra onde se colocam cinco vogais, sem uma consoante no meio. Era fantástica, uma construção estranha, mas fácil de entender".

A sintaxe amazônica cativou e deixou Casimiro apaixonado. "Eles usam apenas uma palavra no passado quando contam uma história. O resto é em tempo presente. Muito mais interessante do que a maneira como a gente conta".

A convivência com os povos indígenas trouxe situações peculiares e levou o padre Casimiro para os mistérios da cosmologia e das narrativas de criação do mundo. Começou então a aprender a mentalidade indígena, escutando as histórias no original, sem a interferência das traduções.

Encantando com as narrativas, transmitidas conforme um rigoroso ritual que era obrigado a seguir, Casimiro aprendeu sobre a migração tukana (que teria vindo do Norte, atravessando os Andes até descer o rio Amazonas), sobre as lendas das mulheres guerreiras, sobre o trovão e sobre as técnicas das narrativas e formas de descrição.

O interesse pela história do trovão trouxe-lhe situações inusitadas e foi uma lição de como se comportar diante do desconhecido. Casimiro descobriu que o assunto não poderia ser falado em qualquer hora e de qualquer jeito e exigia uma rigorosa cerimônia: apenas à noite, quando crianças e mulheres estivessem dormindo, e na maloca dos pajés, quando adultos e velhos apenas cochichavam. É obrigatório um ritual para defender o lar, moradores e o visitante.

O acervo pessoal de Casimiro é rico. Não são apenas anotações, mas gravações inestimáveis, em equipamento que ele sempre carregava consigo, como seu companheiro de viagem.

"Para se fazer uma pesquisa, temos que ir no ambiente deles, dormir na maloca. Catando informação a qualquer momento, tipo uma reportagem, como eu fazia então, era errado. Não está certo contar desta maneira".

Longe de seus parentes indígenas há 30 anos, hoje Casimiro, aposentado, mora num quarto do Seminário da Paróquia São José, na "civilização", como ele diz, usando instrumentos modernos, mas sempre catando coisas antigas.

Seu maior contato com a vida que levava nas comunidades indígenas é o pajé tukano Gabriel Gentil, escritor e amigo, que o acompanha e colabora nas traduções das mitologias.

Casimiro Beksta não é pretensioso nem tem arroubos de se transformar num nativo, a exemplo do que fez o alemão Curt Unkel (1883-1945), que trocou o sobrenome para Nimuendajú, naturalizou-se brasileiro e adotou a vida indígena.

"Estou trabalhando com outras culturas. É impossível adaptar-se para ser identificado com apenas cada uma. Então, sou sempre de fora. Mas isso não é problema, diz.

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