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Outro olhar sobre a Amazônia

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
21 de Nov de 2003

Outro olhar sobre a Amazônia

Washington Novaes

Anuncia-se que, por proposta do grupo de 11 ministérios formado pelo governo federal, várias obras incluídas no Plano Plurianual de Investimentos para a área amazônica serão reavaliadas, para adequá-las a critérios de sustentabilidade ambiental.
Se é assim, muitas iniciativas terão de ser reavaliadas - as hidrelétricas dos Rios Madeira e Xingu, os gasodutos previstos para atravessar a floresta, rodovias a serem implantadas ou pavimentadas (no último caso, a Cuiabá-Santarém), linhas de transmissão de energia, projetos de expansão do cultivo de soja e muito mais -, todas elas implicando a abertura de frentes de ocupação humana e econômica.
Não é preocupação excessiva. Todos esses projetos implicam desmatamento, represamento de rios, dragagens e/ou outros problemas ambientais. E praticamente todos eles se destinam a viabilizar quase apenas a expansão do modelo exportador de commodities ou de eletrointensivos, quase sem relação direta com as necessidades específicas das populações da Amazônia. E isso num momento em que a taxa de desmatamento na região já ultrapassou 25 mil km² anuais (2001-2002) e pode estar indo mais além, como admitiu a ministra do Meio Ambiente. Em 15 anos, como assinalou este jornal, foram 243,3 mil km², ou 5% de toda a Amazônia Legal. Ao todo, já foram removidos mais de 600 mil km² de florestas.
A decisão de reavaliar e adequar os projetos é saudável e bem-vinda. Atende aos princípios defendidos pela ministra Marina Silva, que tem pregado incansavelmente a "transversalidade" nas ações do governo, com os critérios de sustentabilidade permeando todos os projetos em todos os setores, para retirar a dita questão ambiental do gueto de um único ministério, como tem sido até aqui.
Entretanto, neste governo mesmo, a transversalidade foi desconsiderada em várias ações oficiais, ao mesmo tempo em que se expandia a fronteira da soja pela região amazônica, como mostraram as reportagens de Lourival Sant'Anna neste jornal . E a questão pareceu começar a reverter-se só a partir do projeto de lei de biossegurança, quando a ameaça de perda da ministra fez o governo rever suas posições e mandar ao Congresso uma proposta mais próxima das exigências da titular do Meio Ambiente - postura que, infelizmente, já começou a perder terreno com a aprovação de certas emendas na votação da Medida Provisória 131 e com o afastamento, da comissão que analisa o projeto de lei de biossegurança, do parlamentar mais afinado com essa postura.
Ainda haverá muitos outros problemas no caminho. Liana John mostrou, na Agência Estado (19/9), que o próprio governador de Rondônia quer jogar por terra a exigência legal de manutenção de reservas de 80% em seu Estado.
A Sociedade Brasileira de Silvicultura demonstra, indiretamente, que haverá muitas outras pressões para aumentar o desmatamento, pois, segundo ela, o Brasil precisaria plantar 630 mil hectares de florestas nos próximos anos para atender às demandas interna e externa, quando nos últimos cinco anos plantou 250 mil hectares/ ano. Caberia perguntar por que não se executa um projeto como o Floram nos 600 mil hectares já desmatados, um terço dos quais sem utilização. Esse projeto, concebido há uns 15 anos por um grupo de cientistas, previa exatamente esse plantio de florestas em áreas já desmatadas, para conter o desmatamento predatório (hoje, mais de 80% da madeira amazônica é retirada ilegalmente). Se executado agora, o projeto ainda poderia talvez valerse dos programas de compensação pela retirada de carbono da atmosfera, no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, da Convenção de Mudanças Climáticas.
Na verdade, as políticas para a Amazônia precisam reverter bem mais que a postura que leva ao desmatamento. Precisam rever a própria concepção de desenvolvimento. E isso implica levar em conta os custos do modelo exportador de produtos primários, os pesados investimentos em energia (geração e transmissão) para exportar eletrointensivos (sem consideração desses mesmos custos e ainda com subsídios, como tem acontecido até aqui), as políticas que não se preocupam com a geração de empregos e renda para as populações mais desfavorecidas (fazendo de conta que os projetos subsidiados resolverão isso).
E não é só na Amazônia. Nessa área da energia mesmo, cabe perguntar por que continua relegada a décimo plano, se tanto, a preocupação com programas nacionais de conservação de energia. Ao contrário, planejam-se, para aumentar a oferta de energia, investimentos de dezenas e dezenas de bilhões de dólares, principalmente na Amazônia, mas também em muitos outros lugares, inclusive em Angra dos Reis (energia nuclear) - deixando sem resposta indagações levantadas por matéria publicada neste jornal por Alaor Barbosa (Estado, 8/7). Segundo esta, o primeiro semestre deste ano terminou com uma oferta de energia de 84 mil MW, com aumento de 6,75 mil MW (2,32%) nos 12 meses anteriores.
Essa capacidade instalada foi identificada pela Aneel como "quase o dobro da demanda média do País". Segundo o Operador Nacional de Energia Elétrica, "o consumo médio emjunho oscilou em torno de 40 mil MW, havendo momentos de pico de 54 mil MW".
Portanto, mesmo nos momentos de pico a sobra seria de quase 30 mil MW; e fora desses momentos, de mais de 50% da capacidade instalada. Dizia a matéria que, pelos cálculos do governo, o consumo crescerá o equivalente a cerca de 3 mil MW anuais, se a economia se expandir de 3% a 4% ao ano. Apesar desses números, continua- se a brandir a ameaça de um novo apagão daqui a dois ou três anos, para justificar a necessidade de novas obras monumentais - quando os investimentos poderiam ser redirecionados para muitas áreas carentes.
A transversalidade terá de chegar aí também. Não será fácil, portanto, a tarefa da ministra do Meio Ambiente, que precisará cuidar da Amazônia, dos custos do modelo agropecuário, da transposição das águas do Rio São Francisco (que, segundo se noticia, será precedida da "revitalização" do rio"). E de muito mais.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 21/11/2003, Espaço Aberto, p. A2

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