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Os yanomami e a polêmica dos antropólogos

O Globo, Prosa & Verso, p. 3.
22 de Jun de 2002

Trevas no Eldorado, de Patrick Tierney. Tradução de Bentto de Lima. Ediouro, 526 pgs. R$ 43,50

Na história da antropologia, poucos livros geraram tamanha controvérsia como "Trevas no Eldorado". Lançado nos EUA em 2000, e agora traduzido para o português, já nasceu sob o signo do escândalo. Uma mensagem eletrônica redigida por dois antropólogos antecipou partes de seu conteúdo meses antes da publicação, mensagem esta que circulou por todo o mundo. No Brasil, essa onda foi noticiada na grande imprensa em grandes manchetes como antropólogos em pé de guerra, antropologia e ferocidade, chacina de índios, etc.

Para alguns, o agora famosíssimo e-mail, com algumas acusações até mais terríveis que as contidas no próprio livro, não foi redigido simplesmente como alerta, pré-apocalíptico, para a diretoria da Sociedade Norte-Americana de Antropologia, como alegado. Mas o lançamento foi bombástico, potencializado pelo fato de o livro carregar a chancela de alguns membros da comunidade científica dos EUA.

Segundo o jornalista Patrick Tierney, a preparação de "Trevas no Eldorado" tomou-lhe quase uma década. O principal argumento é que, à semelhança dos impactos do expansionismo ocidental sobre os povos indígenas, práticas de cientistas, antropólogos e repórteres resultaram em sofrimento, e mesmo morte, para os yanomami.

"Trevas no Eldorado" não é um livro de leitura fácil. Além do desconforto causado por certas partes, próximas da descrição de um holocausto, há de se enfrentar uma vastíssima quantidade de detalhes, acrescido de uma infinidade de notas (quase 1.600). Já foi aventado que a construção hiperdetalhista é um artifício para, literalmente, afogar os leitores, imiscuindo a idéia de uma suposta fundamentação sólida, quando na verdade abundam inconsistências e vieses.

O capítulo "O surto"contém maior celeuma

Das inúmeras denúncias contidas em "Trevas no Eldorado" - que incluem a indução de epidemias de sarampo na população yanomami, a utilização de indígenas em experimentos patrocinados pela Comissão de Energia Atômica dos EUA, encenações para a tomada de imagens etnográficas, e por aí vai - a que atraiu mais atenção está no capítulo "O surto".

Análises de médicos, antropólogos, historiadores da ciência, entre outros, contradizem Tierney quanto a uma suposta disseminação do sarampo pela equipe do geneticista James Neel, por intermédio da utilização de uma vacina anti-sarampo "ultrapassada e excessivamente forte" para os yanomami. A conclusão é que houve, por parte de Tierney, manipulação de provas documentais, distorção do conteúdo de entrevistas (alguns vieram a público asseverar que suas palavras foram citadas fora de contexto ou mesmo enviesadas) e associações espúrias entre eventos na prática não-relacionados (como a de um famoso geneticista brasileiro que, por ter coletado amostras de sangue de vários grupos indígenas na década de 70, no auge dos anos de chumbo, é equacionado a alguém que se beneficiou da ditadura para realizar sua prática científica). Parecer redigido por uma equipe médica da UFRJ utiliza expressões como má intenção, sérias falhas documentais e conceituais e falta de rigor demonstrativo para se referir a "O surto".

Com tais ingredientes, a babel de acusações e contra-acusações não pára de crescer. Menos de dois anos após sua publicação, uma das mais completas páginas da internet que cobre a controvérsia gerada por "Trevas no Eldorado" disponibiliza uma quantidade de megabites de informação [www.anth.uconn.edu/gradstudents/dhume] equivalente a muitas e muitas vezes o tamanho do livro. A avalanche de mensagens tem sido de tal monta que o antropólogo Glifford Geertz iniciou um ensaio indicando que a trajetória do livro no ciberespaço foi algo não menos surpreendente que seu próprio conteúdo.

Em sua curta, mas explosiva trajetória, "Trevas no Eldorado" transformou-se num texto marcado pela dubiedade. Respeitados pesquisadores comprometidos com a causa yanomami têm apontado que, mesmo problemático, Tierney traz à baila questões significativas no que tange à ética e à política envolvidas na produção do conhecimento antropológico e biomédico sobre povos indígenas. O próprio parecer da equipe da UFRJ, extremamente crítico, sinaliza que os novos olhares sobre eventos e práticas devido ao livro podem, uma vez assentada a poeira, gerar reflexões importantes. Mas também já se indagou se os fins justificam os meios, ou seja, se a estratégia de erigir uma narrativa distorcida, acompanhada de uma boa dose de escândalo e polêmica, é a melhor maneira de estimular debates.

De um modo ou de outro, por intermédio do furor causado, um significativo conjunto de críticas sobre certas práticas de pesquisa, que receberam pouca atenção no passado, ganharam renovada projeção. Já na década de 80, vários antropólogos, como Alcida Ramos, Bruce Albert e Manuela Carneiro da Cunha, entre outros, escreveram textos que chamavam atenção para os efeitos danosos dos escritos de Napoleon Chagnon que, através de sua obra, propagou a representação dos yanomami como selvagens e ferozes. Seu principal livro vendeu, ao longo de 25 anos, quase um milhão de cópias, tendo sido lido por várias gerações de estudantes de antropologia, sobretudo nos EUA.

O livro de Tierney precisa ser lido junto com outros

Se Chagnon teria o direito, do ponto de vista intelectual, de divulgar as conclusões de suas pesquisas, cabia-lhe o compromisso humanitário e ético de se posicionar quando suas idéias fossem indevidamente utilizadas, o que não fez, segundo seus críticos. A construção dos yanomami como belicosos e assassinos teria trazido conseqüências negativas no âmbito das iniciativas visando à garantia de seus direitos, de território inclusive. Um dos trabalhos mais famosos de Chagnon sugere que aqueles homens que mais matavam tinham mais mulheres e mais filhos, portanto melhor desempenho reprodutivo e também evolutivo-darwiniano. Esse texto, publicado na revista "Science", termina com algo comprometedor para a autonomia dos povos indígenas, colocado de modo acrítico por Chagnon: reproduz a opinião de um jovem yanomami que, segundo o antropólogo, teria lhe afirmado que veria com bons olhos a utilização da Justiça e da polícia dos não-índios para estancar a violência e o medo endêmico que reinariam no seio de seu povo.

Talvez alguns leitores terão a motivação de tomar "Trevas no Eldorado" como trampolim para mergulhar na miríade de textos relacionados à controvérsia. Mas é provável que poucos terão o interesse, tempo e/ou fôlego para tal. Para os demais, para dizer o mínimo, Tierney precisa ser lido em conjunção com um contrapeso. Uma possibilidade é o excelente documento "Pesquisa e ética: o caso yanomami - Contribuições brasileiras sobre a controvérsia de 'Trevas no Eldorado'", preparado pela Comissão Pró-Yanomami [www.proyanomami.org.br], que reúne vozes proeminentes em ensaios instigantes. Findo com uma advertência: é possível que, a depender da ordem de leitura, muitos se satisfaçam com o documento da CCPY, não somente pela ponderação, equilíbrio e abrangência, como também por ser gratuito.

RICARDO VENTURA SANTOS é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e do Museu Nacional

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