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Os transgênicos na encruzilhada...

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: SOLA, Lourdes; BARROS, Maria Cristina Mendonça de
16 de Nov de 2003

Os transgênicos na encruzilhada...

Lourdes Sola e Maria Cristina Mendonça de Barros

A controvérsia em torno dos transgênicos cresceu em escala exponencial em 2003. É um dos poucos tópicos de políticas públicas em que a ausência de consenso não é obscurecida pelo impulso disciplinador do partido dominante na coalizão governamental, o PT. É que se trata de um tópico intrinsecamente polivalente. E como tal deve ser tratado. Há um ponto de vista econômico, pois a questão afeta as condições de crescimento sustentável. Incertezas regulatórias comprometem o desenvolvimento de segmentos do agribusiness, relevantes para a competitividade do País, com destaque para a soja. Há também um ponto de vista técnico-científico.
Invocam-no não só os defensores da liberação dos transgênicos, em nome da biotecnologia; os ambientalistas invocam a "sua" ciência. É evidência de que, para os dois lados, a ciência é um valor e, por isso, um critério de legitimação do qual se valem (sempre que podem) os propositores de políticas públicas. Por isso, não cabe desqualificar os cientistas da CTNBio, negando-lhes autoridade técnica para decidir sobre os transgênicos, como "um grupo de iluminados".
A questão dos transgênicos traz à baila dilemas típicos de outras escolhas de política pública: situações em que os decisores se confrontam com dois ou três objetivos, todos desejáveis, mas que em princípio são conflitivos, mas só o são se tratados de forma doutrinária. Como combinar o objetivo de máxima proteção ao meio ambiente, a maximização dos usos benéficos da transgenia, a prioridade orçamentária às pesquisas de biotecnologia e genética, a maximização do critério de competitividade econômica?
A solução de política pública consiste num trade-off. Abandonam-se as soluções maximizadoras, em troca de uma combinação de tipo "second best", "third best", "n. best" - cuja definição depende de uma opção política. A tarefa republicana a ser cobrada do governo consiste em explicitar essa dimensão política, dando transparência aos critérios de um determinado trade-off. Confrontem-se nossos argumentos com a experiência recente.
O embate sobre o plantio de soja transgênica se iniciou em 1999, quando o Greenpeace e o Instituto de Defesa do Consumidor moveram ação judicial contra a decisão da CTNBio de autorizar o plantio de soja transgênica RR, da Monsanto. Segundo a Lei de Biossegurança em vigor desde 1985, a CTNBio tinha competência para julgar a segurança desses produtos, mas existiam conflitos com a legislação ambiental envolvendo as competências da CTNBio e do Ministério de Meio Ambiente (MMA). Questionava-se um artigo da Lei de Biossegurança, ou seja, o poder deliberativo da CTNBio, alegando a prerrogativa do MMA de exigir estudo de impacto ambiental (EIA-Rima). A liminar foi aceita e a comercialização da soja, proibida.
Em março deste ano, a MP 113 - a primeira resposta do governo Lula ao problema - foi emergencial, por eliminar o impasse da comercialização da soja transgênica do Rio Grande do Sul, safra 2003, mas continuava proibida na forma de semente, bem como o plantio. Em setembro, permitiu-se o plantio das sementes reservadas pelos agricultores para uso próprio apenas para 2003-2004, proibindo-se a comercialização das sementes. Essa MP foi aprovada, com modificações, no último dia 12, pela Câmara e dentro de poucos dias o será pelo Senado.
Em outubro, o governo produziu o Projeto de Lei de Biossegurança. A CTNBio perde poder na definição do uso da transgenia, transferindo-se essa atribuição para uma Câmara Nacional de Biossegurança, subordinada à Casa Civil. A CTNBio passa a ter poder de veto, mas não de aprovação. A autorização para as pesquisas está subordinada a órgãos alheios ao trabalho científico, submetido a controles similares aos impostos à comercialização.
O projeto revoga a Lei 8.974, eliminando pontos de conflito com a legislação ambiental, mas em tese, porque sua operacionalização inviabiliza o uso da transgenia no Brasil.
Como interpretar esse movimento, acompanhado pelo mundo todo, devido ao peso do Brasil na oferta global de soja? A crítica à transgenia está sendo politizada e tratada como questão de doutrina, ou seja, com foco exclusivo na maximização de um determinado objetivo, em detrimento de outros. Omite-se que a transgenia possa ser um instrumento de modernização em termos de desenvolvimento econômico e de bem-estar social. Tampouco se admite a existência de distintas agriculturas voltadas para diferentes mercados.
As principais academias de ciências do mundo já se posicionaram sobre as vantagens dos transgênicos e a Organização Mundial da Saúde, também. Como apontaram técnicos da Embrapa em artigo recente, os transgênicos passam por testes rigorosos, são mais seguros que alimentos não controlados. As atividades da engenharia genética afetam, além da agricultura, a saúde humana, a exemplo de vacinas, insulina, fármacos. Na área agrícola, a Embrapa, as universidades e várias empresas de tecnologia estão desenvolvendo transgenia para várias finalidades: melhorias no rendimento do açúcar, produtividade por árvore de laranja, do arroz dourado (contra as deficiências de vitamina A). Vale lembrar a importância que teve a Embrapa na redução real dos preços de alimentos no Brasil nas últimas décadas: entre 1975 e 2000, o preço de uma cesta de alimentos que inclui leite, carne bovina, frango, arroz e feijão caiu, em média, 5,25% ao ano, devido aos ganhos de produtividade. Por trás dessa melhoria estão a mudança tecnológica, a pesquisa científica e a instituição Embrapa. Enquanto não forem equacionados por meio de regras e de instituições estáveis a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos, correm risco os avanços obtidos pela Embrapa (mamão e feijão resistentes a vírus).
Não é possível entrever em que consistirá o trade-off do governo em relação aos objetivos conflitivos que caracterizam a questão dos transgênicos, ou seja, não há política pública digna desse nome. A julgar pelas atribuições da Câmara de Biossegurança e pelo papel subordinado da CTNBio - sob a batuta da Casa Civil -, o problema não será resolvido, por causa de dois retrocessos. Um, o impulso de projetar a imagem de "refundação", que leva o governo a resolver conflitos pela via de um novo órgão (câmara, conselho).
No caso dos transgênicos, significa que as diferenças ideológicas e os conflitos de interesse serão decididos não por meio de regras estáveis, mas, ao contrário, arbitrados ad hoc num novo round de concentração de poderes na Casa Civil. Dois, é a politização doutrinária sem precedentes de uma questão que, sendo também política, tem forte dimensão técnica e científica.

Lourdes Sola, professora de Ciência Política da USP, é consultora da MB Associados. Maria Cristina Mendonça de Barros, economista, é diretora da MB Associados E-mails: mba.lourdes@uol.com.br e mba.barros@uol.com.br

OESP, 16/11/2003, Espaço Aberto, p. A2

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