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Os oito motores do desenvolvimento

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 65-109
23 de Jul de 2008

Os oito motores do desenvolvimento
Recursos naturais, mas também a indústria e grandes obrasde infra-estrutura, apontam uma nova rota de prosperidade para o Brasil. VEJA foi conferir as cidades que souberam converter surtos de riqueza em progresso social

Cláudio Gradilone e Victor De Martino

Às 5 da manhã, milhares de operários em macacões de trabalho esperam o transporte para o porto e o distrito industrial de Suape, em Pernambuco. À sua volta, cortadores de cana, pescadores, biscateiros e comerciários da mesma região sonham com a possibilidade de somar-se a eles. No mesmo horário, os empregados de tecelagens e confecções catarinenses lotam as ruas de bicicletas. Como as fábricas têm três turnos, a cena se repetirá outras duas vezes até o fim do dia. A fluminense Quissamã aplica em educação os royalties que recebe do petróleo. Em Itacoatiara, no Amazonas, crianças vão de barco para as noventa escolas construídas nos últimos dois anos fora da área urbana. Nas franjas da floresta, o dinheiro da soja constrói os primeiros arranha-céus da região. Quem percorrer o Brasil deparará com cenas como essas, símbolos de uma década que tem tudo para ser lembrada como aquela em que o país se reconciliou com o crescimento econômico. O novo surto de riqueza passa freqüentemente ao largo das metrópoles, que se desenvolvem lentamente ou estão estagnadas. No interior, a situação é inversa. São fartos os exemplos de cidades que enriqueceram e melhoraram as condições de vida de seus habitantes em um salto. Na maioria dos casos, o progresso está relacionado a oito "motores" da economia brasileira: soja, cana-de-açúcar, carnes, petróleo, extração mineral, obras de infra-estrutura, e as indústrias têxtil e automobilística.
VEJA dedicou os últimos seis meses a investigar esse novo ciclo de prosperidade. O trabalho começou com a análise de rankings de desenvolvimento econômico e demográfico. Foram identificados os 500 municípios com mais de 10 000 habitantes que registraram as maiores taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) e da população desde 2000. As mesmas cidades foram em seguida examinadas do ponto de vista da evolução de seus índices de escolarização e de criminalidade, do acesso à saúde, ao saneamento básico e à tecnologia. A questão seguinte era saber onde o afluxo de dinheiro havia redundado em avanços na qualidade de vida. A reportagem consultou demógrafos, geógrafos, economistas e institutos de pesquisa - além de fazer contato direto com a maioria dos municípios. Chegou-se, assim, a um grupo de 38 localidades espalhadas por quinze estados das cinco regiões do país. Uma equipe de oito repórteres e onze fotógrafos recebeu a incumbência de visitar essas cidades e averiguar se o enriquecimento havia se traduzido, de fato, em benefícios para a população.
O olhar desses jornalistas complementou os dados estatísticos. Eles percorreram 45 000 quilômetros, para descobrir que catorze municípios não transferiram sua riqueza para as comunidades. Alguns desperdiçaram o dinheiro em obras inúteis. Outros, em programas populistas. Há ainda aqueles em que os empresários e as empresas transferiram todos os lucros de sua atividade para cidades distantes, onde vivem ou mantêm suas sedes. Coari, no Amazonas, é um desses casos. Sua arrecadação cresce rapidamente impulsionada pelos royalties que a Petrobras paga para explorar sua jazida de gás natural. Apesar de endinheirada, a prefeitura não adotou medidas para estimular a economia. Não atraiu um investimento sequer. Gastou o dinheiro extra na construção de sete ginásios esportivos. Boa parte da população continua desempregada e vivendo em favelas. Os habitantes de Marabá, no Pará, tampouco colheram frutos do surto atual de riqueza. Seus pastos alimentam um dos maiores rebanhos de gado do país, mas os habitantes continuam miseráveis. A cidade vive seu quarto ciclo econômico. Já passou por borracha, castanha e ouro. Nessas três oportunidades, limitou-se ao extrativismo, permitindo que os produtos fossem enviados para beneficiamento em outros lugares. Até agora, não dá sinais de que saberá aproveitar melhor o gado. Como moram em Belém e no Sudeste, os pecuaristas não mantêm o dinheiro lá.
Os municípios retratados nas próximas páginas encontraram caminhos para o progresso social. Neles, o pleno emprego é regra. Eles dispõem de serviços que antes eram restritos aos grandes centros urbanos, como boas escolas, universidades e hospitais. Alguns possuem cinemas e teatros. São exemplos perfeitos do processo de interiorização que a economia brasileira atravessa. Nesta década, o PIB do interior cresceu 49%. O das metrópoles, 39%. Em dez anos, a indústria situada nas metrópoles cortou 5% dos postos de trabalho. Nas cidades menores, o emprego industrial subiu 30%. A pulverização econômica pode ser observada dentro dos estados e entre as regiões do país. A população do Norte e do Centro-Oeste cresceu duas vezes mais que a das outras regiões justamente porque ali foram criados mais empregos. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que em décadas passadas atraíram migrantes, hoje são exportadores de pessoas. Entre os destinos preferidos, só Santa Catarina pertence ao "Sul Maravilha" (que é como o Sudeste e o Sul eram chamados nos anos 70). Agora, o apelo vem de Goiás, de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul. No passado, os migrantes preferiam as capitais. Hoje, acorrem para cidades com menos de 500.000 habitantes. "A razão dessa mudança é que já há cidades médias com comércio e serviços comparáveis aos das capitais de anos atrás", diz o economista Paulo Haddad.
Em alguns casos, a qualidade de vida do interior é melhor do que nas metrópoles. Na capital de São Paulo, vive-se menos do que em 381 municípios do estado. O mesmo acontece em relação a Belo Horizonte e 100 outras cidades mineiras. Nada menos que 440 municípios do interior têm uma educação pública melhor do que a de Curitiba, a capital mais bem posicionada em escala nacional. O ranking das escolas públicas traz dados semelhantes. Apenas cinco das trinta melhores estão situadas em capitais. "É um sinal do desenvolvimento rápido da educação no Norte e no Centro-Oeste. O ensino básico do Tocantins, por exemplo, já é o sexto melhor do país", diz o educador Claudio de Moura Castro. Segundo ele, essa situação começa, agora, a se reproduzir nas faculdades. Os levantamentos do Ministério da Educação mostram, por exemplo, que Caruaru, no interior de Pernambuco, sedia um dos melhores cursos do país de odontologia.
Muitas sementes do progresso que está sendo colhido agora foram plantadas nos anos 60. Algumas remontam às iniciativas de Brasília de cultivar o cerrado e de ocupar a Amazônia, política reforçada pelos governos militares, que pretendiam povoar áreas remotas para melhor defendê-la de eventuais invasores. "A idéia era distribuir propriedades no Norte a agricultores empobrecidos ou sem terra do Sul", lembra João Paulo dos Reis Veloso, ministro do Planejamento entre 1969 e 1979. A política estatal e o espírito desbravador dos sulistas frutificaram com o surgimento de variedades de soja adaptadas às condições do cerrado. Essa lavoura germinou de forma complementar ou em substituição à pecuária. Também neste caso as amplas extensões de terra e vantagens naturais do país foram decisivas. Antes, porém, foi necessário encontrar uma raça de gado adaptável ao Brasil, o zebu indiano, e melhorá-la geneticamente. Paulistas redescobriram o potencial da cana no Centro-Sul. A indústria automotiva iniciou um novo ciclo de expansão fora de São Paulo. Devastado pela concorrência dos asiáticos nos anos 90, o setor têxtil conseguiu se reerguer em várias regiões do país graças à eficiência de alguns empresários. "Essas são competências naturais do Brasil, e o mundo precisa delas", diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros.
Assim como a soja, a pecuária, a cana e os tecidos, a exploração de petróleo, a indústria do ferro e do aço se desenvolveram ao largo das metrópoles. O mesmo aconteceu com a infra-estrutura e os portos. Os antigos terminais, em torno dos quais se expandiram muitas das atuais metrópoles, estão atravancados. Os cais onde o movimento de carga cresce mais se situam fora dos grandes centros urbanos. Os oito motores do crescimento empurraram a economia país adentro. Pioneiros e desbravadores seguiram - e ainda seguem - para os municípios do interior. "A população nunca esteve tão bem distribuída no território nacional quanto hoje", diz o geógrafo Glauco Umbelino. As reportagens deste especial não se detêm sobre as várias cidades que sucumbiram às mazelas do país. Em suas viagens, os jornalistas de VEJA se debruçaram sobre um Brasil ainda pouco conhecido - mas do qual vêm muitas boas notícias para o país.
Com reportagem de José Edward

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 65-77

De grão em grão
Em trinta anos, o mato, a poeira e a escuridão deram lugar à capital mundial da soja

José Edward

Sorriso, no norte de Mato Grosso, é a capital mundial da soja. É o município que mais produz o grão: 2,5 milhões de toneladas por ano. A produtividade de suas fazendas também é a maior do mundo: 55 sacas por hectare. O município detém ainda outro recorde internacional: tem a maior proporção de território coberto por lavouras. A riqueza da soja é visível nas esquinas de Sorriso. Em 2005, sua prefeitura contratou o urbanista Jaime Lerner, ex-governador do Paraná, para criar o plano diretor que norteará o crescimento da cidade até 2020, quando a população atingirá 200 000 habitantes, três vezes a atual. Com base no plano, foram abertas avenidas com canteiros ajardinados, erguidos arranha-céus e bairros inteiros com saneamento e asfalto. Os grandes fazendeiros aboletaram-se em casas de 1 000 metros quadrados e mais de 1 milhão de reais. Os terrenos que cercam as casas dos mais endinheirados valorizaram-se até 1 000% em vinte anos. Apareceu até uma loja que os locais consideram a sua Daslu, ícone do consumo dos ricos paulistanos. A Século abastece a elite da soja com produtos de grifes de luxo. O plano de Lerner previu a construção de um aeroporto para receber jatos de grande porte, que deve ser inaugurado ainda neste ano.
A prosperidade de Sorriso sintetiza o progresso que a soja semeou pelo Centro-Oeste brasileiro. No fim dos anos 70, o lugar era coberto pelo cerrado. O único vestígio de civilização era uma rodovia recém-construída que ligava Cuiabá a Santarém. O governo colonizara a região com agricultores pobres do Sul do país. Lá, os desbravadores só encontraram onças, cobras, mosquitos e doenças. Sua situação era tão desalentadora que eles passaram a repetir como um mantra o ditado "é melhor sorrir do que chorar". Foi daí, e não de qualquer alusão alvissareira, que saiu o nome Sorriso. Apesar das dificuldades, o povoado foi instalado em uma região com sol abundante, chuvas regulares e terreno plano, perfeitos para as lavouras mecanizadas. Essas condições permitem que fazendas como as do gaúcho Darcy Ferrarin produzam o ano inteiro. Nas entressafras da soja, ele planta milho ou capim para a engorda de gado. A tecnologia avançada permite que ele fature vinte vezes mais do que há dez anos plantando na mesma área.
O dinheiro injetado na economia pelo milionário negócio da soja abriu novas oportunidades para os agricultores. Em 1986, Claudio Zancanaro deixou o Paraná para trabalhar na pequena lavoura de soja de sua família. Investiu os lucros em uma fábrica de óleo e de farelo do grão, que emprega setenta pessoas e fatura 80 milhões de reais por ano. O movimento mais recente foi a explosão do setor de serviços. A proporção de médicos por habitante já supera em 50% o padrão recomendado e ainda há campo para esses profissionais. Há dois anos, sete médicos e dentistas forasteiros se uniram para atender os fazendeiros ricos. A demanda por seus serviços, que vão de exames a pequenas cirurgias, foi tão grande que outros seis especialistas se associaram ao grupo. "Até o fim do ano, vamos instalar cinco novos consultórios na clínica", diz a ginecologista gaúcha Maria Teresa Endres. Seu marido, o engenheiro Antonio Adolfo, abriu a construtora Coenza, que se tornou uma das maiores da cidade. "Nossa renda quadruplicou", conta o empreiteiro. Sucesso semelhante foi alcançado pelo casal de professores Natal Rêgo e Sandra Matsuoka, que há sete anos abriu uma faculdade em Sorriso. O negócio começou oferecendo um curso de administração em um prédio cedido pela prefeitura. Em quatro anos, o casal conseguiu construir um câmpus próprio, onde ensina direito, letras, pedagogia, contabilidade e cursos profissionalizantes para 850 alunos.
Graças à expansão das lavouras de soja e às centenas de empresas que se estabeleceram na cidade em função delas, a economia municipal cresceu 64% nesta década. A receita da prefeitura atingiu 77 milhões de reais, dez vezes mais do que quando o município foi emancipado, em 1986. Esse salto possibilitou, entre outros avanços, o fornecimento de água tratada e de energia elétrica para 100% das residências. Quase todas as ruas foram pavimentadas. As dezenove escolas da rede municipal dispõem de laboratório de informática com internet de banda larga. A prefeitura montou uma frota de 36 ônibus para servir aos alunos que moram na zona rural. Esses benefícios estão explicitados nos indicadores sociais locais. VEJA listou os municípios que melhor mesclaram o crescimento com desenvolvimento da educação, da saúde e da tecnologia. Sorriso aparece em 12o lugar nessa lista. Por essa conjunção de fatores, tornou-se uma das cidades cuja população mais cresceu nesta década: 55%.
O lado nefasto da bonança apareceu no aumento da criminalidade, que é maior do que a média brasileira. Combater esse mal deveria ser uma das prioridades de Sorriso. Mas, por enquanto, a prioridade da cidade ainda é acelerar seu processo de enriquecimento. Para isso, pretende reduzir sua dependência da soja. A prefeitura dá incentivos à industrialização. Já atraiu um frigorífico de aves e outro de peixes, que se estabeleceram na cidade para aproveitar a proximidade das fábricas de farelo de soja, matéria-prima da ração desses animais. Agora, tenta conquistar um terceiro, de carne bovina, e um centro de pesquisas da Embrapa. A crença em um futuro promissor é tamanha que a prefeitura está construindo um centro de convenções para 1 700 pessoas em um dos novos bairros da cidade. Os migrantes que desbravaram o cerrado mato-grossense não encontram mais motivos para chorar.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 80-81

2. O novo ciclo da cana
Dolce vita em volta de uma usina de açucar
Cidade mostra como conciliar cana, desenvolvimento social e ecologia

Victor De Martino

Há um paraíso perdido em um mar de cana no noroeste de São Paulo. Em Pradópolis, não há desemprego. Todos os 15 000 habitantes são atendidos por água tratada e rede de esgoto. Até as ruas onde ainda não há casas são asfaltadas, arborizadas e com infra-estrutura instalada. Ninguém mora em barracos, muito menos na rua. A criminalidade é desprezível. A prefeitura mantém o melhor hospital da região, com médicos de todas as especialidades. A mortalidade infantil é 30% menor que a média paulista. A taxa de analfabetismo é um terço do índice nacional. Todas as crianças estão matriculadas em escolas públicas, boa parte delas em tempo integral. As que estudam meio período aproveitam o resto do dia para praticar esporte no clube municipal, o mesmo no qual o ídolo local, o lateral Cicinho, da Roma, acertou seus primeiros chutes. Uma academia de ginástica sustentada pela prefeitura é freqüentada principalmente por mulheres e aposentados. No fim da tarde, boa parte da turma da academia se reúne nas praças para jogar bingo. É tempo, então, de os trabalhadores que operam as máquinas das lavouras de cana e os funcionários das cinco usinas de açúcar e álcool das redondezas voltarem para casa. De bicicleta.
O setor sucroalcooleiro viveu um espetacular crescimento nesta década. Poucos lugares souberam explorar tão bem a bonança quanto Pradópolis. Desde 2000, o PIB e a arrecadação de impostos municipais triplicaram. A prefeitura usou a receita extra para ampliar o hospital, construir uma creche, reformar o distrito industrial e dar início a uma nova rodoviária, que deve ser inaugurada nos próximos meses. Os novos investimentos garantirão a manutenção da infra-estrutura criada pelos primeiros administradores da cidade. Pradópolis é uma espécie de feudo da família Ometto. Eles são primos do empresário Rubens Ometto, dono da Cosan, a líder mundial em álcool. Os Ometto de Pradópolis também estão entre os grandes fabricantes de derivados da cana, mas não têm negócios em comum com o primo famoso. Entraram de vez no ramo em 1949, ao comprar a Fazenda São Martinho, que hoje é a segunda maior indústria canavieira do país. Naquele tempo, suas terras ainda pertenciam ao também anônimo município de Guariba. Dez anos depois, os Ometto conseguiram emancipar a vila fundada pela família Prado, antiga dona da São Martinho.
Até 1996, os Ometto impuseram todos os prefeitos do município, que se dividiam entre suas responsabilidades da vida pública e suas obrigações como diretores da São Martinho. Os Ometto passaram a tratar Pradópolis como seu cartão de visita. Nos anos 70, a usina arcou com parte das despesas de construção de um anel viário que evitou o tráfego de caminhões de cana pelo centro da cidade. Com os impostos pagos pela usina, os prefeitos praticamente nomeados pelos Ometto elaboraram um plano piloto, abriram praças e ruas largas e instalaram uma estação de tratamento de esgoto. "Eles sempre levavam todos os empresários que visitavam a usina para conhecer a cidade", conta o advogado Paulo César David. Os Ometto também providenciaram o povoamento de Pradópolis. No início, importaram mão-de-obra dos centros produtores de cana do Nordeste. O pai de David, José, veio de Alagoas e incentivou seu filho a trabalhar na São Martinho. Ele começou como mecânico. A usina pagou seu curso de direito e a prefeitura forneceu o transporte para a faculdade. Aos 43 anos, David atua como advogado trabalhista da empresa. Cansado de procurar trabalho, o metalúrgico Luiz dos Santos mudou-se para Pradópolis em 1985. Arranjou emprego para si. Depois, emplacou seu filho Maicon como estagiário quando ele tinha apenas 16 anos. A usina pagou sua graduação em administração. Onze depois, Maicon é um dos analistas de recursos humanos da São Martinho.
A cana-de-açúcar foi o combustível da expansão econômica e populacional de vinte das 500 cidades brasileiras que mais cresceram nesta década. Pradópolis encabeça a lista porque adotou novas soluções de produção de açúcar e álcool e de gestão pública. O corte manual da cana está com os dias contados. Hoje, 85% da colheita já é mecanizada. Quando as colheitadeiras começaram a substituir os bóias-frias no campo, as usinas requalificaram a maioria deles, fornecendo programas de estudos e cursos técnicos profissionalizantes. Resultado: alguns dos demitidos chegaram mesmo a ter vantagens. Durante sete anos, Helio do Nascimento cortou cana para a São Martinho. Agora, ganha o dobro dirigindo colheitadeiras. Uma parte dos dispensados encontrou trabalho em outras fazendas e usinas da região. O desemprego decorrente da mecanização se tornou marginal. Pradópolis também tomou medidas para proteger o meio ambiente. Aboliu a prática secular da queima dos canaviais em tempo de safra, que é extremamente poluente. Com o bagaço de cana, a São Martinho produz toda a energia que consome e vende um excedente capaz de abastecer uma cidade de 30 000 habitantes. Pradópolis prova, assim, que é possível combinar a produção maciça de açúcar e etanol com desenvolvimento social.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 84-85

3. Economia com tração bovina
Cidade em regime de engorda
Em trinta anos, um entreposto de gado no Norte passou a ostentar indicadores sociais dignos do Sul Maravilha

Igor Paulin

Se há um lugar onde o mito do eldorado amazônico ganha contornos de verdade, é em Vilhena, no sul de Rondônia. A cidade surgiu do nada há trinta anos. Hoje, ostenta índices de qualidade de vida semelhantes aos do Paraná. É a metrópole dos criadores de gado. Seus pastos e os dos sete municípios do entorno alimentam 2,5 milhões de reses. Centro regional de serviços, Vilhena também é o principal destino dos fazendeiros de outras cidades. Eles gastam, em média, 30 milhões de reais por ano na feira agropecuária local. Mesmo que não morem nos limites do município, dependem de Vilhena para o dia-a-dia. Lá compram veículos, roupas e fazem supermercado. Vão ao médico, ao banco e põem seus filhos na escola. Apesar de ter apenas 67 000 habitantes, Vilhena já mantém três instituições de ensino superior. Não falta trabalho e os salários são superiores aos de Porto Velho, a capital do estado. A regra vale até para o futebol. Na temporada passada, o atacante Souza, um dos artilheiros do campeonato estadual, defendia as cores da cidade de Ji-Paraná. Virou a casaca para ganhar 30% a mais no Vilhena Esporte Clube.
Vilhena está estrategicamente posicionada no meio da Rodovia BR-364, que liga Porto Velho a Cuiabá. Foi povoada por agricultores do Sul e do Sudeste, atraídos por loteamentos feitos por Brasília e slogans como "Integrar para não entregar" e "Terras sem homens para homens sem terras". Foi uma verdadeira conquista do Oeste - ou do Noroeste. Em boléia de caminhão, o percurso até Vilhena levava quinze dias. A estrada só recebeu asfalto em 1982, o mesmo ano em que foi inaugurado seu aeroporto. As obras provocaram um surto de crescimento. A cidade se tornou um dos principais entrepostos comerciais da Região Norte. Em quatro anos, sua população triplicou e atingiu 36?000 habitantes. Ao facilitar o transporte dos bois, a rodovia enriqueceu os criadores de gado e proporcionou à prefeitura sua principal fonte de arrecadação.
A estrada deu novo impulso ao comércio. A BR-364 é cortada diariamente por 700 caminhões de soja, que se dirigem a Porto Velho, onde embarcam o grão nas barcaças que cruzam o Rio Madeira. Vilhena é ponto de parada dos caminhoneiros, que lá abastecem seus veículos e fazem compras. O gado, os serviços e a soja fizeram com que nesta década o PIB municipal crescesse 73% e a população, 25%. Os vilhenenses solicitaram um comércio mais sofisticado. Em 1975, o grupo Pato Branco era só uma mercearia de secos e molhados. Depois que a rodovia foi construída, a empresa abriu um posto de gasolina, uma revendedora de pneus e, hoje, possui o maior supermercado da região. Agora, constrói o primeiro shopping center da cidade. "Quando ele ficar pronto, Vilhena vai parecer uma Suíça rondoniense", sonha Selito Bagatini, dono do Pato Branco.
Como não poderia deixar de ser, apareceu um clã para tomar conta da política. Detalhe: quando os Donadon chegaram, a economia local já estava em disparada. Vilhena já elegeu quatro Donadon: dois prefeitos, um deputado estadual e outro federal. O negócio da família é o gogó. Tanto que ela não se contenta apenas com o poder. Quer dominar também os palcos de Vilhena. Os parlamentares Natan e Marcos exibem um repertório sertanejo em shows. "Quase viramos profissionais", diz o deputado estadual Marcos, que se submeteu até a um implante capilar para não comprometer a estampa da dupla. Suas irmãs, Miriam e Raquel, enveredaram pelo gospel. O prefeito Marlon, primo deles, ataca no pop. Todos cantaram para a reportagem de VEJA.
O eldorado amazônico é o mais bem posicionado do Norte e do Nordeste em todos os rankings elaborados por VEJA. É a única cidade destas regiões a aparecer entre as vinte primeiras colocadas quando é considerado o desenvolvimento da economia e da qualidade de vida (educação, saúde, segurança e acesso à tecnologia). O futuro promete ser alvissareiro. Brasília pretende conectá-la à costa baiana por meio de uma ferrovia. Mais avançado está o projeto de ligá-la a um porto no Pacífico. Os primeiros trechos da rodovia, que se estenderá até a costa do Peru, já estão concluídos.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 86-89

4. A era de ouro do ferro
Um metal precioso
O ferro convertido em aço produz riqueza,desenvolvimento e cultura em Minas Gerais

José Edward

A riqueza produzida pelo ferro e pelo aço reluz em Ouro Branco, no Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais. Nos anos 70, o governo federal escolheu a cidade como sede da Açominas, então uma siderúrgica estatal. Ouro Branco deve o investimento à sua localização estratégica, eqüidistante das jazidas de ferro e dos centros consumidores de aço. Seis municípios situados em um raio de 100 quilômetros fornecem todo o minério necessário para que a usina seja considerada uma das mais produtivas e eficientes do Hemisfério Sul. O ferro e o aço desencadearam um surto de progresso comparável ao que teve início no século XVII, quando bandeirantes paulistas descobriram lá o ouro claro que dá nome à cidade e com o qual ela concorreu com a então mais bem-sucedida Ouro Preto. Nos últimos cinco anos, a demanda internacional por aço reaqueceu a economia local. Atual dono da siderúrgica, o grupo Gerdau está investindo 2,5 bilhões de dólares para diversificar e ampliar sua produção em 50%. A economia de Ouro Branco cresceu 140% nesta década. O surto de prosperidade se disseminou pelos municípios que detêm as minas, onde mora grande parte dos funcionários da Açominas. Essas cidades são sustentadas pelas mineradoras, que pagam royalties para a exploração do metal.
Ouro Branco não passava de um lugarejo quando recebeu a Açominas. Há trinta anos, só 7 000 pessoas moravam no local. A indústria precisou importar um exército de operários tanto para construir quanto para operar os altos-fornos. O comércio e os outros serviços se expandiram para atendê-los. Boa parte da população que, até então, vivia da cultura da batata na zona rural foi atraída para os empregos criados na área urbana. Foi necessário abrir oito bairros para abrigar todos os migrantes - três dos quais nas imediações da siderúrgica. Hoje, só 15% dos 35 000 habitantes de Ouro Branco ainda vivem em fazendas. A qualidade de vida da população evoluiu rapidamente. Um dos rankings elaborados por VEJA para a confecção desta reportagem combinou a evolução dos dados econômicos e demográficos com a proporção de médicos, crianças matriculadas na escola e moradores com acesso à banda larga. Ouro Branco ocupa o sexto lugar dessa lista. O ciclo virtuoso se espalhou pelos municípios que fornecem ferro à siderúrgica. Quatro deles, Ouro Preto, Mariana, Congonhas e Brumadinho, estão entre os sessenta primeiros colocados.
Com dinheiro no bolso, os cidadãos de Ouro Branco demandaram serviços mais sofisticados, como o esporte. Ex-funcionária da Açominas, Virgínia Leles aproveitou a transformação. Há cinco anos, ela percebeu que o tênis tinha se tornado moda na elite local e construiu uma academia para a prática do esporte, que já está em ampliação. A presença da siderúrgica também impulsionou os indicadores sociais. Sua contribuição mais sólida ocorreu no campo da educação. A Açominas povoou Ouro Branco de engenheiros e outros profissionais de nível superior. Esse contingente mandou seus filhos para a faculdade. Hoje, 18% dos habitantes têm curso superior, quase três vezes mais que a média do país. E educação trouxe mais educação. As escolas públicas passaram a ser geridas por um regime de metas, semelhante ao adotado pelas empresas privadas. Agora, o desempenho de cada aluno é monitorado semanalmente por meio de gráficos. "Temos dados e ferramentas para diagnosticar problemas, corrigir erros e planejar o futuro", diz Lourdes Furtado, diretora de uma das escolas rurais de Ouro Branco.
A educação também trouxe cultura. Desde 2001, as empresas instaladas na cidade mantêm a Casa de Música, uma instituição privada que ensina música erudita a crianças e adolescentes pobres. Os que mais se destacam ingressam na orquestra de câmara municipal. A experiência foi tão bem-sucedida que, em 2004, a entidade passou a promover um festival anual de música erudita. Durante uma semana, instrumentistas brasileiros e estrangeiros dão concertos gratuitos e transmitem conhecimento em workshops. "Esse ciclo de enriquecimento é ainda mais virtuoso do que o do ouro, porque está beneficiando cidades inteiras, e não só os donos das minas", diz Paulo Camillo Penna, presidente do Instituto Brasileiro de Mineração.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 90-93

5. Combustível de 1 000 cidades
Como o petróleo pode fertilizar negócios
Linhares descobriu uma fórmula para disseminar a riqueza que jorra de seus poços de óleo e gás por toda a sua economia

Marcelo Bortoloti

Há quatro anos, a Petrobras encontrou petróleo na fazenda de Jair Marim, em Linhares, no Espírito Santo. Aos 75 anos, Marim já era um bem-sucedido produtor de cana-de-açúcar e pimenta. Poderia ter simplesmente sentado sobre sua reserva e desfrutado os royalties que brotaram da terra. Preferiu investir em novos negócios. Comprou um hotel. Os 66 quartos do Linhatur são modestos. Ainda assim, vivem ocupados por funcionários da indústria de petróleo, que espetou 1 400 torres de extração de óleo na superfície de Linhares e mantém ali a segunda maior usina de processamento de gás do país. O movimento intenso do Linhatur e o volume de royalties pagos pela Petrobras incentivaram Marim a erguer um novo hotel. Desta vez, com acomodações mais luxuosas e o dobro da capacidade. "Os preços aqui já estão mais altos do que na capital, mas a freguesia está exigindo qualidade", explica. Marim, outros empresários de Linhares e o governo local conseguiram fazer com que o município aproveitasse a riqueza do seu subsolo melhor do que qualquer uma das outras 908 cidades brasileiras que recebem royalties do petróleo.
A literatura econômica é pródiga em estudos que mostram como o dinheiro de jazidas de óleo pode atrair má sorte para uma comunidade. Em muitos casos, ele incentiva a corrupção entre os políticos e não beneficia o conjunto da população. O fenômeno é conhecido como maldição do petróleo, que transforma até países em dependentes compulsivos da receita do produto. Linhares é atípica por dois motivos. Primeiro, porque o petróleo jorra em sua superfície, e não de campos em alto-mar, como ocorre nas principais bacias do país. Depois, porque a cidade descobriu uma receita para esconjurar a maldição. Os royalties, os investimentos da Petrobras e os salários de seus funcionários deram um novo estímulo aos empresários, que já sustentavam uma indústria diversificada. O município é um pólo moveleiro e metalúrgico. Também tinha uma agricultura potente. Linhares é o principal produtor de papaia do país e abriga os grandes exportadores da fruta. Um deles, José Carlos Marcondes, mantém noventa empregados para remeter semanalmente 60 toneladas do mamão ao exterior. O crescimento da cidade lhe deu entusiasmo para iniciar um novo negócio. Ele montou o Rio Doce, um laboratório de análise ambiental para atender à demanda das empresas que prestam serviço à Petrobras. "Já estou expandindo a empresa para atender outros clientes", diz Marcondes.
Embalada pelo petróleo e pelo surto empreendedor, a economia de Linhares cresceu 70% desde 2000. Há quatro anos, a cidade contava com 600 indústrias. Hoje, tem 1 000. O número de estabelecimentos comerciais cresceu 53% no mesmo período. A prosperidade atraiu 12 000 migrantes, boa parte deles apenas para trabalhar no setor de petróleo e gás, que emprega 9 000 pessoas. Esse contingente aumentou em 10% a população local, que chegou a 125 000 habitantes. A prefeitura tirou proveito dos royalties e do aumento da receita de impostos. Há dois anos, o ensino público fundamental da cidade recebia notas inferiores à média brasileira nas avaliações do Ministério da Educação. Agora, pontua melhor que a média do país. A prefeitura está requalificando seus funcionários. Oferece supletivo durante o expediente para 1 400 deles que não completaram o nível médio. Os 800 que já têm curso superior iniciaram a pós-graduação. A demanda por cursos superiores passou a ser atendida por uma recém-inaugurada faculdade pública municipal.
Na periferia, 16% dos barracos foram substituídos por moradias decentes. O governo pretende erradicar todas as favelas até 2010. No centro, começam a surgir prédios. Nove já ficaram prontos. Outros 23 estão em obras ou em fase de projeto. Um deles é um edifício de quarenta apartamentos ao custo unitário de 500 000 reais da construtora de Marcelo Japhet. Há dez anos, o empresário tinha um posto de gasolina. Depois que o petróleo começou a jorrar, o número de carros novos vendidos dobrou. As vendas de Japhet quintuplicaram. Ele investiu os primeiros lucros em uma academia de ginástica e, em seguida, enveredou pela construção civil. Aqui e acolá, os primeiros arranha-céus se juntam às torres de extração de petróleo no horizonte de Linhares.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 94-97

6. O país das montadoras
Cidade com novo motor
A Ford injeta ânimo num decadente pólo petroquímico

Duda Teixeira

Há dez anos, Maria das Graças Oliveira pensava em fechar as portas do seu restaurante, o Ki-Mukeka, e deixar Camaçari, cidade de 220 000 habitantes. Sua clientela minguava desde que os produtos do pólo petroquímico da cidade começaram a perder mercado para similares importados, no início dos anos 90. Nove mil dos 15 000 empregos do pólo haviam simplesmente desaparecido. Maria das Graças resolveu manter o restaurante funcionando depois que a Ford anunciou que construiria ali uma fábrica. Em uma década, a montadora e seus 31 fornecedores reduziram o desemprego em 10 pontos porcentuais, criando quase 9 000 vagas. Para atender essa nova clientela, Maria das Graças trocou o fogão de três bocas por dois de seis bocas cada um. O número de funcionários do Ki-Mukeka saltou de três para onze. Para fazer seu restaurante progredir, a empresária precisou de uma inovação tecnológica. O prato que dá nome ao estabelecimento demorava meia hora para ficar pronto. Maria das Graças criou, então, a "moqueca expressa", que chega à mesa em cinco minutos e se tornou uma das opções preferidas dos funcionários da indústria automotiva. "Ou a baiana aqui aprendia a ser rápida ou perdia a freguesia", diz a empresária.
A montadora trouxe 2 bilhões de dólares em investimentos privados para Camaçari. Em 2003, apenas dois anos depois de a Ford iniciar suas atividades, o PIB do município ultrapassou o de Salvador. Manteve-se como o maior do estado por quatro anos. Cresceu 80% nesta década. Camaçari passou por um surto de expansão que só havia conhecido durante a instalação do seu pólo petroquímico, em 1978. Daquela vez, atraiu 60 000 imigrantes. Desta, já repetiu a marca. A diferença entre o primeiro surto de desenvolvimento e o atual é a qualidade. Nos anos 70, a maioria dos funcionários morava e gastava em Salvador. Por isso, o pólo enriqueceu Camaçari, mas não seus habitantes. Só 3% das suas casas estavam conectadas à rede de esgoto. A maior parte da população morava em favelas e os indicadores sociais eram aterradores. O enorme poder multiplicador da indústria automotiva ajuda a corrigir essas distorções.
A Ford poderia ter importado mão-de-obra de outros estados. Em troca de benefícios fiscais, recrutou e qualificou os trabalhadores locais, que já eram mais baratos. Nada menos que 90% dos funcionários da companhia residem em Camaçari ou na sua vizinhança. A maioria desse pessoal foi selecionada entre jovens cuja carteira de trabalho nunca havia sido assinada. Cada emprego criado pela montadora abriu dois novos postos formais de trabalho em empresas de Camaçari. Com salário e perspectivas de carreira, essa turma foi às compras. Há quatro anos, duas concessionárias vendiam motos novas e usadas na cidade. Agora, Camaçari tem seis revendedoras. Nenhuma delas oferece mais produtos de segunda mão. Muitos dos que compraram moto nos primeiros anos da Ford na cidade já estão trocando de veículo. Para atendê-los, foram abertas dez lojas de carros nesta década. Desde 2000, a frota de veículos aumentou espantosos 130%. E, como não poderia deixar de ser, o consumo de combustível aumentou e ensejou a abertura de novos postos. Quinze, ao todo. "Quem andava a pé comprou moto e quem tinha moto comprou carro", diz Maurício Costa, que abriu seu terceiro posto.
A Ford começou um novo ciclo de treinamento de pessoal. Em três anos, seu Centro de Desenvolvimento de Produtos precisa contratar 2 000 engenheiros. Eles desenharão os veículos que a montadora lançará no futuro, desde os detalhes aerodinâmicos até as peças do motor. É um trabalho próprio para profissionais de ponta. Muitos dos funcionários desse departamento têm doutorado. Para encontrar gente com essa qualificação, a empresa firmou acordos com universidades do Nordeste e do Centro-Oeste. "Montadoras como a Ford geraram uma demanda sem precedentes por mão-de-obra qualificada fora de São Paulo", diz Letícia Costa, responsável por analisar o setor automotivo para a consultoria Booz & Company. Além da proximidade do Porto de Aratu, Camaçari tinha pouco a oferecer à Ford. Para conquistá-la, a Bahia concedeu imensos benefícios fiscais, mas deu fôlego à sua economia e à do município.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 98-101

7. A (re)abertura dos portos
De Pernambuco para o mundo
O Porto de Suape inaugura um novo ciclo de riqueza na economia nordestina

Leonardo Coutinho

Pernambuco iniciou um novo ciclo de enriquecimento - e ele está ancorado no Porto de Suape, a 40 quilômetros do Recife. Os investimentos previstos pelas empresas que pretendem operar na cidade de Ipojuca, à qual o porto pertence, somam 12 bilhões de dólares. A dinheirama transformou Suape no maior canteiro de obras do país. Quarenta mil operários trabalham na construção de novas fábricas, que, uma vez prontas, empregarão 15 000 pessoas. A demanda por mão-de-obra qualificada levou milhares de cortadores de cana, pescadores, biscateiros e comerciários de volta aos bancos escolares. Todos sonham em se misturar à multidão que espera os ônibus que ligam o centro de Ipojuca ao porto e ao distrito industrial. Vestir um macacão cinza, pardo e laranja como os desses operários é uma obsessão regional.
Inaugurado em 1984, Suape foi planejado para operar em associação com um complexo industrial, concepção idêntica à dos terminais de Marselha, na França, e de Kashima, no Japão. O potencial logístico, as vantagens fiscais e a mão-de-obra barata atraíram setenta empresas nos primeiros anos de funcionamento do porto. Para o fabricante de veludos Corduroy, o terceiro maior do mundo, foi fundamental instalar uma fábrica na área industrial de Suape. Mais perto da Europa e dos Estados Unidos, ela entrega uma encomenda à clientela em vinte dias, quarenta a menos que seus concorrentes asiáticos. Ainda assim, o potencial do terminal foi subaproveitado. Em 2005, o governo iniciou dois grandes projetos que lhe deram mais consistência econômica. Um deles é a refinaria Abreu e Lima, da Petrobras, que dará auto-suficiência em diesel ao Brasil.
Também determinante para o sucesso de Suape foi sua escolha para sede do maior estaleiro do Hemisfério Sul, das empreiteiras Camargo Corrêa e Queiroz Galvão. O Atlântico Sul já tem encomendas de doze petroleiros, que só serão concluídos em 2014. Para atender a sua demanda e à de outras fábricas, a CSN construirá no local uma siderúrgica de 6 bilhões de dólares. A industrialização está mudando as relações de trabalho e a sorte de uma população. O destino das vizinhas de Masilda de Souza, de 36 anos, foi o canavial. Ela só escapou dele porque seu pai tinha uma venda. Adulta, sobreviveu vendendo roupa de cama de porta em porta. Carregava diariamente um fardo de 15 quilos. "Sofria com o sol e dores nos braços, mas dizia: ainda vou trabalhar em Suape." Há sete meses, o Atlântico Sul a contratou porque ela obteve um dos primeiros lugares num concurso com 5 000 candidatos. Antes chamada de Masilda do Lençol, ela é, agora, "a mulher do estaleiro".
Casos como o de Masilda mostram que Suape está fazendo em Pernambuco uma revolução comparável à produzida pela cana-de-açúcar no século XVII. Até os anos 90, pensava-se que o futuro do porto estava atrelado apenas ao desenvolvimento industrial. Ele está se convertendo em escoadouro de soja. A ferrovia Transnordestina o conectará às regiões produtoras do grão no Nordeste. "Suape mudará a matriz econômica de Pernambuco", diz o economista Osmil Galindo, da Fundação Joaquim Nabuco. Os investimentos desembocam no porto de Ipojuca por causa de sua situação privilegiada. Seus 15 metros de calado e seu canal de 300 metros de largura comportam a maioria dos grandes cargueiros do mundo. Bem abrigados, os cais permitem a atracação sob quaisquer condições de tempo. Por causa dessas características, além da ampla área de retroporto e dos equipamentos modernos de que dispõe, Suape é considerado o melhor terminal público do país.
Nesta década, a arrecadação municipal subiu espetaculares 1 000%. A riqueza recente ainda não se traduziu em indicadores sociais, mas o número de crianças matriculadas nas escolas subiu de 13 500 para 25 000 desde 2000. Empregos e melhores condições de vida incentivaram a imigração. A população cresceu 17% desde 2000 e hoje é de 70 000 habitantes. Até o fim da década, aumentará mais 20%. Ainda assim sobram empregos. O comércio comemora. Há três anos, Cláudio Barbosa, dono do supermercado Gordinho, tinha oito funcionários e vendia 30 toneladas de alimentos por mês. Hoje, emprega noventa pessoas e suas vendas quintuplicaram. Há três meses, Barbosa passou a construir casas para os trabalhadores de macacão cinza, pardo e laranja de Suape em áreas que eram ocupadas por canaviais plantados há quatro séculos.

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 102-105

8. Um novo tecido social
Figurino de desenvolvimento
Descendentes de europeus usam parte do lucro de suas confecções para erguer uma cidade-modelo no Sul

Sérgio Martins

Jaraguá do Sul fica no nordeste de Santa Catarina, mas poderia estar na Europa. Na cidade, o índice de mortalidade infantil, 80% menor do que o brasileiro, é semelhante ao da Inglaterra. A taxa de analfabetismo beira zero, como na Suíça. A proporção de homicídios por habitante, um sexto da nacional, é parecida com a espanhola. As semelhanças não se restringem aos números. A influência européia é visível nos rostos brancos, nos cabelos loiros, na arquitetura, nas festas populares, nos pratos típicos e no motor de sua economia: a indústria têxtil. Imigrantes europeus, em especial os alemães, trouxeram os primeiros teares para Santa Catarina no fim do século XIX. No entorno de Jaraguá do Sul, pelo menos doze outras cidades dependem das tecelagens e confecções. A região é um exemplo acabado da capacidade do setor têxtil de melhorar o padrão de vida de uma comunidade, e nenhum caso é tão emblemático quanto o de Jaraguá do Sul.
Antes de ser um pólo têxtil, a cidade era um imenso arrozal. Jaraguá só se industrializou nos anos 60. Então, teares de fundo de quintal foram substituídos pelos maquinários de tecelagem e por confecções. A indústria nascente de Jaraguá se beneficiou do conhecimento técnico herdado dos europeus e da presença de uma ferrovia que liga a cidade ao porto de São Francisco do Sul e a importantes centros consumidores. Muitos agricultores migraram para a cidade a fim de trabalhar nas tecelagens. Para eles, as fábricas serviram como porta de entrada na classe média, processo semelhante ao que ocorreu em outros lugares do mundo nos quais a indústria têxtil prosperou. Os antigos arrozeiros passaram a ganhar mais, dispensaram seus filhos do trabalho e os mantiveram por mais tempo na escola. O equilíbrio econômico de Jaraguá foi abalado nos anos 90, quando o país abriu o mercado para os produtos estrangeiros. Para sobreviver, as tecelagens precisaram se modernizar. Desde 2000, as empresas locais se reorganizaram, cada uma a seu modo. Hoje, esse setor responde por 22% do PIB da cidade e ajuda a fazer de Jaraguá uma das cinqüenta cidades brasileiras com maior oferta de emprego. Um levantamento feito por VEJA mostra que, nesta década, o município foi o que melhor conseguiu combinar os desenvolvimentos econômico, populacional e social.
A Malwee sobressai entre as indústrias que melhor se reciclaram. A empresa foi fundada em 1906 como uma fábrica de laticínios. Carregava, então, o nome da família de alemães que a criou, Weege, que só descobriu sua vocação têxtil há quarenta anos. Mudou o nome para Malwee, contração de Malharias Weege. Depois que a concorrência chinesa nocauteou seu negócio, o grupo passou a investir no mercado interno e em produtos para as classes C e D. Hoje, a Malwee produz 36 milhões de peças ao ano e emprega 6 000 pessoas. O grupo passou a investir na qualificação de seus funcionários. Pagou, por exemplo, parte do curso de administração e do MBA da ex-bordadeira Deise Kotchella. Depois de formada, ela foi promovida ao setor de marketing. "Como esses cursos são caros, eu jamais teria condições de fazê-los sem a ajuda da Malwee", diz. A relação secular da empresa com Jaraguá produziu bons dividendos para a cidade. Há trinta anos, a companhia transformou uma área de 1,5 milhão de metros quadrados em parque, equipou-o com dezessete lagos artificiais, museu, churrasqueiras e quadras esportivas e abriu seu acesso ao público. Desde o ano passado, a Malwee passou a patrocinar um festival de música clássica e doou quatro harpas e um piano de cauda para um evento.
Enquanto a Malwee apostou nas classes emergentes, a Marisol, outra importante empresa têxtil local, resolveu focar a clientela mais rica. Nos anos 90, seu negócio produzia peças de baixo valor agregado. Desde 2000, passou a investir em design e em grifes renomadas. Para coordenar essa guinada, o grupo até trocou de comando. Filho de Vicente Donini, o fundador da empresa, o arquiteto Giuliano Donini, de 33 anos, assumiu o comando. Em 2005, a Marisol comprou a grife Pakalolo e, no ano seguinte, a Rosa Chá. No mesmo ano, inaugurou uma loja em Milão, vizinha à da Prada e à da Dolce&Gabbana. Melhor das pernas, a empresa passou a investir em um programa de reintegração social de ex-presidiários, fornecendo emprego a eles. Experiências assim já são uma tradição em Jaraguá. Há vinte anos suas escolas públicas mantêm um educador para cada grupo de oito crianças. O programa foi custeado, em parte, pelas empresas locais. No fim dos anos 90, as tecelagens instalaram uma UTI infantil e um banco de sangue no hospital municipal. Iniciativas como essas mostram o empenho do empresariado local em constituir um tecido social mais homogêneo e resistente

Veja, 23/07/2008, Especial, p. 106-109

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