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Os médicos do clima

O Globo, Economia Verde, p. 32
Autor: VIEIRA, Agostinho
18 de Dez de 2014

Os médicos do clima

Agostinho Vieira
oglobo.glob_o.com/blogs/economiaverde
E-mail: economiaverde@oglobo.com.br

2025 Este é o ano limite para que os países do mundo todo comecem a reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa. A chamada janela de oportunidade. Depois disso, os problemas entram no campo do imprevisível e tudo pode acontecer. Até agora, só o que fizemos foi pagar pra ver.
Terminou na madrugada de domingo, em Lima, no Peru, mais uma Conferência das Partes da Convenção de Mudanças Climáticas da ONU. É a vigésima vez que representantes de quase 200 países se reúnem para buscar uma solução que amenize os efeitos do aquecimento global. E é a vigésima vez que quase nada acontece. De concreto, só uma mudança nas metáforas médicas em torno do tema.
No início, quando os céticos do clima ainda tinham prestígio, a comparação mais comum era com os profissionais de saúde que insistiam em defender a tese de que o cigarro não causava câncer de pulmão. Eles existiram, pode acreditar, e não eram poucos. Muitos foram bancados pela indústria. Mas havia também os que se moviam apenas por orgulho ou teimosia. Ainda é possível encontrar um ou outro na internet, mas são cada vez mais raros.
Os que apostam que a mudança climática é uma lenda vão pelo mesmo caminho. Eles são mais numerosos, é verdade. Alguns, bem intencionados. Outros recebem incentivos de uma indústria mais poderosa que a anterior. Mas estão sendo atropelados pelos fatos. As provas de que o planeta está aquecendo e que a responsabilidade é do homem são tão claras que até os EUA e a China já se comprometeram a fazer alguma coisa, mesmo que timidamente.
Aí entra a segunda metáfora médica, a do cardiologista. Muita gente acha, com certa razão, que essa história de mudança climática é chata, repetitiva e que não leva a lugar algum. É como o paciente que ouve a mesma coisa sempre que vai ao médico: você precisa emagrecer, tem que fazer exercícios, tome os remédios regularmente, reduza as feijoadas, esqueça o torresminho, se afaste da bebida.
Uma chatice. Principalmente para quem escuta essas coisas todos os anos e não faz nada. A solução, infelizmente, acaba sendo precedida por um ataque cardíaco ou coisa parecida. A "angina climática" talvez seja menos letal, mas ela vai matando aos poucos, em forma de furacões, tornados, enchentes e secas cada vez mais frequentes. Um relatório divulgado esta semana pela Academia Brasileira de Ciências a respeito da crise hídrica na região Sudeste é um bom exemplo de diagnóstico.
Ele diz: "São fortíssimos os indícios de que há uma mudança climática em curso, evidenciada pelas análises de séries históricas de dados climáticos e hidrológicos e também por projeções de modelos climáticos, com consequências nas reservas de água e em todo o planejamento da gestão dos recursos hídricos. Estas mudanças climáticas não são apenas pontuais. Há indicações e fatos que apontam para sua possível continuidade, o que configura uma ameaça à segurança hídrica da população da região Sudeste, especialmente da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), do interior de Minas Gerais e do Estado do Rio de Janeiro, de modo que todos devem estar preparados para eventos climáticos cada vez mais extremos".
O texto faz parte da "Carta de São Paulo", assinada por 15 dos mais respeitados cientistas brasileiros da área de clima e de hidrologia. Eles resolveram deixar de lado a tradicional ponderação para fazer um alerta. Defendem que seja feito, imediatamente, algum tipo de racionamento e que se estabeleçam multas pesadas para o desperdício de água. Concluem dizendo que é preciso haver transparência: "a população deve ter acesso a uma informação verdadeira, integral e atualizada". Ou seja, já passou muito da hora de cortar o torresmo.
Com isso chegamos ao terceiro e talvez o mais importante dos médicos: o psicanalista. Podemos adotar o clichê famoso e dizer que o aquecimento global é culpa dos nossos pais. De certa forma é mesmo. Eles podiam ter feito muito mais do que fizeram. Mas, no fundo, toda essa discussão climática tem a ver com a relação que temos com o outro ou o próximo. Não importa se esse próximo é um vizinho, um amigo, os filhos, os netos, um habitante da África ou da Ásia.
Estamos dispostos a abrir mão de parte do conforto de hoje em troca de um futuro ou de um presente melhor para todos? A janela de oportunidade para evitar um desastre climático é agora. Ela ficará aberta, no máximo, até 2025. Os investimentos e sacrifícios terão que ser feitos já, por cada um de nós. Não dá para delegar. Tem gente que prefere continuar com o cigarro, apesar do câncer. Aproveitar a feijoada e esquecer a angina. Para eles, o importante é viver o hoje, o aqui e o agora. Só que desta vez é diferente. Estamos todos no mesmo barco.

O Globo, 18/12/2014, Economia Verde, p. 32

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