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Os bons selvagens da mídia

Diário do Amazonas-Manaus-AM
Autor: Elaíze Farias
10 de Dez de 2004

Todos querem ser índios. A branquela do sul com sua curiosidade antropológica. O jornalista com seu faro para o exótico. O pesquisador de qualquer área com seu olhar condescendente a tudo que é incomum.

Ninguém quer ser aquele índio doente, subnutrido, com terras invadidas por garimpeiros e arrozeiros. Querem ser sim o índio turístico, aquele bom anfitrião que recebe o branco com pinturas no corpo, colares e sorrisos inocentes. Para retratar o índio, é preciso manter a visão idealizada do "bom selvagem".

Tem que ser índio tímido. Nada de índio que questiona, que briga, que pega em armas, que defende seu território, que tenta denunciar maus-tratos nos jornais. Por que? A humanidade já tem problemas demais. O índio da mídia precisa ser bondoso, coitadinho, resignado.

A humanidade já teve uma época em que era apenas feliz. Neste "estado da natureza", no sentido de Rousseau, não havia desigualdade nem violência. Na verdade, havia, mas sempre por uma boa causa - conseguir comida, basicamente.

Daí vieram guerras, briga por um pedaço a mais de terra, embates entre homens poderosos e vaidosos, inventaram religiões para justificar repressões e a coisa desandou. Nada mais poderia ser feito. A sociedade deixou de ser primitiva afinal. Alguma coisa a humanidade tinha que perder, para ganhar outra. A civilização havia chegado.

De uns tempos para cá, o estresse, os amores desiludidos, a obesidade, a vida sedentária, as atribulações da geral, enfim, cansaram o homem e a mulher civilizados. Todos querem voltar ao estado natural. Nada melhor do que se inspirar nos indígenas.

Da semana passada para cá vi três programas na televisão onde o tema "índio" era a pauta dos documentários. Sempre no mesmo local. Xingu. O Xingu é o exemplo da comunidade idealizada pelo branco. Gisele Büdchen vai lá fazer média com o namorado, se pinta, dança e conversa com as índias. É medicada por um pajé. Sai fortalecida espiritualmente. É o modo de sobreviver daqueles vários povos que moram na região. Mostrar-se ao mundo.

O roteiro é aquele que a gente já está acostumado a ver. O deslumbramento com o diferente. Vida de nativo é realmente muito curiosa. Anticonvencional. Uma entrevista com algum especialista. Etnólogo, de preferência. As conversas informais. Ao final, o repórter participa dos rituais, tira foto, enfeitado com penas, para se exibir aos colegas da cidade.

Numa revista que costumo comprar mensalmente, li uma reportagem assinada por uma jornalista que passou alguns dias numa aldeia xavante, no Mato Grosso. Encantada, ela registrou o cotidiano daquela aldeia. Crianças sorrindo, chefes que não exprimem vaidade, idosos respeitados. Tudo muito idílico. Tudo verdade. Mas com uma leitura típica de quem só conhece um lado da realidade. Os xavantes estão entre os povos mais machistas da sociedade indígena. Quem me disse isso foi uma mulher indígena, funcionária de uma entidade de defesa dos direitos femininos em Brasília (não sei se ela continua na entidade, parece que teve mudança na gestão). Esposa de xavante, ela contou (durante uma entrevista que fiz com várias mulheres de movimento indígena) que teve que lutar muito para convencer o marido a deixa-la trabalhar. Era enfermeira de formação, mas sua atuação estava mais centralizada nos debates e embates políticos.

As sociedades indígenas são complexas. Tem regras rígidas de comportamento. Aquela imagem paradisíaca só existe nos filmes. Há repressão, normas de conduta, hábitos seculares, tabus, sistemas de parentescos intocáveis. Algumas sociedades são mais flexíveis, outras nem tanto.

Mas não é a vida particular de cada comunidade que pretendia discutir aqui. Longe disso. Não é a minha área. Mas sim como a mídia costuma explorar o assunto "índio" nas suas pautas diárias. Das revistas de fofoca aos documentários, a maioria das reportagens segue uma linha comum. Ao fim, para um epílogo grandioso, nada melhor do que um apelo para que não me mexa com os índios.

Por que contaminar a vida dos nativos com a presença de televisão, parabólica, celular, computador? Essa é a idéia dos brancos. A vida em comunidade alternativa é bem melhor. Não há desigualdade, todos vivem bem, as crianças são criadas por todos. Afinal, são homens primitivos, mas bondosos.

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