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Organizações da sociedade civil questionam efetividade da CDB

Carta Maior
29 de Mar de 2006

Organizações da sociedade civil questionam efetividade da CDB
Na avaliação de organizações da sociedade civil, a dinâmica diplomática de acordos como os discutidos na 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-8), que acontece em Curitiba, não se aplica mais à urgência de impedir a destruição da biodiversidade mundial.

Jonas Valente - Carta Maior

No filme Matrix, é oferecida ao personagem Neo a opção de tomar a pílula vermelha, que o tiraria da ilusão da sociedade em que vivia para revelar a real face do mundo. Aproveitando a referência do filme, diversas organizações da sociedade civil decidiram organizar o Coptrix, ciclo de debates no qual pretendem mostrar o mundo real por trás da 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-8), que acontece em Curitiba até sexta-feira (31). O primeiro evento do ciclo se propôs a discutir as encruzilhadas da Convenção. A maior conclusão do debate foi que já está chegando ao limite o prazo para que os Estados-parte decidam passar das palavras e textos à ação.
Na avaliação das entidades, a dinâmica diplomática dos acordos lentamente construídos não se aplica mais à urgência de impedir a destruição da biodiversidade mundial. "Se criam grupos de trabalho e textos intermináveis dando a sensação que se está avançando, mas o impasse está dado. Ou a convenção decide começar a efetivar as medidas de controle e promoção da biodiversidade ou irá perder definitivamente seu papel", disse Fernando Mathias, do Instituto Socioambiental (ISA).
Segundo os palestrantes presentes ao debate, um dos problemas é a metodologia que só permite decisões por consenso. Desta forma, os países que têm interesse na não concretização dos pontos da CDB acabam emperrando as decisões que poderiam ser tomadas em menos tempo. "Esperar consenso das 188 partes é furada, pois este tipo de decisão é muito complicado. O que acaba acontecendo é uma concessão de todas as partes e a elaboração de textos sempre fracos", criticou Nurit Bensusan, consultora da WWF.
Mas o maior problema, na avaliação dos debatedores, é o fato de as principais decisões, que influenciam ou as vezes até determinam a efetividade da Convenção, serem tomadas em outras instâncias internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). Acordos como o TRIPS e outras normas do comércio internacional colocam as relações mercantis acima do comprometimento com os princípios da CDB. "Há um confronto da convenção para com o mundo, num cenário onde países megadiversos possuem economias frágeis e viram reféns dos lobbies das economias mais fortes e das transnacionais", comenta Bensussan.
Para Fernando Mathias, do ISA, a Organização Mundial do Comércio prega um discurso liberal para justificar que seus acordos prevaleçam sobre quaisquer outros instrumentos internacionais. "Na OMC, as pessoas continuam dizendo que não podem haver barreiras tarifárias e que é preciso desregular. Mas isso não passa de jogo de palavras por que eles estabeleceram uma hiper-regulação que compromete totalmente a soberania dos países".
Este protagonismo da OMC faria parte de um processo de mercantilização do meio ambiente e dos recursos naturais. A origem deste processo, segundo Nurit Bensusan, estaria localizada no momento em que o mundo passou a assumir os serviços ambientais como mercadoria. "A gente foi ingênuo ao defender a remuneração de serviços ambientais, pois agora estamos em um momento em que há uma tendência de que esta remuneração acabe gerando exclusão social. Se estes serviços são pagos, muita gente que não tem como pagar fica alijada. Por exemplo: se a conta da água fica mais cara, certamente você exclui uma parcela da população do acesso a este serviço ou recurso".
Para Fernando Mathias, ao adotar o conhecimento como propriedade, seu compartilhamento para o desenvolvimento fica comprometido e este passa a servir apenas ao lucro. O erro desta lógica não estaria só nas empresas, mas nos próprios povos que lutam para não ter seus conhecimentos, cultura e informações expropriados. "Muitos povos indígenas, ao terem contato com este debate, adotam a lógica da propriedade intelectual para salvaguardar seu conhecimento e acabam se deixando contaminar por esta idéia do proprietarismo". Ele considera esta idéia perigosa, pois a repartição de benefícios do uso de conhecimentos tradicionais teria de funcionar na lógica inversa ao da propriedade intelectual, com livre circulação da informação.
Este tema é um dos impasses da COP-8. Na avaliação dos debatedores, o estágio deste impasse exemplifica a marcha lenta da convenção. "O avanço possível desta COP-8 na área de conhecimentos tradicionais é apenas a aprovação de um papel que vai servir como base de negociação. Esta convenção tem 14 anos e o grande avanço de um dos seus principais pilares é só isso? É muito pouco", critica Nurit Bensusam. O papel citado é o documento produzido pela reunião preparatória de Granada, Espanha. Foi a primeira vez que os Estados-parte conseguiram produzir um documento, mesmo que a maior parte dele ainda seja alvo de divergências. Mas nenhuma destas diferenças será resolvida, pois o impasse é se o documento pode ou não ser usado já como base se negociação.
Nesse impasse, a posição brasileira foi duramente contestada. "O Brasil, por mais vanguardista que possam parecer suas posições, trata a repartição de benefício como moeda de troca para relação de mercado sobre conhecimentos tradicionais. Quem pagar mais leva, pode até patentear", provocou Fernando Mathias. Ele citou como um caso a mais nova decisão do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), que aprovou convênio entre uma empresa de biotecnologia alemã e um instituto de pesquisa brasileiro envolvendo a coleta de células de espumas para produção de antibióticos.
"O instituto brasileiro coleta espumas e faz a taxonomia, o centro alemão examina, patenteia o material e vende a empresas farmacêuticas para a produção do medicamento. Mas o acordo é feito como uma prestação de serviços, e o instituto de pesquisa brasileiro acaba pagando pelo apoio do centro alemão, mesmo sendo este segundo o autor da patente e o conseqüente beneficiário da sua venda", informa.
Para Nurit Bensusam, os instrumentos de implementação da convenção são muito fracos. "Programas em geral não tem meta e nem cronograma". Ela indica como exceção o programa de áreas protegidas, mas pondera que isso aconteceu por conta do comprometimento de grandes ONGs internacionais para aporte técnico e de recursos. Outra exceção que apresenta avanços são as de ações de preservação da biodiversidade. Bensusam afirmou que os programas de conservação têm conseguido boa implementação, mas bem aquém do que seria possível.
O receio dos debatedores é que a situação possa piorar. Os Estados Unidos, país que não é signatário da CDB, ameaça diminuir o repasse de recursos para o GEF (Fundo Global para o Meio Ambiente, na sigla em inglês), principal fonte de financiamento das ações de implementação da CDB. O receio é que haja um processo patrocinado pelos EUA para esvaziar a Convenção. Com menos recursos, os programas ficariam mais dependentes de recurso privados, podendo aumentar a suscetibilidade às pressões de grandes grupos transnacionais.

Carta Maior, 29/03/2006

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