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Onça não é brinquedo

FSP, Vida, p. A14
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
27 de Jan de 2005

Onça não é brinquedo

Marcos Sá Corrêa

Em fevereiro de 1235, às vésperas do casamento de sua Isabella, Henrique III, da Inglaterra, ganhou três leopardos de seu futuro cunhado, Frederico II, do Santo Império Romano. O rei instalou os presentes na Torre de Londres, entregues à guarda do funcionário Guilherme de Botton, que, como bom europeu de seu tempo, não sabia o que fazer com eles. Em menos de cinco anos, a Real Coleção de Leopardos estava liquidada. Mas os ingleses tinham tomado gosto por zoológicos. E, com eles, o resto da civilização ocidental.
Começa com essa história The Tower Menagerie, do inglês Daniel Hahn. O livro não foi editado em português. É tão exótico que provavelmente nunca será. Mas anda fazendo falta no Brasil, desde que saíram nos jornais as fotografias do presidente Lula em Tabatinga, posando com onça e sucuri no 8.o Batalhão de Infantaria de Selva na Amazônia. Não é de hoje que os estadistas fazem essas coisas. Mas também não é de hoje que eles aprenderam a não fazê-las.
No Brasil, a fauna nativa tem certa tradição no ramo do adorno majestático. Pedro II, usando um manto imperial decorado com papos de tucano, acabou ironizado pelo conde de Gobineau, que freqüentava o paço como amigo dos Bragança. Ninguém se machucou por causa disso, a não ser os tucanos.
Lula não está em má companhia. Seu problema foi exercer o governo quando saiu de moda a fantasia de fera. Hoje, ninguém mais vê um presidente com uma onça sem dar razão à onça. Sobretudo se a onça está acorrentada. Tudo isso para quê? Num batalhão de selva, um animal silvestre pode ter funções estratégicas que escapam à compreensão de um civil embrutecido pela vida urbana. Mas, quando as autoridades resolvem brincar de onça na frente do público, aí até ele entende que a fotografia tem sinais trocados.
Zoológico, se serve para alguma coisa, serve para exibir animais. E não para exibir seres humanos, como acontece quando soldados seguram uma sucuri cativa pelo gogó, só para divertir um presidente. O resultado é uma caricatura da valentia, que transforma a coleção de bichos do quartel de Tabatinga num picadeiro do exibicionismo humano.
Lula chegou à presidência com 52 milhões de votos. Não precisa da sucuri para legitimar-se, nem disputa a presidência dos Masai, que escolhem chefes em torneios de valentia na floresta. Ele não tem nada de se meter com onças, a não ser para defendê-las. E, se isso não consta das prioridades de seu governo, então pelo menos deixe que elas sigam para a extinção sem fazer ponta em chanchadas populistas.
Essas bravatas tinham outro sentido no tempo do cinema mudo, quando as platéias ainda torciam pelo Tarzan. Agora, não. Nas quedas de braço entre homem e fera, todo mundo reconhece instantaneamente onde está a parte fraca, a que sempre perdeu todas as batalhas e talvez não deixe descendência. Henrique III, pelo menos, tomou um interesse por animais silvestres que, no fim, parecia genuíno. Tentou criar urso polar em Londres, deixando que o bicho pescasse os salmões que subiam o Tâmisa. A corrente que prendia o urso inglês era igual à da onça em Tabatinga. Mas, 760 anos atrás, os salmões nadavam no centro de uma capital européia e o mundo nem fazia idéia de quanta coisa no planeta ele ainda iria descobrir e perder.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 27/01/2005, Vida, p. A14

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