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Ofensiva na Justiça atinge famílias que moram em áreas de proteção no Rio

OESP, Vida, p. A23
23 de Set de 2012

Ofensiva na Justiça atinge famílias que moram em áreas de proteção no Rio
Há pelo menos 16 ações civis públicas contra moradores do Parque Nacional da Tijuca - que vivem há décadas ali -, a direção da unidade, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e a União; ocupação irregular no Jardim Botânico é semelhante

Roberta Pennafort

Haydée Alves da Silva Teruz tem 54 anos e há 45 vive na mesma casa, dentro do Parque Nacional da Tijuca. O pai era funcionário da sede campestre da Sociedade Hípica Brasileira, que funcionava no casarão onde, no século 19, o barão do Bom Retiro, que foi presidente da Província do Rio de Janeiro, mantinha residência.
A sede foi desativada há cerca de 30 anos, e o pai de Haydée foi ficando. Morreu há 22 e os parentes nunca saíram do meio da floresta, mesmo sabendo que a ocupação é irregular. Agora, eles se apavoram com a perspectiva real de não ter mais onde morar.
"A implicância começou recentemente", reclama a dona de casa, que divide com sete familiares o imóvel, imponente olhado de fora, bem degradado por dentro. "Mandaram notificações, mas não veio oficial de Justiça."
Com 3.952 hectares, que se estendem pelas zonas norte, sul e oeste da cidade do Rio, e considerado um oásis urbano, o Parque Nacional da Tijuca é uma unidade de conservação federal e não pode ser habitado. As exceções são as casas para funcionários da ativa, em casos específicos. Entretanto, 70 famílias vivem lá, seja a poucos metros da entrada principal, como é o caso de Haydée, seja em áreas mais isoladas, acessadas por vias públicas - e, por isso, de controle frágil.
Agora, uma ampla ofensiva na Justiça ameaça desalojar os moradores do Parque Nacional da Tijuca e também os que vivem em outra área verde de ocupação indevida, no Jardim Botânico, autarquia federal voltada à pesquisa e à conservação ambiental em cuja área, encravada na zona sul, residem cerca de 620 famílias.
"A gente se compadece do ser humano, mas tenho de ver o bem maior, o meio ambiente, e não o interesse individual de cada família. Essas casas causam impacto ambiental muito grande num dos últimos resquícios de Mata Atlântica que temos", aponta a procuradora federal do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico Cultural Ana Padilha.
Ela está por trás de 16 ações civis públicas contra os ocupantes dos imóveis, a direção, a União, proprietária das residências, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ao qual o Parque da Tijuca é ligado.
Reforma. Haydée admite saber da lei que diz que não se pode construir dentro do parque. "Mas na época do meu pai não tinha lei, Ibama. Todo mundo achava que as casas iam passar de pai para filho. Isso só está de pé porque faço reforma. Agora o telhado está caindo, o banheiro precisa de obra, mas eu não faço mais. E se tiver de sair?"
Invasões propriamente ditas foram raras; a maior parte dos moradores é descendente de ex-servidores de órgãos federais, como o Ibama, e do governo da então capital federal, os quais, estima-se, tenham chegado entre as décadas de 1940 e 1950 para ocupar residências funcionais. Foram convidados por diretores, para que ficassem perto do trabalho.
Eles deveriam tê-las liberado quando da saída do emprego, aposentadoria ou morte, só que, atraídos pelo aprazível cenário, permaneceram, contando com a vista grossa de sucessivos gestores. Oitenta por cento já morreram.
Hoje, conforme explica o diretor do parque, Ernesto Viveiros de Castro, só quatro funcionários (da ativa) estão em situação legal.
O problema da ocupação indevida é bem mais visível no Jardim Botânico. Apesar de estar situado numa área equivalente a 2,5% do Parque da Tijuca (seriam cerca de 100 hectares, mas os limites ainda estão sendo delimitados), o número de famílias no Jardim Botânico é quase nove vezes maior.
A questão divide o bairro nobre da zona sul em dois lados: de um, estão os chamados invasores; de outro, os moradores da região que se alinham com a direção do parque pelo despejo, que têm apoio de artistas que vivem por perto e defendem o Jardim Botânico, como a família do compositor Tom Jobim, notório frequentador que dá nome a um teatro aberto ali há quatro anos. Desde 2003, o Ministério Público Federal tem 11 ações civis públicas em andamento pedindo a reintegração de posse dos terrenos. No mês passado, o Tribunal de Contas da União determinou, em primeira instância, que as 620 famílias desocupem o local até outubro de 2013. Ainda cabem recursos.
Despejo. "Minha mulher e eu, botânica do Ministério do Meio Ambiente que trabalhava no Jardim Botânico, viemos nos anos 1950, duros e recém-casados. Construímos aqui com autorização pública. Há cinco anos, quando ela se aposentou, pediram a casa, dizendo que era um bem funcional, e nos deram 20 dias para sair", relata o aposentado Carlos Guimarães, de 77 anos, que mora numa rua nos fundos do parque. "Entramos na Justiça e conseguimos que reconhecessem que nós é que erguemos, e não o parque, e nunca mais falaram nisso. Como podem me chamar de invasor?"
Calcula-se que apenas 5% dos casos sejam de parentes de servidores, como Guimarães; o resto é tratado como invasão pura e simples. As tentativas de remoção datam dos anos 1980. Há denúncias de vendas de imóveis - ainda que nenhum morador possua escritura -, de aluguel e de uso para fins comerciais.
Assim como Liszt Vieira, diretor do Jardim Botânico, que tem nas desocupações uma bandeira (ele preferiu não dar entrevista ao Estado por entender que já se manifestou muito sobre o assunto e que não há dados novos a se discutir), Viveiros de Castro também vê a regularização fundiária prioridade de sua gestão. As demais são nada menos que organizar o turismo no monumento do Cristo Redentor, que fica na área do parque, para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, em 2014 e 2016, assim como o ecoturismo dentro da floresta.
Ele conta o caso de um ex-funcionário do Ibama demitido por corrupção que continua morando no parque. As casas em geral não têm saneamento e a luz chega sem ser cobrada. A água é a das nascentes, o esgoto é despejado nos rios. Ao menos os números não têm aumentado, acredita o diretor, uma vez que existe controle de entrada de material de construção pelos seguranças.

Esforço
Ana Padilha, procuradora federal do meio ambiente e patrimônio histórico cultural
"Chega uma hora em que a gente tem de mexer nisso. Não é porque está errado há muito tempo que não se pode voltar atrás. O parque é delimitado, tem plano de manejo."

Para Lembrar
Parque abriga santuário
O Parque Nacional da Tijuca, encravado na capital do Rio de Janeiro, é uma Unidade de Conservação Federal composta por três áreas. Uma delas é a Floresta da Tijuca, a principal reserva de Mata Atlântica do Estado e considerada uma das maiores florestas urbanas do mundo. As outras duas têm como principais referências os morros do Corcovado (onde está localizada a estátua do Cristo Redentor) e a Pedra da Gávea, incluindo seus arredores.
Nos 3.952 hectares do parque há 600 espécies vegetais, 300 espécies animais de pequeno e médio porte, como tamanduás, quatis, esquilos, macacos e saguis, 42 vales, 43 córregos e rios, 43 cascatas e cachoeiras, 2 lagos, 19 pequenas represas e 61 grutas e cavernas.

'Quero respeito aos meus direitos'
Aos 83 anos, Manuel Pinheiro Rosa quase chora ao falar da angústia que sente ao ouvir os boatos de que terá de sair da casa onde criou 7 filhos, 23 netos e 6 bisnetos. São, na realidade, dois imóveis sobre os quais paira uma única bandeira do Vasco. "O diretor do Parque da Tijuca ofereceu três na época, mas tenho bom coração e cedi uma", ele conta, ao lado de um dos filhos. Todos cresceram tendo a floresta como quintal e estudaram numa escola instalada ali dentro para atender aos funcionários.
"Foram me buscar para morar aqui em 1943. Eu trabalhava no parque desde os 13 anos, tive vários cargos. Amo essa floresta. Dizem que a Justiça quer levar a gente para longe. Mas os meus direitos precisam ser respeitados: eu saio, porém tem de ser daqui para o Alto da Boa Vista, quero a chave na mão. Não durmo, com medo." Ele nunca ouviu falar que deveria ter vagado o imóvel ao se aposentar, por volta de 1980. Nem vê qualquer inconveniente no fato de morar literalmente no meio do mato.
As casas no Parque Nacional da Tijuca são, em geral, mais simples que as do Jardim Botânico, embora também no parque da zona sul "exista de tudo", nas palavras do procurador Mauricio Manso. O aposentado Gilberto Rocha Batista, de 58 anos, conta que a casa onde vive, na Rua Pacheco Leão, com a mulher e a filha, é herança dos sogros. Ambos eram pesquisadores e trabalhavam no Jardim Botânico. A sogra tem 86 anos e sofre com a possível reintegração de posse.
"Patrimônio não tem prazo de validade. A família veio em 1954. A atual gestão colocou todo mundo no mesmo saco, quem veio e construiu com autorização, compelido pela direção do parque, e quem invadiu." / R.P.

OESP, 23/09/2012, Vida, p. A23

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