VOLTAR

As obras que navegam nas águas da polêmica

O Globo, O País, p. 19
31 de Out de 2010

As obras que navegam nas águas da polêmica
Novo presidente herdará projetos como a usina de Belo Monte, a transposição do São Francisco e a implantação do trem-bala, que estão entre os mais caros do PAC

BRASÍLIA, RECIFE e RIO.

Três megaprojetos. Três orçamentos bilionários. Três polêmicas gigantescas.

O presidente que será eleito hoje herdará obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que ficaram no meio do caminho: a implantação do trem-bala entre Rio, São Paulo e Campinas; a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, e a transposição do Rio São Francisco, a única já em curso.

O desafio não é apenas financeiro - as obras somam R$ 59 bilhões. Desde a greve de fome do bispo da cidade baiana de Barra, Dom Flávio Cappio, a transposição do São Francisco rema contra uma maré de críticas.

A construção de Belo Monte também foi alvo de uma enxurrada de protestos: de populações indígenas ao cineasta James Cameron, de "Avatar". Já o trem-bala, projeto mais ambicioso do PAC, tem pela frente um caminho pontilhado de dúvidas.

A candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, promete dar continuidade aos três projetos.

José Serra (PSDB), mesmo com críticas ao modo pelo qual o atual governo conduziu Belo Monte e a transposição do São Francisco, diz que continuará essas obras. Quanto ao trem-bala, sustenta que é preferível deixar o projeto a cargo da iniciativa privada e usar recursos públicos na ampliação dos metrôs.

Transposição do Rio São Francisco

Letícia Lins

Para o governo federal, a transposição das águas do Rio São Francisco é a redenção do semiárido nordestino, porque beneficiará 12 milhões de sertanejos que enfrentam o flagelo da seca. Para os prefeitos da região, o canteiro de obras fez florescer a economia das cidades por onde passam os canais. São cerca de 10 mil novos postos diretos de trabalho. Para especialistas, no entanto, a obra constitui um risco para o meio ambiente e pode significar o último suspiro do Velho Chico, que corta cinco estados ao longo de seus 2,8 mil quilômetros. Muitos também acreditam que a obra, tida como faraônica, vá beneficiar os grandes projetos de irrigação e não as populações pobres da caatinga.

O projeto, que se encontra em implantação desde agosto de 2007, prevê investimentos de R$ 7 bilhões, sendo R$ 4,6 bilhões provenientes do PAC. Esses recursos estão destinados à construção dos dois principais canais que, de acordo com o Ministério da Integração Nacional, deverão beneficiar 390 municípios de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Outros R$ 2,4 bilhões serão usados na implementação de 36 programas ambientais e ações de revitalização do rio.

Embora haja denúncias de paralisação das obras em alguns trechos, o Ministério da Integração alega que os trabalhos estão a pleno vapor e que 67% do Eixo Leste e 47% do Eixo Norte estão concluídos.

A Justiça Federal vem realizando jornadas de conciliações para apressar a desocupação das áreas necessárias para as obras. Burocracia à parte, a preocupação ronda estudiosos do rio, entidades como a Comissão Pastoral da Terra, sindicatos e até mesmo prefeituras.

- Estive recentemente com o presidente Lula e perguntei se a água da transposição também é para a gente ou se vai só para os graúdos. No sertão, o grande sempre teve poder e o pequeno nunca teve direito a nada - afirma Elias Eugênio da Silva, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Floresta.

Do mesmo anseio compartilha o engenheiro agrônomo João Suassuna, autor do livro "Transposição do Rio São Francisco na perspectiva do Brasil Real" e um dos mais ferrenhos críticos da obra.

- Ninguém é maluco de ser contra um projeto que pretende levar água para 12 milhões de pessoas. Só que a forma como os canais foram dimensionados nos passa a impressão de que eles irão abastecer o agronegócio, as fazendas de criação de camarão e os projetos irrigados. O povo vai continuar sendo abastecido por caminhão pipa na caatinga e não vai ver a água da transposição.

Ele diz não entender por que o governo Lula ignorou o Atlas Nordeste de Abastecimento, que mapeia todas as fontes de água da região e que deveria beneficiar cerca de 30 milhões de pessoas do semiárido.

Caso tivesse sido implantado, como pretendia a Agência Nacional de Águas (ANA), o Atlas teria custado ao governo metade do investimento previsto com a transposição.

A sobrevivência do São Francisco também é uma preocupação. De acordo com Flávio Cappio, para quem o rio já não suporta tanta demanda.

Moradores de Barra se deparam este ano com o mais baixo volume de água do Velho Chico ao longo dos últimos 70 anos.

Polêmica à parte, a presidenciável do PT, Dilma Rousseff, diz que, se eleita, dará continuidade à obra, a que se refere como "a maior ação no setor de abastecimento de água em andamento no país": - Esse projeto assegurará aSuassuna, ele está no seu limite.

Afinal, 95% da energia elétrica do Nordeste são gerados a partir da água do rio, que também irriga 340 mil hectares de terras, área de cultivo que cresce à razão de quatro por cento ao ano: - Se não houver um planejamento adequado no seu uso, a água poderá faltar.

A transposição já provocou até greve de fome do bispo da cidade baiana de Barra, Dom oferta de água a cerca de 12 milhões de habitantes de 390 municípios. Caso seja eleita, darei continuidade a este projeto fundamental para o desenvolvimento social e econômico do sertão e do agreste nordestinos, que assegurará o abastecimento de água para a produção e o consumo.

José Serra (PSDB) diz que "muitas críticas corretas têm sido feitas à forma como o atual governo tratou a transposição".

Afirma ainda que até agora as obras têm sido realizadas pelo Exército e que 80% das licitações estão atrasadas.

Mas promete continuar a obra, que considera "de alto interesse público".

Paralelamente à transposição, Serra pretende realizar "um vigoroso processo de revitalização do rio, especialmente em Minas Gerais, já que 70% da contribuição hídrica da bacia ocorrem em território mineiro". Afirma ainda que vai "promover a regularização e a navegabilidade do leito do São Francisco, com o seu desassoreamento", além de "reflorestar suas matas ciliares e recuperar as áreas degradadas".

Usina de Belo Monte

Eliane Oliveira

Não importa quem vença a eleição presidencial hoje. A construção da usina de Belo Monte, no Rio Xingu, Pará - que será a terceira maior hidrelétrica do mundo, perdendo para Três Gargantas, na China, e a binacional Itaipu, na fronteira com o Paraguai - e todas as obras contratadas na Amazônia são projetos que não têm volta.

Segundo especialistas, não há como mexer nos empreendimentos objetos de contrato.

Técnicos do governo afirmam que o Brasil precisa de energia limpa para crescer sem aborrecimentos.

Maior obra da era Lula, orçada em R$ 19 bilhões - sendo R$ 600 milhões só com quatro anos de alimentação dos mais de dez mil trabalhadores - e com capacidade de geração suficiente para abastecer sozinha mais de 22 milhões de residências, Belo Monte foi alvo de ambientalistas, do Ministério Público e de sociedades de proteção a ribeirinhos desde que seu projeto começou a tomar forma, na década de 80, e sobretudo nos últimos dois anos.

A hidrelétrica foi leiloada em 20 de abril numa licitação salva pela União, que, além de um pacote de incentivos, determinou ao Grupo Eletrobras que assumisse os riscos do empreendimento e liderasse a proposta vencedora.

Para Ivan Camargo, professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em energia, o fato de nenhum dos candidatos ter dito que mudaria contratos "é um avanço fantástico": - São obras estratégicas, sagradas, em que não se pode agir com irresponsabilidade.

Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consum i d o r e s L i v r e s (Abrace), concorda: - Uma perspectiva de quebra de contrato levaria ao aumento da percepção do risco. É prova de amadurecimento do país.

A presidenciável D i l m a R o u s s e f f (PT) afirma que "Belo Monte é uma realidade e uma necessidade": - A energia é essencial para que sejam atingidos os objetivos econômicos, sociais e ambientais do desenvolvimento sustentável. Hoje é imperativo que a construção de novas usinas esteja em harmonia com o meio ambiente.

E isso é possível. A hidrelétrica deixa de ser uma simples planta de transformação de energia hidráulica em elétrica e passa a ser o vetor do desenvolvimento social local, com a redução da pobreza.

Recentemente, o tucano José Serra declarou, em debate com Dilma, que não é contra a obra, mas deixou claro que vai se debruçar para corrigir o que considera "absurdos ambientais".

Um assessor da campanha de Serra explicou ao GLOBO que o presidenciável não pretende mexer nas regras já impostas, e sim "olhar com lupa" o custo-benefício de Belo Monte, ver onde é possível economizar, tornar mais rigorosa a fiscalização ambiental e verificar se a população ribeirinha será compensada.

Serra disse que antes de aprovar qualquer novo grande projeto, o governo tucano produzirá uma avaliação ambiental detalhada, introduzindo uma nova política para a questão: - No caso de Belo Monte, resta garantir que as condicionantes da licença sejam cumpridas integralmente.

Usar energia renovável é bem melhor do que construir termelétricas com fontes fósseis, mas não podemos enfiar goela abaixo das populações locais os efeitos danosos futuros dessas obras. Num governo tucano, o licenciamento de Belo Monte teria sido bem mais transparente e participativo, teria tido mais cuidado com o meio ambiente e com os ecossistemas da Amazônia.

Trem-Bala

Paulo Marqueiro

O projeto de implantação do Trem de Alta Velocidade (TAV), ou trem-bala, ligando Rio, São Paulo e Campinas, está mal parado. O leilão para escolher a concessionária que vai construir e operar o sistema está marcado para 16 de dezembro, mas a obra mais cara do PAC (R$ 33 bilhões) ainda divide opiniões.

Especialistas dizem que o preço está subestimado e que o trem poderia custar o dobro (R$ 66 bilhões) ou até o triplo (R$ 99 bilhões). Falase também que a demanda (32 milhões de usuários/ano) está superestimada. E que para atingir este número seria preciso absorver todos os passageiros da ponte aérea.

- É claro que o projeto não vai custar R$ 33 bilhões.

Hoje os técnicos já admitem isso abertamente. O Brasil não tem dinheiro para isso e nenhuma empresa privada vai querer assumir esse risco - diz Ronaldo Balassiano, professor da Coppe/UFRJ.

Outro argumento que se coloca à frente dos trilhos é a prioridade. Embora o governo anuncie que a obra será feita com recursos privados, a concessionária poderá pegar até R$ 19,9 bilhões no BNDES.

Com esse dinheiro, dizem os críticos, poderiam ser feitas obras mais urgentes.

- Há outros gargalos que precisam ser resolvidos antes, como metrô, portos e aeroportos - diz José Eugênio Leal, professor da PUC-RJ.

Já o professor Hostílio Xavier Ratton Neto, da Coppe/ UFRJ, sustenta que o projeto do trem-bala "tem um alcance estratégico, que não se esgota na análise financeira": - Esse projeto é importante porque muda a matriz energética do transporte no país. Hoje, 95% dos deslocamentos são feitos por automóveis, ônibus e aviões.

Segundo o presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Ailton Brasiliense, o trem-bala poderia ser uma opção para o aumento de demanda tanto no transporte rodoviário quanto no aéreo.

- Ele tem de ser pensado como projeto de médio e longo prazo. A Via Dutra e os dois aeroportos (Rio e São Paulo) estão caminhando rapidamente para o esgotamento.

O de cá (São Paulo) já passou dos limites. O Santos Dumont tem um pouco mais de folga. Mas existem limites.

A presidenciável Dilma Rousseff (PT) diz que o trembala será uma opção de transporte rápida e barata: - A implantação do Trem de Alta Velocidade entre Rio, São Paulo e Campinas é um projeto necessário para solucionar o crescente fluxo entre estas regiões metropolitanas, aliviando a demanda sobre outras formas de transporte.

A alternativa ao TAV é o investimento em rodovias e aeroportos, que trazem mais impactos ao meio ambiente e à qualidade de vida da população da região.

José Serra (PSDB) diz que diante de tantas dúvidas sobre custos e viabilidade financeira, "é preferível deixar o projeto para a iniciativa privada e utilizar recursos públicos para a ampliação do metrô em capitais brasileiras": Questiona-se qual o lugar do projeto na lista de prioridades para o Brasil. Vale a pena investir recursos públicos em projeto tão caro, e que vem apresentando custos repetidamente majorados, quando temos inúmeras capitais brasileiras sem metrô ou com traçados ainda insuficientes? Cabe indagar: trembala ou metrô, o que traria mais benefícios para o povo?

O Globo, 31/10/2010, O País, p. 18-19

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.