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Obra no São Francisco começa com 50 homens e R$ 5 bilhões de gasto

FSP, Brasil, p. A10-A12
10 de Jun de 2007

Obra no São Francisco começa com 50 homens e R$ 5 bilhões de gasto
Governo dá início à polêmica transposição e pretende tornar obra "irreversível" até final do mandato
Batalhão ganhou o nome de Pedro 2o, em referência ao imperador que primeiro desejou desviar águas do rio

Marta Salomon
Enviada especial a Cabrobó (PE)

Em meio a mandacarus, coroas de frade e outras plantas espinhosas da caatinga, o sargento topógrafo Hayud Farah seguiu as coordenadas do satélite e marcou o lugar onde o Exército erguerá, nos próximos meses, um paredão do tamanho de um prédio de sete andares da barragem de Tucutu. Deu-se assim, na manhã da última terça-feira, o início oficial da polêmica obra de transposição do rio São Francisco, obra de mais de R$ 5 bilhões a ser financiada com dinheiro dos impostos.
O marco foi feito a oito quilômetros das margens do São Francisco, em Cabrobó (PE). Do trecho onde o rio faz uma curva, sairá um dos dois canais de concreto que vão desviar parte das águas do São Francisco por centenas de quilômetros, para os Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. No caminho, nove estações de bombeamento vão erguer as águas a uma altura de até 300 metros.
"E será que vão conseguir?", perguntou no dia seguinte -entre óbvia e preocupada- a índia truká Maria Eunice do Nascimento, cuja aldeia está instalada a apenas 600 metros do ponto de captação das águas em Cabrobó, numa ilha que divide o São Francisco em dois.
Os truká temem que a transposição comprometa a pesca e a agricultura em seu território. Eles lamentam se verem diante de um fato consumado.
Na coordenação-geral do projeto, em Brasília, o engenheiro Rômulo Macedo considera "pouco provável" que a obra pare depois de tantos problemas que enfrentou até começar a sair do papel.
Ele não descarta, porém, contestações e eventuais atrasos na superlicitação em curso, de R$ 3,3 bilhões, para a escolha das empresas privadas que farão a maior parte da obra, nem o risco de que a obra se torne, no futuro, um "elefante branco". "Tudo está programado para que o eixo Leste seja inaugurado já neste governo e que o eixo Norte, maior, chegue a 2010 com parte funcionando, para se tornar irreversível", disse Macedo. O objetivo é evitar que o sucessor de Lula interrompa o projeto.

Grandes obras
"Essa cena vai para o museu", comentou o sargento topógrafo Farah sob o sol forte. Ele faz parte de uma equipe inicial de 50 homens deslocados do 2o batalhão de engenharia do Exército, sediado em Teresina.
O grupo, que alcançará 200 homens nos próximos meses, montou acampamento em Cabrobó na segunda-feira. Outro destacamento, saído de Picos (PI), chegará amanhã ao município de Floresta, também em Pernambuco. As escavações devem começar dia 25.
O Exército cuidará da primeira parte da obra: construirá os dois pontos de captação das águas -nos municípios de Cabrobó e Floresta- e quase oito quilômetros de canais entre as margens do rio e as primeiras estações de bombeamento, além das primeiras barragens da transposição. Dividido em 14 lotes, o restante da obra será tocado por empresas privadas.
No meio da área da caatinga que será desmatada em breve, os militares compararam a transposição a grandes obras que o país teve nos anos 70, como a Transamazônica, a hidrelétrica de Itaipu e a ponte Rio-Niterói.
O batalhão responsável pela primeira etapa das obras da transposição ganhou o nome de Pedro 2o. Uma homenagem ao imperador que patrocinou a primeira idéia de desviar águas do São Francisco.
No PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), a transposição é a obra que vai consumir o maior volume de impostos cobrados pela União.
Antônio Simões de Almeida acertou na quarta-feira, no escritório do Ministério da Integração em Cabrobó, a indenização de R$ 1,029 milhão pelas terras da fazenda Tucutu, local escolhido para a captação das águas do São Francisco no eixo Norte. "Era uma propriedade de estimação, mas não é por isso que vou ser contra a obra, que vai beneficiar tanta gente", declarou.
Coube a Antônio "Russo", como é conhecido, a indenização mais cara a ser paga no primeiro trecho da transposição. O processo de desapropriação é complicado pela falta de documentos que comprovem a titularidade das terras, problema que atinge 80% das propriedades localizadas numa área de cem metros nas margens direita e esquerda dos canais. Essa faixa será cercada e vigiada para evitar roubo de água. Desde o anúncio da desapropriação, em 2005, a fazenda Tucutu, de quase 600 hectares, parou de produzir arroz e cebola para se dedicar à criação de gado.

Obra custou R$ 443 mi antes mesmo de começar
PAC prevê mais R$ 5 bi nos dois eixos da transposição

Da enviada a Cabrobó

Até o dia da chegada do Exército a Cabrobó (PE) -e antes, portanto, de começar a obra-, o governo federal já havia gasto com a transposição das águas do rio São Francisco R$ 443 milhões, mais do que o dobro do custo das ações de revitalização do rio no mesmo período, de R$ 200 milhões, mostra pesquisa feita no Siafi (sistema informatizado de acompanhamento de gastos federais).
O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) prevê aplicar mais R$ 5 bilhões nos dois eixos da transposição até 2010, último ano de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A maior parte desse dinheiro irá para as empresas privadas que disputam os 14 lotes em que a obra foi dividida na superlicitação de R$ 3,3 bilhões. O resultado do negócio deverá ser anunciado até agosto.

Gastos
A pedido da Folha, a organização não-governamental Contas Abertas pesquisou os gastos públicos com a transposição e com ações da revitalização do rio entre 2005 -ano em que o presidente Lula pretendia começar a obra- e a última segunda-feira, véspera do dia em que ela oficialmente teve início. Nesse período, os gastos com a revitalização do rio São Francisco seriam acelerados para conter principais reações contrárias ao projeto.
Foram consideradas despesas pagas e aquelas inscritas como restos a pagar -quando o dinheiro já foi comprometido, mas as contas ainda não foram quitadas. Ainda falta pagar, por exemplo, cerca de R$ 37 milhões já comprometidos no pagamento de desapropriação de terras no caminho da obra.

Obras complementares
Segundo o Ministério da Integração Nacional, parte dos gastos contabilizados oficialmente no projeto de transposição foi dinheiro aplicado em outras obras complementares, como o canal do sertão alagoano (da construtora Gautama, sob investigação da Polícia Federal) e do canal da Integração.
As operações foram autorizadas em 2005, na gestão do ex-ministro Ciro Gomes, porque havia dinheiro disponível em caixa e que não podia ser gasto com a transposição, cuja obra encontrava-se paralisada pela Justiça à época.
O dinheiro da transposição também foi aplicado na construção de cisternas no semi-árido. Uma fatia de aproximadamente R$ 30 milhões coube ao Exército, para a compra de equipamentos.
Cerca de R$ 18 milhões já teriam sido pagos ao consórcio Logos-Concremat, contratado para gerenciar a transposição, de acordo com informações do Ministério da Integração Nacional. (MARTA SALOMON)

Bispo de Barra se junta a índios na oposição à obra
Luiz Cappio fez greve de fome contra transposição

Da enviada especial a Cabrobó

A poucos quilômetros de onde começa a transposição do rio São Francisco, não há movimento na capela onde o bispo de Barra (BA), frei Luiz Cappio, tentou barrar a obra com uma greve de fome, quase dois anos atrás. Embora não tenha voltado à cidade para a ocasião da chegada do Exército, o bispo promete novos protestos.
Contará com apoio de índios truká, cuja aldeia fica a apenas 600 metros do ponto de captação das águas do eixo norte. Maiores adversários da obra na região, eles cogitam acampar nas vizinhanças do canteiro de obras, em protesto contra a suposta diminuição do volume de água do rio e conseqüente prejuízo à pesca e à agricultura. "Puseram o Exército para ficar mais difícil o confronto", imagina Francisco Truká, uma das lideranças da tribo.
Por telefone, o bispo de Barra disse que se sente "indignado e traído" porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu levar o projeto adiante assim que o STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu o efeito das ações que paralisaram a obra por um ano, na seqüência do "jejum" de 11 dias de frei Cappio, em Cabrobó.
"Essa obra não vai dar certo, o interesse é mais pelo dinheiro que vai rolar, como a gente vê na Operação Navalha", criticou o bispo, numa referência ao esquema de desvio de verbas, segundo a Polícia Federal, comandado pela construtora Gautama, uma das que disputam um dos 14 lotes da obra da transposição. "É mais uma torneira aberta para o dinheiro público", atacou.
No município de Cabrobó, com exceção dos índios truká, os testemunhos colhidos pela Folha sugerem o isolamento do bispo, ainda que os moradores tenham uma idéia bastante vaga do que seja a transposição. "Com certeza,o bispo está isolado, o clima é positivo", diz o prefeito Euder Caldas (PTB), entusiasmado com melhorias que o projeto promete trazer.
Caso vingue, a mobilização planejada pelo bispo de Barra e apoiada pelos truká poderá alcançar o ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional) na caravana que fará até o local das obras, na semana que vem. A vinda de Lula está para ser confirmada nos próximos dias.
(MARTA SALOMON)

memória

Idéia surgiu em 1818, na gestão de dom João 6o

Da redação

A proposta de levar água do rio São Francisco para o rio Jaguaribe foi lançada em 1818, no governo de d. João 6o, pelo 1o ouvidor do Crato (CE) José Raimundo de Passos Barbosa, informa o historiador Marco Antonio Villa em "Vida e Morte no Sertão".
Em 1847, Marcos Antônio de Macedo, intendente do Crato, retomou a idéia e encaminhou um esboço do projeto ao imperador. Em 1852, d. Pedro 2o contratou o engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld para estudar o São Francisco. Em 1860, ele defendeu a transposição e citou Cabrobó como local de retirada da água.
Mas, como a tecnologia da época não permitia o projeto, o imperador decidiu apenas a iniciar a construção do açude de Cedro (CE).
A transposição voltou a ser defendida periodicamente, mas os estudos só avançaram na gestão de Mario Andreazza no Ministério do Interior (1979-1985). Em 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso destinou R$ 500 milhões para o projeto, mas abandonou a idéia em 2001.

FSP, 10/06/2007, Brasil, p. A10-A12

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