VOLTAR

O valor do canto do pintassilgo

Valor Econômico -
Autor: CHIARETTI, Daniela
17 de Mar de 2021

O valor do canto do pintassilgo
Enquanto o mundo avança em debates ambientais modernos, o governo Bolsonaro ainda acredita em campanhas para mudar a má imagem

Por Daniela Chiaretti
É repórter especial de Ambiente desde 2005. Foi editora-chefe da revista "Marie Claire" e trabalhou na "Gazeta Mercantil", "Folha de S. Paulo", "Veja" e "UOL"

Dois amigos, ambos físicos e ambientalistas, se empenhavam em encontrar meios de incluir o valor da natureza nas contas econômicas nacionais no instituto onde trabalhavam. A ideia era genial: buscar formas de lançar o capital natural como ativo do Estado. Se a população enxergasse a Amazônia como uma riqueza nacional palpável, a floresta estaria a salvo de virar fumaça. Mas como jogar em planilhas o valor de árvores que produzem água, dão sombra e são morada de zilhões de espécies, estimar o conteúdo orgânico do solo ou contabilizar o poder de fertilização do lobo-guará? "Brincamos que um dia iríamos conseguir valorar o canto do pintassilgo", conta Shigueo Watanabe Jr, um dos dois amigos da história acima e hoje pesquisador do Climainfo, organização focada na comunicação da mudança do clima.
Dez anos depois, ninguém ainda conseguiu incluir nas contas nacionais o inestimável valor do canto do passarinho. Mas o mundo avança nas métricas para que países incluam na contabilidade a riqueza das florestas, dos oceanos, das chuvas. É ir muito além do PIB.
Há 900 iniciativas de métricas ambientais no mundo
Mais da metade do PIB global depende da natureza. "A grande ameaça da prosperidade futura é o crescimento econômico contínuo", disse ao Valor o historiador Dirk Philipsen, professor de história econômica da Duke University e crítico do PIB como indicador da riqueza das sociedades. "O PIB é uma medida que não discrimina armas de brinquedos ou vazamento de petróleo de aulas de ioga", diz. "O pior de tudo é que não mede serviços da natureza ou o trabalho feito por mulheres que cuidam dos pais e criam filhos. Não mede qualidade, só quantidade". Philipsen escreveu "The little big number - how GDP came to rule the world and what to do about it", livro onde aborda as limitações do PIB como métrica universal. Diz que existem pelo menos 900 iniciativas no mundo tentando encontrar opções ao indicador. "Algumas são excelentes. O problema é que são muitas".
Na semana passada, países adotaram uma nova métrica para calcularem o capital natural nas contas nacionais. A iniciativa capitaneada pela ONU é conhecida pela sigla SEEA EA - System of Environmental-Economic Accounting-Ecosystem Accounting. "A ideia é transformar a iniciativa em um padrão internacional que os países sigam. É um complemento das contas nacionais", traduz Rebeca de La Rocque Palis, chefe do departamento de contas nacionais do IBGE. O instituto vem lançando estudos sobre contas ambientais da água, dos ecossistemas e de biodiversidade. Trata-se de uma revolução nas estatísticas.
Mas se de um lado o país acompanha os debates mais modernos das arenas internacionais que entendem os desafios e as ameaças ambientais contemporâneas, também está imerso no que há de mais atrasado e tolo quando o assunto é clima, Artigo 6 do Acordo de Paris, desmatamento da Amazônia, queimadas no Pantanal e o gerenciamento disso tudo. Neste campo, o Brasil de hoje parece a Hidra de Lerna a olhos estrangeiros. Para quem não se lembra do mito, o monstro tinha corpo de dragão e muitas cabeças horríveis que regeneravam. Cada uma ia para um lado, todas prontas para o ataque.
No Congresso, por exemplo, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável será presidida agora por uma política que sempre negou o aquecimento global, Carla Zambelli, do PSL. Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", a deputada bolsonarista atribuiu a alta do desmatamento e das queimadas à mudança climática e disse que o governo Bolsonaro "atuou da melhor forma possível". Para ela, a péssima imagem do governo brasileiro no mundo, agravada pela dramática gestão da pandemia, seria um problema de "construção de narrativa".
É a mesma linha adotada pelo ministro Ricardo Salles, que segue firme à frente do Ministério do Meio Ambiente apesar de ter se notabilizado mais pelo discurso de passar boiadas regulatórias do que pela defesa de uma araucária que seja, por assim dizer. Salles falou com americanos e britânicos e fez ventilar a notícia -os primeiros acenam com dinheiro para a Amazônia; os outros presidem a CoP do clima em novembro -conferência nos moldes da que o Brasil desdenhou sediar em 2019. O ministro não fala mais do Fundo Amazônia, que enterrou no início de sua gestão.
Biden de olho
Curioso será ver se o mundo exterior será convencido por campanhas de marketing. Na semana passada, em live promovida pelo Brazil Institute do Wilson Center e pelo Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (GACInt) da USP, Nicholas Zimmerman, ex-diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para o Brasil na gestão Obama, deu algumas pistas. A postura do governo Biden em relação ao governo Bolsonaro evoluiu desde a campanha presidencial, quando a percepção em Washington era que o brasileiro não se alinhava aos EUA, mas ao ex-presidente Donald Trump. Hoje a abordagem do time de Biden é mais no estilo "wait and see". "Claro que há déficit de confiança, mas os EUA falam com países com os quais não se alinham", disse Zimmerman.
A má notícia é que a equipe de John Kerry, o enviado especial do presidente americano para clima, é experiente, conhece profundamente as negociações internacionais e é conectada com a sociedade civil global. "Retórica, sem ação não irá funcionar", alerta Zimmerman, hoje diretor da Columbia University. Outro sinal de que não se sensibilizarão com peças de propaganda é o silêncio sepulcral que os americanos têm feito de tais encontros. "O governo brasileiro tem interesse em colocar holofotes nestas conversas, para indicar que a estratégia está dando certo e que o país não é pária como se diz. Mas o time de Kerry está quieto". Sobre a mensagem explícita de Salles de exigir dinheiro para preservar a Amazônia, ele diz: "Na perspectiva americana é meio bizarro dizer 'nos dê mais dinheiro' depois do episódio com a Noruega e outros países".
Há outros atores buscando se qualificar ao aceno financeiro do presidente Biden - os US$ 20 bilhões para países florestais. São os governos estaduais, que tentam se afastar da má reputação do governo Bolsonaro.

https://valor.globo.com/brasil/coluna/o-valor-do-canto-do-pintassilgo.g…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.