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O vale-tudo no Xingu

O Paraense-Belém-PA e Agência Estado-São Paulo-SP
10 de Jun de 2002

Judiciário paraense pode estar envolvido em poderosa ofensiva sobre a última grande concentração de mogno do Pará

Às 9h48 da manhã do dia 14 de maio, o gabinete da desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, começou a transmitir por fax, de Belém para o fórum de Altamira, uma decisão que a magistrada acabara de proferir. Ela havia deferido um agravo de instrumento interposto por herdeiros inventariantes do espólio de Raimundo Ciro de Moura e pela Incenxil (Indústria, Comércio, Navegação e Exportação do Xingu), por trás da qual está o polêmico empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, dono da construtora C. R. Almeida.
Através desse recurso, os autores queriam impedir o cumprimento de uma decisão da juíza da 2ª vara cível de Altamira, Danielle Silveira Burnhein. Ela liberou máquinas e equipamentos de pessoas acusadas de extrair ilegalmente madeira de uma área em litígio, uma grande extensão de terra no vale do rio Xingu, que abriga a mais rica reserva de mogno conhecida e é alvo das maiores grilagens fundiárias registradas em todo o país.
Mal a juíza de Altamira havia determinado o cumprimento da decisão superior, o gabinete da desembargadora Maria do Céu Duarte, desta vez usando papel timbrado do Tribunal de Justiça do Estado (o que não fizera na primeira comunicação), expediu novo fax, às 13h21, pouco menos de quatro horas depois. Agora, através de ofício, a magistrada pedia à juíza Danielle Burnheim para desconsiderar o documento anterior, que continha o deferimento do agravo, "que por equívoco foi despachado por esta Desembargadora em uma cópia que estava sob [sic] minha mesa".
Não exatamente assim. O agravo foi protocolado no Tribunal pelos advogados Octávio Avertano Rocha e Eduardo Toledo às 10h07 de 13 de maio. O documento foi dirigido diretamente à desembargadora Maria do Céu pelos próprios advogados, fiados em que prevaleceria o princípio da dependência e da conexão, já que em outros momentos do litígio judicial petições semelhantes haviam sido encaminhadas para essa magistrada. Mas o agravo acabou tendo outra distribuição, sendo sorteado para a desembargadora Sônia Parente. Essa distribuição, entretanto, só foi processada às 11h20 daquele dia 14.
Ou seja: duas horas antes que a vice-presidência do Tribunal tivesse decidido para quem iria o recurso, a desembargadora Maria do Céu já o havia tomado como seu e o despachado, em extensas quatro laudas, atendendo o pedido dos autores do agravo, enviando-o imediatamente por fax para a comarca de Altamira. Assumira, assim, o papel de relatora, que iria caber não a ela, mas à sua colega Sônia Parente. Como isso fora possível? Talvez porque os papéis tenham sido deixados, "por equívoco", debaixo da (ou "sob a", conforme o texto original) mesa da desembargadora Maria do Céu?
Exatamente duas horas depois que o processo foi mandado para a desembargadora Sônia Parente, desfazendo a presunção dos advogados da Incenxil e do espólio, a desembargadora Maria do Céu tratou de cancelar seu "equivocado" despacho. Mas deu motivos para que, no dia seguinte, o advogado Antônio Villar Pantoja Júnior, defensor de Adnaldo Cabral Cunha, contra o qual foi proposto o agravo, argüisse a suspeição da magistrada, enquadrando Maria do Céu no artigo 135 do Código de Processo Civil. O artigo caracteriza como parcial o juiz "interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes". Parte que, lembrava ainda o advogado, era ninguém menos do que um dos sete acusados de grilagem no Xingu, em inquérito realizado pela Polícia Federal e atualmente no aguardo de denúncia do representante do Ministério Público Federal na comarca de Santarém.

Garimpo vegetal

O advogado pediu também à presidente do TJE, desembargadora Climeniè Pontes, providências a respeito do caso, inclusive "a sustação em caráter excepcional da liberação da madeira" em favor da Incenxil. Se intervier em profundidade na questão, é possível que a presidente do tribunal constate o envolvimento do judiciário paraense em uma selvagem e poderosa ofensiva em curso sobre a área na qual se encontra a última grande concentração de árvores de mogno do Pará, um autêntico garimpo vegetal, hoje valendo mais do que ouro.
O conturbado agravo diz respeito a apenas um desses muitos incidentes que estão pipocando no Xingu, a "Terra do Meio", como diz a ONG Amigos da Terra, referindo-se às ricas áreas de floresta virgem entre as reservas dos índios xinguanos, que estão submetidas a um selvagem processo exploratório. Os conflitos ocorrem sobre um terreno cediço, tendo por base as mais espetaculares grilagens de terras de que se tem notícia, talvez no planeta, atingindo mais de 20 milhões de hectares (o equivalente a 80% do território de São Paulo).
Praticamente metade desse vasto território está na mira da C. R. Almeida, apontada, no "Livro Branco da Grilagem", do Ministério do Desenvolvimento Agrário, como a campeã nacional desse tipo de apropriação ilícita. Mesmo sob essa acusação, a empresa se vale de registros imobiliários feitos no cartório de Altamira (cancelados e depois restabelecidos por ordem judicial) para agir como legítima proprietária das glebas.
Adnaldo Cabral Cunha foi autuado e multado (em 369 mil reais) pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em outubro do ano passado, pela extração ilegal de 880 toras de mogno, com 2.461 metros cúbicos de madeira (de um total de 8 mil metros cúbicos, que estão sendo transportados atualmente em balsas na direção de Altamira, a principal cidade da região, numa viagem que causa receio e apreensão, inclusive de extravio da madeira).
As árvores estariam no Seringal Monte Alegre, deixado por Raimundo Ciro de Moura e sua mulher aos filhos. O inventário do espólio é outro tumultuado capítulo lateral dessa história: um cu-nhado de Cecílio do Rego Almeida conseguiu ser nomeado inventariante, com base num simples contrato de arrendamento firmado com um dos herdeiros, deslocando dessa posição o inventariante anterior, da própria família.
Através do advogado Avertano Rocha, o espólio obteve junto a outro juiz da comarca de Altamira, Jackson Sodré Ferraz, interdito proibitório para determinar à Madeireira Ferreira e qualquer outra pessoa ou empresa "que se encontrem no local que se abstenham de turbar ou esbulhar" o Seringal Monte Alegre. O juiz determinou ainda a busca e apreensão das toras de madeira, colocando-as sob a responsabilidade de um "fiel depositário", Vandeir dos Reis Costa.
Imediatamente a Incenxil, utilizando outro advogado, pediu e conseguiu ser admitida como litisconsorte ativa no mesmo processo. Embora alegasse haver uma conexão entre os dois casos, na figura do mesmo invasor e extrator de madeira, que estaria ameaçando a ambos os autores, o imóvel supostamente esbulhado da empresa é a Fazenda Curuá (individualmente a maior grilagem do Brasil, segundo o Mirad), situada a razoável distância do Seringal Monte Alegre, mesmo na escala de gente que trata de mi-lhões de hectares como se fossem quintais (de uma autêntica mãe-joana, à qual o Estado do Pará, inerte, está se reduzindo).
Assim, um mandado judicial, que deve ser expedido sob fundamento específico, já está sendo concedido em tese, ou a rogo, podendo ser aplicado sobre diferentes imóveis, independentemente de sua configuração fática e da demonstração da procedência do pedido. Nada a espantar, de acordo com a tese jurídica, já que a mudança nos nomes dos advogados é circunstancial, em ações que têm atrás de si os mesmos personagens, com pretensões sobre uma amplitude territorial superior ao tamanho da grande maioria dos países da Terra.
O vale do Xingu se transformou na terra do vale-tudo, no reino do bandido, no lugar onde a lei mais forte é a do dinheiro. Quando não é a dos três-oitão, o calibre de revólver mais popular entre os que resolvem as diferenças à bala. Mesmo quando parece que a justiça irá prevalecer, ao menos como formalmente poderia indicar sua intervenção na história.

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