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O último desbravador

Veja, Perfil, p. 96-97
22 de Fev de 2006

O último desbravador
Demitido, o sertanista Sydney Possuelo deixa a mata onde trabalhou por quatro décadas mas só pensa em uma coisa: voltar para lá

Sandra Brasil

Sydney Possuelo é o último sertanista da velha-guarda, com uma carreira de contornos heróicos misturada a detalhes prosaicos. Aos 65 anos, sobreviveu a 39 malárias, escapou de incontáveis ataques no meio da selva, chegou a ficar mais de um ano entre índios, aprendeu a comer gafanhoto. Entrou na profissão movido pelo desejo de aventura e passou pela experiência que todo sertanista de respeito vive: mudou de idéia com relação a seus protegidos. Contaminado pelo vírus incurável da paixão pelo sertão, pensa constantemente em como voltar para lá. Por enquanto, está longe. Passou a última semana em Roma, participando, como conferencista, de um encontro sobre meio ambiente. Na volta, iria para o apartamento de três quartos que divide com a quarta mulher, Soraya Zaiden, de 43 anos, em Brasília, onde avalia propostas de trabalho em organizações não-governamentais que lhe permitam retornar à mata. No fim de janeiro, entrou numa briga de caciques grandes que o transformou em indigenista sem índio. Demitido da chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados, departamento que ajudou a fundar há dezoito anos, afastou-se de vez da Funai, onde trabalhou 33. "Ele é, no mínimo, um tutor infiel do índios", afirma, com teimosia característica, sobre o presidente da entidade, Mércio Pereira, com quem se desentendeu.
Possuelo não sabe dizer em quantas aldeias esteve em mais de três décadas de Funai e outros dez anos ao lado dos irmãos Villas Bôas. Calcula que, das 215 etnias existentes no Brasil, conhece metade. Comandou expedições responsáveis pelo primeiro contato com sete grupos de índios isolados (numa delas, levou oito anos para se aproximar de um grupo de índios araras, no Pará), antes de, nos anos 90, rever seus conceitos e abdicar da prática. Hoje, considera que indígenas isolados devem ser localizados, sim, em prol de sua própria proteção, mas deixados em paz no seu isolamento. "Se estão lá, é porque não quiseram fazer contato. Em algum momento, é provável que tentem se aproximar, mas nós não devemos ir atrás deles", explica. "Sydney foi formado na escola dos sertanistas empenhados em fazer as expedições de atração e pacificação dos índios que se encontravam nas rotas das frentes de expansão econômica e política", diz o antropólogo Beto Ricardo, diretor do Instituto Socioambiental (ISA). "Aos poucos, foi aprendendo a tragédia pós-contato e se converteu - hoje é um amansador de brancos", define.
Uma carreira como a dele certamente deixa cicatrizes, bem literais. Entre ataques de índios e brancos, um dos mais graves foi no começo dos anos 70: capturado por fazendeiros em conflito com a etnia txucarramãe, quase perdeu todos os dentes superiores a golpes de cano de revólver. Em outra ocasião, no Xingu, subjugado por um grupo de índios caiabis, ia tendo a cabeça empastelada a golpes de borduna quando foi salvo pelo chefe Megaron, sobrinho do cacique Raoni, que se colocou entre ele e os agressores. Ironicamente, dos vários acidentes sofridos, o mais grave foi no norte da África. Voltando de uma visita a uma tribo no deserto, o carro capotou, Possuelo foi arremessado para fora e se arrebentou todo. Passou um mês e meio internado em Casablanca, teve o rosto reconstituído com placas de platina, e o olho esquerdo ficou maior que o direito.
A paixão pela mata e seus habitantes começou quando era adolescente. Encantado com os feitos dos irmãos Villas Bôas, resolveu procurá-los, com a cabeça cheia de sonhos juvenis. "Tudo o que eu queria era aventura, caçar e pescar. Não sabia nada de índio nem de ecologia. Com o passar do tempo, fui aprendendo." Nos anos de contato com os índios, enfrentou grandes e pequenos testes que o levaram a desenvolver um código de conduta bem rígido. "Na primeira vez no Xingu, por exemplo, um caiabi ofereceu a filha dele para passar a noite comigo. Ele achava que eu estava triste e que era por causa da solidão. Recusei, claro." Considera um relacionamento assim "algo incestuoso; eles são como parentes para mim". Conta que já comeu muita formiga, larva e gafanhoto - "Tem de dar uma esquentadinha, três minutinhos. Joga vivo e fica tudo se mexendo. Gafanhoto é muito bom. Só tem de tirar as perninhas, que machucam a boca". Possuelo não tem tatuagens e não usa peças de artesanato indígena nem para enfeitar a própria casa (a maioria dos presentes se acumula em uma sala, à espera de melhor destino). "Acho bonito nos índios. Seria um desrespeito se eu usasse o que é deles", diz. Na selva, anda sempre vestido, inclusive para tomar banho. "Uma vez uma turma de estudantes de medicina chegou aqui e fiz uma preleção: 'Os índios, que andam nus, tomam banhos nus. Vocês, que andam vestidos, tomam banho vestidos. Não é liberou geral'. Um grupo, mesmo assim, tomou banho sem roupa. Eu pus os que descumpriram a norma no primeiro avião de volta", relata. Em todos os primeiros contatos que fez com índios, sua barba e a calva no alto da cabeça chamaram muita atenção. "Eles ficam muito curiosos com as nossas diferenças físicas. Recomendo sempre que todos se deixem tocar pelos índios", diz. Em relação a presentes, só "instrumentos de trabalho", como facão e machado. Uma vez, sem querer, esqueceu uma lanterna entre os presentes. Soube depois que os índios a acenderam, se assustaram com a luz, jogaram-na numa fogueira, a bateria explodiu e todos saíram correndo. "A tribo abandonou o lugar por causa disso", diz Possuelo, que já chegou a passar treze meses corridos no mato.
Com seis filhos com idade entre 29 e 5 anos (raridade: nenhum tem nome indígena), Possuelo não se lembra de nenhuma data de aniversário. Em reunião de escola, esteve uma única vez. A vida de sertanista obviamente tem um custo. "As mulheres ficavam atraídas pelo 'Oh, meu sertanista! Oh, homem da selva'. Mas do mesmo pote que nasce o afeto nasce a separação, porque é difícil ficar casado com uma pessoa que passa sete meses do ano longe", reconhece. Há seis meses, sentiu-se mal quando preparava, com o filho Orlando, 21 anos, uma expedição em Mato Grosso. De volta a Brasília, foi submetido a uma cirurgia para colocação de três pontes de safena e ainda não está totalmente recuperado. Já foi homenageado pela ONU, condecorado pela rainha Elizabeth e incensado pela revista Time. No ano passado, ganhou na Espanha o título de "Quixote da Selva" durante as comemorações dos 400 anos da primeira impressão do clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. "Como ele, não abro mão dos meus ideais", diz. Sua vida é a prova disso.

Veja, 22/02/2006, Perfil, p. 96-97

http://veja.abril.com.br/220206/p_096.html

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