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O trabalho escravo persistirá no país?

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: BERZOINI, Ricardo; GOMES, Flávio
07 de Fev de 2004

O trabalho escravo persistirá no país?

Não

O Brasil pelo trabalho decente

Ricardo Berzoini

Há 20 anos, o fiscal do Trabalho Alexandre Cerqueira César era violentamente assassinado em Assis (SP) porque cumpria seu dever em lavrar um auto de infração após ter constatado 13 trabalhadores em situação irregular. Foram seis tiros desfechados contra sua cabeça, peito e costas. Naquele 24 de janeiro de 1984 tinha início, em Brasília, o 1o Encontro Internacional de Proteção ao Trabalho. O encontro proclamou Alexandre como o guardião da justiça social no país.
Na semana passada, três auditores-fiscais e um motorista da Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais foram barbaramente assassinados, em Unaí (MG), em pleno exercício de suas funções. O crime, ainda sob investigação federal, chocou mentes e corações de todo o povo brasileiro. Na catedral de Brasília, no ato litúrgico de sétimo dia em homenagem aos quatro companheiros, ministros, parlamentares, servidores, dirigentes sindicais e familiares selavam com o presidente da República o compromisso de revelar o mais rápido possível as razões do crime, prender e punir os culpados.
Nas palavras do presidente Lula, a ordem é ter mais fiscais, porque se três incomodaram tanto, vamos incomodar muito mais. Em Unaí, quatro trabalhadores, servidores públicos, morreram ao proteger outros trabalhadores contra situações de trabalho degradantes e irregularidades contratuais. A chacina provocou, entretanto, a reflexão sobre o trabalho escravo que ainda teima em sobreviver no país, embora nossa nação carregue o duro fardo de ter sido a última das Américas a abolir, em lei, a escravidão. Num rápido olhar sobre a expansão agrícola brasileira a partir dos anos 70, em especial nas regiões Norte e Centro-Oeste, não é difícil constatar que a escravidão pode ter sido abolida, mas ainda persiste o comportamento escravocrata de alguns patrões. Esses não querem ser entendidos como empregadores, mas como coronéis de um império tardio, que não tem mais lugar numa sociedade hoje representada em variadas matizes ideológicas, culturais, políticas, sociais e empresariais no poder central.
Cabe ressaltar que, por outro lado, o moderno empresário rural não pode ser confundido com esse atraso: só em 2003, 58 mil novos empregos formais foram gerados na agropecuária brasileira, o que se deve, também, à ação fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego.
Os gestores atuais do Estado têm o compromisso, firmado ao longo de anos de militância sindical e política na oposição, e também o dever de modificar a estrutura cruel e desumana enraizada em alguns nichos de ganância.
O desafio para o Ministério do Trabalho e Emprego colocado neste espaço de debates é "se o trabalho escravo vai persistir no Brasil".
Nós afirmamos que não. Nos dados estatísticos, de pesquisas e de óbvia constatação, as causas e soluções estão colocadas. É possível, numa aliança dos governos municipais, estaduais e federal com a sociedade, eliminar esse grande mal que insiste em permanecer no cotidiano de milhares de trabalhadores rurais, garimpeiros e, por que não, entre muitos que trabalham nas cidades, inclusive trabalhadores de outros países sul-americanos, como os bolivianos trazidos para indústrias têxteis clandestinas em São Paulo .
Triste é constatar, desde o ano passado, com o lançamento do "Atlas da Exclusão Social", de Marcio Pochmann, que o Maranhão, seguido do Piauí, amarga os maiores índices dos números apresentados na pesquisa. E são os maranhenses os responsáveis pelo primeiro grito de liberdade econômica do Brasil, sufocado pela morte na forca de seu líder, Manuel Beckman, em 1685.
Não é possível, nos dias de hoje, a convivência com mercados de trabalho escravo, como acontece no sul do Pará, estado que concentra o maior número de profissionais do minério e da agricultura que são obrigados a deixar seus Estados, famílias e relações sociais para se humilhar pelo direito de produzir. Sem oportunidades reais de trabalho, habitação, saneamento, educação, cultura e lazer, tornam-se disponíveis à maldade e ao descaso à vida humana dos feitores da atualidade -os chamados gatos- e seus patrões.
O povo brasileiro acordou, porque vem despertando em seu berço esplêndido de forma mais acelerada nas últimas décadas. Pois é isso que somos, um grande berço de riquezas culturais, patrimoniais, hídricas, minerais e sincretismo de vários povos que aqui formaram uma nova civilização.
Nosso dever é realizar os sonhos que basearam a luta social dos trabalhadores. Nesse momento, não precisamos recorrer aos números, sabemos exatamente onde estão os principais problemas, demandas e soluções. As providências para erradicar esse mal já estão em curso e prosseguirão, sistematicamente.
Temos o dever de eliminar o trabalho escravo e garantir a dignidade do emprego em nosso país. Esse é o compromisso de nosso governo e temos a certeza de que é apoiado por quase todos. É também uma forma de homenagear Alexandre, Aílton, João, Eratóstenes e Nélson. Mais que tudo, é a nossa obrigação perante a Constituição Federal da nação brasileira.

Ricardo Berzoini, 43, é ministro do Trabalho e Emprego e ex-ministro da Previdência Social. Deputado federal licenciado (PT-SP), foi presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo e da Confederação Nacional dos Bancários.

Sim

Cidadania zero: heranças e legados

Flávio Gomes

O episódio do assassinato dos fiscais que investigavam a utilização de trabalhadores escravizados -entre indignação e perplexidade- nos remete para uma reflexão mais profunda sobre as experiências de trabalho compulsório e a história do trabalho no Brasil. Mergulhamos num país e em sua estrutura socioeconômica. Um passado -que alguns insistem em desenhar distante- faz-se cada vez mais presente.
Aqui, como no restante das áreas coloniais das Américas, o trabalho compulsório constituiu-se num fato social, sequer questionado no início, para o desdobramento da colonização e a produção de riquezas. Considerando o fim da escravidão indígena decretado em meados do século 18 (ainda que essa liberdade fosse uma ficção, uma vez que fazendeiros em frentes de "civilização" e de expansão econômica do século 19 tinham o "direito" de recrutar indígenas) e a Lei Áurea de 1888, temos três quartos da nossa história com utilização de trabalho escravo.
Mas, afinal, qual o passado que se faz hoje presente com as denúncias de trabalho escravo? Resguardando-se da retórica dos embates abolicionistas da época, Joaquim Nabuco estava certo ao quase profetizar as permanências da escravidão na sociedade brasileira. Para o final do século 19, apontava para as relações de domínio, intolerância e truculência que ligavam fazendeiros com escravos e homens livres. Nascido em Recife, certamente tinha ouvido falar da chamada revolta dos Marimbondos, quando em 1852, numa zona rural pernambucana, camponeses livres revoltaram-se, marchando em direção às vilas e enfrentando tropas imperiais. Foi uma reação contra a legislação que determinava o recenseamento civil de batizados, casamentos e óbitos. Sobretudo lutaram para não serem transformados em escravos. Com a Lei de Terras, o fim do tráfico em 1850 e o avanço das fronteiras econômicas sobre terras devolutas, esses camponeses avaliaram que as políticas imperiais visavam transformá-los -de homens livres camponeses que eram- em escravos.
Não havia necessariamente planos para escravizar homens livres no Império. Embora o medo da reescravização tenha rondado muitos, principalmente libertos temerosos da revogação de suas alforrias. No Congresso Agrícola de 1878, fazendeiros de norte a sul apostaram no trabalho livre e clamavam por mais recursos públicos. Sobretudo tinham expectativas de controle sobre os trabalhadores. Aliás, escravidão no Brasil não pode ser pensada como tendo sido um obstáculo para o capitalismo. Pelo contrário, perversamente preparou e criou bases para a economia moderna capitalista.
No último quartel do 19 chegou-se a denunciar, em embaixadas estrangeiras, as condições de vida a que eram submetidos os imigrantes europeus. Na época, considerando moradia, alimentação, carga de trabalho e incentivos, afirmavam viver pior que os escravos. E jornais noticiavam fugas das fazendas, tanto de escravos como de imigrantes europeus. Enfim, modernização com maiores investimentos de capital em equipamentos e a reorganização da produção não significaram mudanças econômicas e sociais. E não permaneceu somente uma mentalidade senhorial, e sim a modernização que preservou estruturas tradicionais.
Quem são os escravos do século 21? Filhos e netos dos escravos e excluídos do século 19. Mais do que permanecer desigual em termos econômicos, sociais e raciais no pós-1888, o Brasil reproduziu injustiças, marcando homens e mulheres. E a questão não foi somente a falta de políticas públicas após a Abolição. Houve mesmo políticas públicas republicanas reforçando a intolerância, concentração fundiária, marginalização e repressão nas áreas urbanas. A tudo isso juntou-se a impunidade de ontem com a de hoje, temperada com conivência e desmandos. E transformamo-nos numa das sociedades mais desiguais e injustas do planeta.
Quais as permanências? Miséria e ignorância. O que fazer? Primeiro, reconhecer o problema e sua gravidade: a existência do trabalho forçado -fundamentalmente a escravidão por dívidas- disseminado em várias áreas rurais brasileiras. Não há apenas situações degradantes de trabalho, mas sim trabalho escravo e suas faces de coerção, ameaças e violências. Depois, é fundamental a aplicação da lei. Alerto que não adianta culpar o passado. Nem ensaiar argumentações eloqüentes sobre o modelo econômico com dados e tabelas. É necessário resgatar cidadania para todos. Tirá-la do zero.

Flávio Gomes, 39, professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é organizador, ao lado de João José Reis, de "Liberdade por um Fio - História dos Quilombos no Brasil" (Companhia das Letras, 1996).

FSP, 07/02/2004, Tendências/Debates, p. A3

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