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O sertão vai continuar sertão

OESP, Alías, p. J3
Autor: GUIMARAES JR., João Abner
09 de Out de 2005

O sertão vai continuar sertão
Na contramão da versão oficial, engenheiro do RN garante que transposição não aliviará a seca

Mônica Manir

Natural do Seridó, no Rio Grande do Norte, João Abner Guimarães Jr. é, antes de tudo, um crítico - pelo menos quanto à transposição do São Francisco. Professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e assessor do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, ele peregrina desde 2000 por tudo que é debate envolvendo o tema. Na mão, números.
É com eles que busca derrubar o que chama de transposição do atraso, uma obra que estaria na contramão do desenvolvimento sustentável a partir do acesso democrático à água. É com eles que ironiza a indústria da seca. É também com eles que exemplifica o fiasco que a transposição representaria, em especial para seu Estado de origem.
Ao lado do Ceará, de Pernambuco e da Paraíba, o Rio Grande do Norte seria um dos beneficiados pela maior obra de engenharia hidráulica do mundo. Nas contas de João Abner, porém, o prometido acréscimo de vazão disponível, depois da divisão da água entre os quatro, significaria um decréscimo de 15,6% para a população potiguar. 'Tal como na fábula de Esopo, a montanha ruge, ruge, treme, treme... e dá à luz um rato', diz. Nesta entrevista, ele chacoalha outras tantas expectativas que rondam o projeto.
MOEDA DE TROCA
O governo incorporou o discurso da revitalização, uma bandeira antiga do Comitê da Bacia do São Francisco, como moeda de troca para abafar o constrangimento político causado pela greve de fome de d. Luiz Flávio Cappio. Não cancelou a transposição. Só que a segunda compromete a primeira. O governo alega que a transposição captará apenas 26 metros cúbicos por segundo da vazão na foz do rio, o que corresponde a 1,4% da vazão disponível.
Mas sabemos que o potencial da obra é de 127 metros cúbicos por segundo. É um megassistema de bombeamento, que exigirá ainda mais de um esquema já superexplorado. Para se ter uma idéia, essa vazão mínima de 26 metros cúbicos, por si só, compromete toda a vazão ainda não outorgada pelo governo para uso humano, animal, industrial e de irrigação na região.
Se for adiante, qualquer novo projeto de revitalização estará impedido de se instalar na Bacia. Isso vai intensificar ainda mais o conflito pelo uso da água no São Francisco.
CHOVENDO NO MOLHADO
O projeto não levará a água do rio para as áreas secas. O cunho social é uma falácia. Vai chover no molhado porque jogará água onde já tem. Se pegarmos, por exemplo, os números oficiais do plano de recursos hídricos do Ceará, a disponibilidade hídrica potencial é da ordem de 215 metros cúbicos por segundo - e na estação seca. Ao dividir esse valor de vazão disponível pela população do Estado (cerca de 7,5 milhões), chega-se a uma disponibilidade per capita da ordem de 900 metros cúbicos anuais por habitante.
Agora, se dividirmos os 360 metros cúbicos por segundo da Bacia pelos 13 milhões que habitam o lugar, chegamos a uma disponibilidade per capita de 850 metros cúbicos anuais por habitante.
Ou seja, o cearense tem mais água disponível para uso do que o morador da Bacia do São Francisco. É de estranhar que o Estado do Ceará esteja tão empenhado nesse projeto...
ÁGUA PERRIER
O presidente disse que só é contra a transposição quem tem água Perrier na geladeira ou quem nunca carregou uma lata d'água de 20 litros na cabeça por 6 ou 8 léguas. Mais uma demagogia. A transposição terá um impacto de cerca de 5% na região do semi-árido. E só. O povo que vive nessa área estará a 100, 200 quilômetros de distância da rota da transposição.
Então por que associar o projeto ao semiárido? É a lógica da indústria da seca, que amplia o problema para desviar recursos públicos e vender uma falsa solução. Claro que a seca é uma tragédia. Sou sertanejo, filho de agricultor, vi e convivi com isso. A questão é que não precisamos de transposição para abastecer esse povo.
O Nordeste Setentrional tem um potencial conjunto de água de mais de 300 metros cúbicos por segundo, cerca de 10 vezes maior do que aquilo que a população vai consumir. Ela precisa, isso sim, de infra-estrutura para a distribuição, que não existe.
AÇUDES PARA DAR E VENDER
A transposição está ligada à política hidráulica do Nordeste, que começou no final do Império com a construção de grandes barragens. O maior programa de açudagem do mundo fica aqui. Claro que o açude foi importante. No entanto, o que prevalece são elefantes brancos. As grandes empresas não têm interesse na distribuição porque não ganham dinheiro construindo adutoras.
Quem lucra com adutoras é quem fabrica o tubo e a bomba. Prevalece o lobby da construção civil, da indústria de cimento, de aço. O maior projeto de irrigação pública do Rio Grande do Norte foi iniciativa de um deputado de Minas Gerais, que usou o orçamento da União. A maior barragem que temos também no Rio Grande do Norte, a Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, a segunda maior do Nordeste, foi uma compensação que a construtora Andrade Gutierrez recebeu porque perdeu uma concorrência para a construção de outra barragem.
É assim a história desses projetos: preocupação zero com a racionalidade e com o desenvolvimento da região.
PRESENTE DE GREGO
A Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) entrega água pressurizada às propriedades, praticamente no pé da planta, a 2,3 centavos o metro cúbico aqui no Rio Grande do Norte. A transposição vai cobrar 11 centavos, e no rio.
Não há nenhuma possibilidade de os produtores pagarem por essa água. É inviável. Fontes externas, como o Banco Mundial, acham que o projeto está na contramão da história e disseram não ao investimento.
Por isso o governo sugere a criação de um subsídio cruzado envolvendo os consumidores urbanos, por isso envolveu grandes cidades como Fortaleza e Recife: para que banquem pelo preço dessa água, que os produtores não têm como pagar.
Ao mesmo tempo, enquanto os agricultores da Bacia pagam hoje sozinhos pela água, os da cidade terão esse subsídio cruzado. Vai ampliar os conflitos entre concorrentes.
15 ANOS EM 2?
Essa obra é cópia fiel da que foi proposta no governo Itamar Franco e depois replicada no de Fernando Henrique Cardoso. A infra-estrutura prevista é a mesma. Só que o cronograma no governo FHC previa um tempo de 15 anos para a construção. O governo Lula fala em 2! Imagine que apenas um item da obra - o Cuncas 2 - é um túnel de 17 quilômetros de comprimento com 7 metros de diâmetro, que será cavado em rocha granítica.
Ele é o maior, de um total de 37 quilômetros somente de túneis. Falamos de uma das maiores obras de engenharia hidráulica do mundo. É uma falácia criar essa expectativa. Quanto ao orçamento, também na época de FHC, levantou-se a possibilidade de usar o valor total da privatização da Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco), que valeria U$ 10 bilhões de dólares. Como acreditar em um orçamento de U$ 1,7 bilhão?
A LICENÇA DO IBAMA
Toda obra de engenharia é impactante. Quando um órgão ambiental dá uma licença, ele analisa os impactos positivos e negativos. O processo de impacto ambiental da transposição, porém, está totalmente viciado. Eles consideraram a bacia doadora como área de influência indireta. Mal observaram os impactos negativos da transposição, a não ser dados irrelevantes, como as conseqüências sobre a população da poeira gerada com a obra.
Esqueceram-se do futuro, esqueceram-se de avaliar os efeitos de um sistema que pode chegar a 127 metros cúbicos por segundo. Os índios trucás, da reserva indígena da Ilha de Assunção, serão prejudicados porque captam água para cultura de subsistência de um braço do rio que vai secar com a transposição. A Constituição afirma que qualquer obra que provoque impacto sobre reserva indígena tem que ser aprovada pelo Senado. Bastava isso para o Legislativo no mínimo segurar o projeto para avaliação.
INVADIDO PELA LÍNGUA DO MAR
Dizem que a água do rio que chega ao mar não está sendo usada para nada. Mentira! Toda a água que chega ao mar foi plenamente turbinada pela Chesf e gerou energia. Só não é utilizada quando a barragem de Sobradinho está cheia, o que ocorre apenas de 7 em 7 anos. Ela verteu em 97 e no ano passado, por exemplo. Então o projeto não vai captar a água da foz, e sim acima do sistema de geração da Companhia. E vai alterar substancialmente a flutuação de vazões ao longo do dia por causa do maior consumo das bombas.
O São Francisco já está na UTI, com problemas de assoreamento, poluição, captação clandestina de água subterrânea. Isso tudo, mais o sistema artificial de regulagem das vazões, perturbou o equilíbrio entre o rio e o mar. Há um avanço da língua salina, com povoados costeiros de pescadores totalmente destruídos. Espécies marinhas foram achadas a 70 quilômetros da foz. O Estado de Sergipe tem uma preocupação grande com isso, pois capta a maior parte da sua água diretamente da foz do São Francisco. Dessalinizar a água do mar até é possível, mas antieconômico. O custo seria cinco vezes mais alto do que é hoje, algo proibitivo para a produção agrícola e inviável num mercado globalizado.
A GOTA D'ÁGUA
Esta seria a única obra do governo Lula. Vem daí tamanho empenho pelo início da construção. O presidente disse nestes últimos dias que não poderia haver a suspensão de uma obra que nem sequer teve tempo de começar, mas já existem três batalhões de engenharia no Rio Grande do Norte, na Paraíba e em Pernambuco. Vão fazer de tudo para derrubar ações que correm no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, pois é uma obra que pode comprometer o pacto federativo, dividindo os Estados. A posição extremada do bispo precisa ser analisada neste contexto.
Existe um clima muito explosivo na região, que favorece posições radicais. O potencial de conflito de uma guerra civil é grande e o governo não está fazendo nada. O interesse do bispo, sem dúvida, é o interesse do Brasil.

OESP, 09/10/2005, Aliás, p. J3

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