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O sertão pode virar deserto

O Globo, Amanhã, p. 24-27
26 de Fev de 2013

O sertão pode virar deserto
Queda na ocorrência de chuvas, provocada por mudanças globais e desmatamento na região, fazem temperatura se elevar em 1,75 grau no semiárido baiano. Projeto busca alternativas para agricultores

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br

As mais de 250 mil famílias de agricultores da Bacia do Jacuípe, semiárido baiano, nunca tinham ouvido falar de mudança climática, ou aquecimento global. Mas sabem melhor do que qualquer cientista que o calor está chegando mais forte no verão e ficando por mais tempo, o solo está mais seco, e falta às crianças e ao gado o que beber. O milho e o feijão são cultivos quase abandonados, pois já não aguentam esperar as águas de março que às vezes não vêm.
Imagens que fazem parte do dia a dia dos sertanejos, e ganharam o imaginário dos brasileiros por meio da literatura, agora vão rodar o mundo nos números do projeto "Adapta, Sertão". A partir do município de Pintadas (BA), uma força-tarefa de pesquisadores descobriu que, em 50 anos, a cidade perdeu 30% da precipitação anual. No mesmo período, a temperatura se elevou em 1,75 graus, mais do que o dobro da taxa registrada globalmente, de 0,8 grau. E já se sabe que o padrão se repete em muitas outras cidades da bacia.
As 30 famílias de agricultores acompanhadas de perto pelos pesquisadores viram a produção de leite cair 7% de 1962 a 2011, segundo dados do estudo. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, em todo o Estado da Bahia, o movimento foi oposto, com aumento de 42% no mesmo período. No país, a elevação da produção leiteira foi de 101%. Em linguagem científica, significa que a Bacia do Jacuípe é um "hot spot" do planeta, ou seja, é uma região extremamente vulnerável às mudanças climáticas.
Para a população, os números já estão sendo sentidos no corpo. Está ficando dificil sobreviver no local e, se a situação perdurar, os moradores da Bacia do Jacuípe podem se tornar futuros refugiados do clima, migrando para outras regiões brasileiras em busca de alternativas de renda. É a grande preocupação da presidente da cooperativa Ser do Sertão, Nereide Segala Coelho, de 54 anos, 50 dedicados à terra no município de Pintadas. Por conta da seca, ela desistiu de cultivar aipim e feijão, e hoje só tira leite de um punhado de cabeças de gado que ainda mantém.
- Se um pesquisador pergunta de mudança climática, o povo olha de cara feia. É cientifiquês, outra língua que estão falando.
Mas quando eu pergunto 'meu tio, os tempos mudaram?', todo mundo logo concorda. Está difícil viver sem chuva, a renda das famílias caiu muito - contou Nereide.
O jeito para enfrentar a mudança é pensar em adaptação, e rápido. Foi o que perceberam os autores do "Adapta, Sertão", responsáveis pelas primeiras iniciativas na região. O programa surgiu de uma parceria entre a cooperativa Ser do Sertão, a Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), o Centro de Clima da Coppe/UFRJ e a Escola de Relações Internacionais e Estudos do Pacífico da Universidade da Califórnia, em San Diego.
Desde 2006, a equipe testa alternativas de irrigação e alimentação animal para combater o colapso na produção de leite e na agricultura local a partir de pequenas inovações, e, principalmente, da capacitação dos agricultores locais. No dia 19 de março, eles embarcam para Brasília, onde receberão da presidente Dilma Rousseff o prêmio Celso Furtado de Desenvolvimento Regional, que elegeu o projeto em primeiro lugar entre alternativas a serem replicadas no país.
Iniciativas como essa ganham cada vez mais visibilidade, em um momento em que o aquecimento global está intensificando eventos climáticos extremos no mundo todo. A China enfrenta um de seus piores invernos, a Austrália passa por queimadas, os Estados Unidos e o Canadá se recuperam da passagem do Furacão Sandy e o sertão brasileiro espera a chuva cair. Estimativas da Organização Meteorológica Mundial mostram que, entre janeiro e outubro de 2012, a temperatura média foi cerca de 0,5 grau acima da média do mesmo período entre 1961 e 1990, o que deve levar o ano passado a se tornar o oitavo ou nono mais quente desde 1850.
No Brasil, já se sabe que o semiárido será uma das regiões mais afetadas. O mais grave é que, na região, a maior parte das pessoas vivem da terra, que cada vez dá menos frutos.
Essa combinação é a maior preocupação do "Adapta, Sertão", segundo o coordenador do projeto, o italiano Daniele Cesano, da Redeh.
- Ou o Brasil encontra soluções para a seca no semiárido, ou terá que sustentar 18 milhões de nordestinos que entrarão na miséria.
De acordo com o estudo coordenado por Cesano, o município de Pintadas é apenas um exemplo do fenômeno que afeta todo o Sertão. E não só a falta de chuva é problema. Reservatórios subterrâneos e sistemas de abastecimento hídricos estão sendo carregados com menos frequência, porque os dias com mais de 10mm de chuva foram reduzidos em 52%, segundo dados climatológicos do Instituto de Meteorologia (INMET). Ou seja, pior que a quantidade de chuvas em um mês passou a ser a concentração delas.
Não adianta para a agricultura que um bom pé d'água lave o Sertão por dois dias, e só volte depois de dois meses. Se um agricultor planta um pé de milho em novembro, fica na torcida para uma chuva cair pelo menos dali a 20 dias, e depois mais pouco nas duas semanas seguintes. Caso o acontecimento demore meses, o cultivo não aguenta esperar.
Desmatamento agrava seca
Pior para os agricultores da Bacia do Jacuípe tem sido descobrir que eles também têm seu quinhão de culpa na história. Dentro do projeto, eles aprendem técnicas para tornar a irrigação mais eficiente, com gotejamento, a usar água salobra no cultivo e armazenar melhor o recurso de que dispõem. Mas, mais do que isso, recebem informações sobre as pesquisas dos cientistas. É nesse momento que os sertanejos descobrem que o desmatamento, praticado historicamente pelas famílias da região, agrava as mudanças climáticas.
- Se, por um lado, o efeito estufa castiga o sertão, o povo também maltrata a terra onde vive, agravando a seca. A mudança global alteraas chuvas, que chegam com menos força, ou mais concentradas. Mas há uma característica local que merece mais atenção: o desmatamento precisa ser reduzido. Sem mata, a umidade cai e não há evaporação, diminuindo as chuvas - explicou Cesano.
Os maiores sucessos do projeto tem sido assim, nas "miudezas", na linguagem dos agricultores que falam sobre o projeto. Aos poucos, as famílias estão aprendendo que não precisam de tanto espaço para criar o gado solto, e que podem também preparar o solo para fazer rotatividade. E, assim, o desmatamento é reduzido na região, segundo relatos dos pesquisadores e de moradores, embora ainda não haja dados específicos para comprovar, e não exista política pública voltada para a região.
Além de Pintadas, o projeto chegou aos municípios de Quixabeiras e Baixa Grande, todos na Bacia do Jacuípe. O objetivo agora é estendê-lo não apenas para as demais cidades da região, mas para todo o Nordeste, segundo o professor da Coppe/UFRJ Emílio La Rovere, coordenador do Centro Clima e um dos membros do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (ONU).
- Podemos transformar práticas exitosas em política pública de adaptação. Infelizmente, o clima vai piorar a vida dos agricultores do semiárido. Precisamos ajudá-los a prevenir, adaptar, e viver com o menor dano possível.
É nessa linha que se insere o "Adapta, Sertão" - contou La Rovere.
Não só a seca, mas a vulnerabilidade social também atrai os olhares para a Bacia do Jacuípe.
Foi o que chamou a atenção dos pesquisadores Jennifer Burney e Jarrod Russel, da Universidade da Califórnia, apoiadores do projeto brasileiro. Eles estão em busca de programas que preparem as populações para as mudanças climáticas, aliviando a pobreza.
- O Sertão brasileiro enfrenta uma das maiores secas das últimas décadas. E isso se repete em outras partes do globo. Se um projeto como esse der certo, pode ser replicado.
Os agricultores precisarão ser resilientes às mudanças - contou Russel, por e-mail.
Com incidência de pobreza de 27%, baixo índice de instrução educacional - mais da metade da população não completou o ensino fundamental - e dependência econômica de atividades como agricultura e pecuária, os habitantes do município, sozinhos, cortariam um dobrado para sobreviver.
Historicamente, o semiárido baiano é uma região esquecida pelo poder público. Ganhou estereótipo de lugar da pobreza, da mestiçagem e do coronelismo, a partir de grandes relatos literários, inaugurados com a obra "Os Sertões", de Euclides da Cunha. O autor retrata a seca como a maior calamidade local, a partir da história da Guerra de Canudos, cidade a cerca de quatro horas do município de Pintadas. Além dele, outras obras, como a consagrada "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, tentam representar um pouco da rotina do sertanejo, escrevendo uma história que, na região, só existe no registro oral, e é pouco conhecida pelos habitantes das cidades, como brincou a presidente da Cooperativa Ser do Sertão, Nereide Segala:
- Filho de cidade não entende a vida no semiárido. O ânimo para enfrentar as dificuldades está chegando com o projeto, graças aoapoio dos pesquisadores. As mulheres estão tomando à frente do projeto - disse Nereide, uma das lideranças femininas da Bacia do Jacuípe.
- Meu marido veio me dizer que, para viajar com o projeto, eu tinha que pedir autorização a ele. Resolvi então acabar com o cargo de marido lá em casa. Continuamos morando juntos e casados oficialmente. Mas agora ele é apenas meu companheiro. Aqui na roça é assim, o movimento das agricultoras está acabando com o cargo de marido.
Adapta, Mata Atlântica
Nos próximos meses, a Mata Atlântica ganhará uma versão do projeto. O primeiro município na rota é Petrópolis e o motivo ganhou notoriedade há cerca de dois anos, quando a tragédia na Região Serrana marcou o início de uma série de planos de adaptação para o aumento da ocorrência de chuvas fortes no local. É isso que pretende o "Adapta, Mata Atlântica", cujo planejamento, no entanto, é começar de forma diferente do que foi aplicado no Sertão. Aqui a ideia é fazer um diagnóstico dos riscos e buscar formas de pagamentos por serviços ambientais, para que os produtores possam ser recompensados para não desmatar.
A proposta é que empresas e instituições publicas coloquem recursos em um fundo, para garantir o pagamento pela proteção da mata e da qualidade da água na região, por exemplo. Tudo começaria pela conscientização dos produtores, a partir do projeto Sinal, coordenado por Thais Corral, da Redeh e com grande experiência na articulação de comunidades.
- A primeira adaptação vem com uma mudança de mentalidade, numa perspectiva em que recursos naturais sejam vistos como bens comuns que precisam ser preservados para uso de todos. A adaptação mais prática é feita com preservação, reflorestamento e reciclagem do lixo, que, ao ser depositado nas encostas dos morros, cria obstrução para a queda das águas e, finalmente, a questão das habitações em lugares de risco.
Para Cesano, que trabalhará na Mata Atlântica ao lado de Thais, as mudanças são urgentes em todo o país.
- Tem que mudar o sistema produtivo. Hoje, o produtor rural desmata para aumentar a produção. É desnecessário. No Brasil, a média é de dois hectares para cada boi. Na Europa, o número cai para meio hectare.
Para os pesquisadores, faltam políticas públicas, para que haja resiliência e para que o país se prepare, especialmente nas áreas mais vulneráveis, para as mudanças climáticas. No dia a dia do semiárido e na Serra, aquecimento global não é mais exercício de futurologia, é tempo presente.

O Globo, 26/02/2013, Amanhã, p. 24-27

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