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O rio da Dúvida

O Globo, História, p. 37
31 de Mai de 2014

O rio da Dúvida
Expedição de ex-presidente americano e coronel brasileiro na Amazônia faz cem anos

Raphael Kapa

"Sem informações sobre o local". Desta maneira a parcela intocada pelo homem branco na Amazônia era descrita até cem anos atrás, quando um ex-presidente dos Estados Unidos e um coronel explorador brasileiro fizeram uma expedição que descortinou tribos indígenas, espécies de animais e vegetais desconhecidos até então.
Theodore Roosevelt, conhecido como Teddy, tinha acabado de perder sua reeleição nos Estados Unidos após dois mandatos consecutivos, quando foi convidado a fazer conferências no Chile. Conhecido como um aventureiro, o ex-presidente aproveitou a vinda à América do Sul e propôs ao Museu Americano de História Natural uma expedição cientifica para recolher exemplares da fauna brasileira.
- O Brasil tinha acabado de montar uma embaixada nos EUA e viu na vinda de Roosevelt uma grande oportunidade política para aproximar os países e, em troca, o ex-presidente seria reconhecido como um explorador cientifico - afirma o pesquisador Pedro Libânio, especialista nesta expedição pela UniRio.
O nome de Cândido Rondon - na época coronel responsável pelo projeto de integração nacional através da implantação de linhas telegráficas - foi logo lembrado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Lauro Muller, que tinha sido seu colega de classe na Escola Militar. A sugestão foi feita a Roosevelt, que prontamente concordou.
- Só esqueceram de combinar com o próprio Rondon, que respondeu dizendo que não era guia turístico e que era melhor procurar outro. Depois o coronel impôs uma condição: iria se fosse com uma finalidade cientifica - explica Mário César Cabral Marques, autor do livro "Rio da Dúvida - O centenário de uma epopeia".
Itinerário contrariava os governos
Rondon apresentou cinco alternativas de itinerários para a expedição. A escolha de Roosevelt foi exatamente pelo que mais contrariava o governo brasileiro e o americano: descer e explorar um rio, conhecido como Dúvida, na Amazônia, sem saber onde ele desaguaria, na única área do território nacional a qual o homem branco não havia ainda chegado.
- As autoridades ficaram preocupadas. Afinal, como você vai dar proteção ao ex-presidente dos EUA em um local que você não conhece? - comenta Mario Cesar.
Para Libânio, era um risco mas trazia prestígio para a iniciativa.
- Era a escolha certa naquele momento e eles se cercaram de uma equipe plural para a expedição. A região do rio da Dúvida era a última ainda inexplorada. Roosevelt queria ter esse mérito com ele.
No dia 12 de dezembro de 1913, as duas equipes encontraram-se pela primeira vez no rio Paraguai. Entre os americanos, além de Teddy, estava seu filho, Kermit Roosevelt, que já trabalhava no Brasil, o Padre Zahm, que sugeriu a viagem pela América do Sul, dois especialistas do Museu de História Natural, um explorador e dois secretários. A equipe brasileira contou com 18 membros, incluindo geólogo, timoneiro, remador, cozinheiro e até um guia indígena. Além de três cachorros: Trigueiro, Cartucho e Lobo.
- A equipe brasileira fez um trabalho minucioso e muito ligado ao pensamento da época. Rondon imaginava como aquela região poderia gerar riquezas para o Brasil. Em cada cachoeira encontrada era medida a força da água, porque pensava-se que dali seria possível gerar energia. Ele também acreditava que poderia achar minérios para ajudar a pagar a dívida externa brasileira - conta Mário César.
Do lado americano, os enviados do Museu de História Natural catalogavam e enviavam espécies para serem taxidermizadas em Nova York.
- Existe uma ideia equivocada que a expedição só foi benéfica para os americanos. Os dois lados saíram ganhando.
Doenças, insetos e caçadas
Durante a expedição, uma série de fatores dificultaram a viagem e, segundo depoimento do próprio Roosevelt no livro "Pelas selvas brasileiras", entre animais como jacarés e insetos, os piores eram os menores.
"Os mosquitos e outras pragas noturnas representam o mais sério problema da viagem", escreveu o ex-presidente.
Libânio relata um episódio contado em um livro de memórias de Rondon que mostra o motivo desta afirmação.
- Rondon narra que em uma noite, Roosevelt teve que sair escondido do acampamento para manter sua privacidade e prestígio, porque teve suas nádegas picadas por vários insetos durante o sono - conta.
Os insetos traziam também doenças. A malária, transmitida por mosquitos e provocada por um protozoário, é apontada como possível causa da morte de Roosevelt, cinco anos após a expedição. Rondon tinha um controle rígido para se prevenir da malária.
- Rondon tomava quinina em horários regulares e sempre antes de se alimentar. Na época, a quinina ainda não era uma substância conhecida ao ponto de se poder fazer esse tipo de uso - afirma Libânio.
A identificação das doenças também foi uma das propostas da expedição. A cada quilômetro percorrido, eram registradas as doenças que a equipe contraía e também aquelas que os habitantes possuíam.
Se os pequenos seres traziam grandes preocupações, o mesmo não pode ser dito dos animais de grande porte. Um dos principais desejos de Roosevelt era fazer uma caçada no Brasil. Em 18 de dezembro de 1913, o ex-presidente matou sua primeira onça: uma fêmea canguru-açu, maior que a pantera norte-americana e que o leopardo africano já conhecidos por Roosevelt.
No dia 27 de abril de 1914, o rio da Dúvida havia sido superado e a expedição estava em seus momentos finais. Rondon convocou os membros da equipe para anunciar que o curso de um rio desconhecido foi posto no mapa brasileiro e passaria a se chamar rio Roosevelt, como é conhecido até hoje.
- A expedição foi muito mais do que a descoberta de um rio. Foi o acúmulo de conhecimento de um local com etnias, espécies animais e fenômenos da natureza até então desconhecidos - afirma Mario Cesar.

Em 1992, bisneto refez expedição sem historiador

Em 1992, José Ribamar Bessa Freire, na época professor de História na graduação da UniRio, foi convidado a repetir a expedição Rondon-Roosevelt com o bisneto do ex-presidente, Tweed Roosevelt.

A presença do pesquisador era uma exigência do governo brasileiro como forma de contrapartida à permissão para o americano fazer uma expedição em território nacional. O objetivo era ver as mudanças e o legado da iniciativa de 80 anos antes.

- Estava tudo encaminhado, conheci o Tweed, chegamos a ir até Manaus para apresentarmos o plano de viagem. Mas quando íamos embarcar, eles falaram que os meus gastos deveriam ser cobertos por uma instituição brasileira. Nem procurei algum órgão para resolver isso. Não concordei e não participei.

A viagem do bisneto de Roosevelt aconteceu sem a presença do brasileiro e rendeu um livro e um documentário para a TV, com o nome de "River of Doubt" (Rio da Dúvida, em português). Em relato para as produções, Tweed afirmou, sem grandes explicações, que "nada mudou e tudo mudou" no local.

- Precisava gastar tanto dinheiro para descobrir isso? Muita coisa mudou. Não se pode menosprezar as transformações causadas pela relação dos agentes naquele espaço com a natureza - afirma Bessa.

O legado da expedição original também é abordado pelo filme que conta como, a partir da viagem, o Museu de História Natural de Nova York passou a estudar diversas espécies. Bessa afirma que é importante dar atenção a outros tipos de conhecimentos adquiridos.

- O legado da expedição foi o conhecimento do território nacional, a identificação de várias etnias indígenas e suas identidades. São relatórios que mostram detalhadamente regiões que antes eram uma grande ponto de interrogação no mapa brasileiro.

O Globo, 31/05/2014, História, p. 37

http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/o-rio-da-duvida-12670342

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