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O refém cordial

O Globo, Economia, p. 26
31 de Out de 2011

O refém cordial
Sociólogo a serviço de empresa do governo faz relato corajoso e complexo de cativeiro de sete dias em aldeia indígena no MT

César Maurício Batista da Silva

Quinta-feira, vinte de outubro de 2011. Conto hoje o quarto dia de cativeiro.
Índios das etnias kaiabi, munduruku e apiaká nos mantêm presos desde segunda. O grupo de reféns é formado por mim e mais um colega - ambos analistas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), autarquia ligada ao Ministério de Minas e Energia -; dois assessores; dois funcionários da Funai; e mais um antropólogo, um barqueiro e uma cozinheira. O pleito das comunidades é a garantia da integridade física do seu território e do uso dos seus recursos naturais. Embora nunca detalhado ou formulado sistematicamente, o objetivo do movimento é claro e consiste na conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena kayabi e na interrupção do licenciamento da Usina Hidrelétrica São Manoel, ao qual está relacionada a minha presença na aldeia. As razões do movimento são legítimas. O acesso a meios de inserção de indivíduos indígenas na cidadania é apenas uma esperança, talvez mais ainda do que para a massa de miseráveis marginalizados das cidades e dos campos brasileiros. Contra os indígenas ainda pesa a condição de "outro", de estranho dentro da própria terra. Além disso, as garantias legais resultantes do passado de tutela em que eram considerados incapazes juridicamente e da Constituição de 1988 têm efeitos colaterais que alimentam o preconceito. Eu manifestaria apoio incondicional de primeira hora ao movimento, não fosse eu mesmo um refém, agora.

1o. dia
Comunicada nossa condição de reféns, todos vestiram calções para uma partida de futebol

Chegamos à aldeia Kururuzinho às nove da manhã. O clima era amistoso, como nas três visitas que fizera à aldeia. Ainda trazia na boca o paladar do farto café da manhã do hotel, em Alta Floresta/MT, mas não contive o riso ao me deparar com o caldeirão de feijoada. Seriam dois dias de reunião na aldeia. Os trabalhos transcorreram rápido: após apresentação do antropólogo, debatemos o Estudo do Componente Indígena. Assunto hermético para pessoas que têm o português como segunda língua, a maioria absoluta dos presentes.
Alguns dos mais velhos sequer falam português. Somam-se a isso as dificuldades de comunicação entre padrões lógicos díspares. De fato, o estado brasileiro não está preparado para dialogar com esses brasileiros.
Depois da feijoada, as comunidades se reuniram sem a nossa presença, prática corriqueira.
Mas a reunião durou toda a tarde: só por volta de cinco e meia fomos chamados. Um anúncio breve, porém contundente: estávamos, a partir daquele momento, na condição de reféns das comunidades das etnias kaiabi, munduruku e apiaká.
Encerrada a solenidade de anúncio e após firmar entendimentos sobre nossa nova condição de reféns, todos vestiram seus calções e calçaram suas chuteiras para uma partida de futebol. Meu colega da EPE jogou de cabeça-de-área. O representante da Funai Brasília ficou na banheira. O antropólogo assumiu posições indefinidas. Na beira do campo, não me arrisquei no jogo: fiquei a observar o espetáculo curioso e refletir sobre aquela pequena aula de Brasil.

2o. dia
"As refeições eram saborosas:afinal, a cozinheira compunha o grupo de prisioneiros.

Tínhamos acesso ao único telefone disponível, um telefone público para toda a aldeia. Nossas chefias e famílias foram informadas de tudo. Por meio de um rádio amador, os índios iniciaram contatos com a Funai e deram início às negociações. A despeito da condição de reféns, nossa situação era cômoda. Circulávamos na aldeia, nossos mantimentos eram fartos e as refeições saborosas: afinal, a cozinheira compunha o grupo de reféns. Na beira do rio, acompanhamos a feitura de farinha em um enorme tacho. No fim do dia, chegou uma proposta da Funai: uma reunião na segunda-feira seguinte com os ministros da Justiça, Minas e Energia, Secretaria Geral da Presidência da República e MP para discutir a demarcação; seriam canceladas as audiências públicas da usina; não haveria responsabilização civil ou criminal. A única condição exigida era a libertação.
Mas nossas expectativas foram frustradas pela rejeição em massa da proposta: não abriam mão da presença de autoridades na aldeia, para que as negociações fossem travadas às vistas de homens, velhos, mulheres e crianças. Começamos a perceber que a questão era ainda mais complicada do que podíamos supor nas horas iniciais de cativeiro.

3o. Dia
Guerreiros munduruku chegaram à aldeia, confrontaram os kaiabi e tomaram conta da situação

Novidades: guerreiros munduruku chegaram à aldeia. Com nítida ascendência sobre os outros, tinham atitudes mais virulentas e impositivas. Essa etnia tem a reputação de "cortadores de cabeça" de seus inimigos, e não faz questão de renegá-la. Na "Cartilha em Defesa da Bacia do Rio Tapajós, seus Povos e Culturas" - financiada pela Frente de Defesa da Amazônia e com apoio até da Fundação Ford - constam desenhos de traços infantis onde guerreiros munduruku ostentam cabeças cortadas, sob a legenda "guerreiros cortador de cabeça de branco".
Os kaiabi foram bastante questionados por abandono de suas tradições e conversões ao protestantismo. Os apiaká se mantiveram neutros. Mais tarde entenderíamos que nossa prisão era também uma reação às acusações dos "parentes" quanto à suposta fraqueza dos kaiabi, que ignoravam a tradição de resistência em face dos arbítrios da sociedade branca. Na prática os munduruku tiraram dos kaiabi o controle da situação.
A ausência de novos contatos do governo federal e a posterior chegada dos kaiapó iriam agravar o quadro, levando o movimento a estágios críticos que não podíamos imaginar nas primeiras horas de cativeiro. Nesse dia pela primeira vez foi proferida a ameaça que nos perseguiria até a saída da aldeia: seria construída uma gaiola de madeira na qual ficaríamos presos até que se lhe ateasse fogo.

4o. e 5o. Dia
Pela primeira vez, foi aventada a possibilidade de cortarem nossos pescoços, celebrada com dança Na quinta-feira o dia raiou sob a expectativa da chegada do cacique Raoni. À tarde, chegaram quatro kaiapós, assessores dele, que instigaram ainda mais os ânimos. Nós, que já estávamos proibidos de usar o telefone, fomos impedidos também de circular. Passaríamos os dias e noites dentro do posto da Funai.
Adolescentes que vigiavam as duas entradas do cativeiro eram nomeados guerreiros, o que soa estranho a olhos brancos, moldados à construção social da juventude como hiato entre a infância e a idade adulta.
Ainda sem respostas do governo, vimos a tensão aumentar no dia seguinte quando começaram a construir nossa gaiola.
Muito embora levássemos a sério as ameaças, procurávamos nos convencer de que a situação não chegaria às últimas consequências. No final do dia, a notícia de que teria havido uma reunião no Palácio do Planalto: uma comissão chefiada pelo Secretário Geral da Presidência da República seria enviada.
Essa perspectiva não impediu que nas reuniões noturnas os discursos ficassem ainda mais inflamados. Pela primeira vez, foi aventada a possibilidade de cortarem nossos pescoços. Manifestações de dança e canto até aproximadamente às 3 horas da madrugada celebravam o nosso destino, enquanto recebíamos um grupo de kaiabis evangélicos, que nos confortou com orações e palavras de fé. Uma menina de 15 anos rezava. Eu a reconheci como uma das que nos pintaram com extrato de jenipapo, na quarta-feira.
As preces se confundiam com os sons das cantorias, em frente. Em alguns momentos de blasfêmia, me desconcentrei da prece e refleti sobre mais uma pequena aula de Brasil.

6o. dia
Vimos a tensão aumentar no dia seguinte, quando começaram a construir nossa gaiola

O sábado foi dominado pela expectativa de libertação. Desde as primeiras horas da manhã toda a bagagem estava pronta para a viagem de retorno. Circulava a notícia de que a comissão de negociação já estaria em uma pousada distante vinte minutos de barco. Um grupo de lideranças indígenas para lá se encaminhou no início da tarde.
Mas as horas passavam e a falta de informações consistentes nos angustiava, naquilo que se tornava um padrão. Ao crepúsculo, um kaiabi irrompeu no nosso cárcere anunciando que três de nós seriam libertados imediatamente: a cozinheira, o barqueiro e o antropólogo. Certo alívio tomou conta de nós, apesar da perspectiva de mais uma noite presos: era o sinal de que, finalmente, sairíamos no dia seguinte. À noite, houve mais um culto evangélico no cativeiro.

7o. dia
Foram demonstradas danças e músicas de todas as etnias: essa era sua principal exigência

A previsão de chegada das autoridades na aldeia era para as sete da manhã. Às 11 nossa ansiedade transbordava. Ao meio-dia, pousaram no campo de futebol dois helicópteros da FAB. Primeiro, desceram soldados do Exército. Em seguida, agentes da Polícia Federal. Por último, dois representantes da Secretaria Geral da Presidência da República, escoltados por agente do Grupo de Pronta Intervenção, da PF.
As autoridades se aproximaram da formação de mundurucus, kaiabis, apiakás e kaiapós, que delinearam um corredor levando ao local da reunião. Instruídos pelos agentes, insistiram em não ultrapassar o centro da aldeia. Já nos haviam orientado a sair do posto da Funai. A luz do sol queimou prazerosamente meu rosto.
Durante o cerimonial que se seguiu, falaram as autoridades do governo e as lideranças. Foram demonstradas danças e músicas de todas as etnias. Percebi que o que ocorrera sexta à noite fora um ensaio para a recepção: uma das principais exigências do movimento era a simples presença de autoridades. Esse fato, isoladamente, ilustra como a incapacidade de diálogo do governo federal contribui para que grupos sociais implicados por projetos de interesse do Executivo se percebam alijados dos processos, induzindo a situações críticas e perigosas, como a que acabamos de experimentar.

O Globo, 31/10/2011, Economia, p. 26

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