VOLTAR

O que há nas águas

CB, Brasil, p.15
15 de Dez de 2004

O que há nas águas
A bordo de um hidroavião, o casal Moss percorre 120 mil quilômetros em um ano e dois meses de viagem para realizar o mais completo levantamento sobre as condições de rios, lagoas e represas do país

Hércules Barros
Da equipe do Correio

Nunca, no país, foram coletados tantos dados sobre as águas brasileiras em tão pouco tempo. O feito é do projeto Brasil das Águas, idealizado e executado pelo engenheiro mecânico Gérard Moss e a mulher, Margi. Desde outubro de 2003, a bordo de um pequeno hidroavião, o casal desenvolve pesquisa inédita. Eles sobrevoaram as cinco regiões do país recolhendo amostras de águas em 1.170 pontos entre rios, lagos e represas. O material se encontra sob análise de cientistas de universidades brasileiras. O resultado final sai em seis meses, com a produção do mapa mais amplo já realizado sobre o estudo da qualidade das águas do Brasil. Hoje, o casal Moss entrega ao governo brasileiro os dados brutos da coleta.
Os dados preliminares da expedição a serem repassados à Agência Nacional das Águas (ANA) apontam os resíduos de fertilizantes, usados na agricultura, e o esgoto não tratado como os vilões que põem em risco a pureza dos 12% de água doce do planeta que se encontram em território brasileiro. No caso dos esgotos, eles servem de nutriente para o desenvolvimento de algas microscópicas - como os fitoplânctons e as cianobactérias - danosas ao meio ambiente e à saúde das pessoas.
Trabalho concluído
''Nosso trabalho termina aqui'', afirma Gérard Moss. Nas viagens, Gérard pilotava e fazia os procedimentos de decolagens e pousos, enquanto Margi se encarregava de fotografar as regiões sobrevoadas e iniciava os procedimentos de manuseio da água coletada nos vôos rasantes. O avião está equipado com um laboratório que permite a análise das amostras de água. ''Medimos, de imediato, salinidade, temperatura e condutividade'', conta Margi Moss. Durante o vôo, outras cinco amostras eram armazenadas em frascos de 200ml para depois serem encaminhadas aos laboratórios parceiros do projeto. ''Os pesquisadores vão investigar os aspectos físicos e químicos das águas'', explica Gérard.
''A técnica utilizada por Moss tem uma capacidade grande, com resultado em pouco tempo. O hidroavião pode ser viável no monitoramento das águas brasileiras'', afirma Marcos Freitas, diretor de tecnologia, capacitação e informação da ANA. Segundo Freitas, a agência gasta por ano em média R$ 20 milhões para manter cinco mil pontos de coleta de água em todo o país. Desse total, mil amostras são para avaliar a qualidade. No Projeto Brasil das Águas foram gastos R$ 3 milhões, pouco mais de 10% desse valor. De posse dos dados, Freitas diz que a agência pode mudar o plano da rede de monitoramento de água. ''Também vamos verificar se existe usuário causando danos. Se houver, a fiscalização irá atrás.''
Responsável pela análise das águas coletadas no Centro-Oeste, o professor Donado Seiji Abe afirma que o trabalho é inédito no mundo. Pesquisador da Associação do Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental, Abe apresentou o Brasil das Águas, em agosto, no Congresso Internacional de Limnologia, realizado na Finlândia. ''O Moss coletou água onde nunca foi feito amostra. A surpresa no Centro-Oeste foi a alta concentração de fósforo nos rios Cuiabá, Miranda e Aquidauana'', diz. Abe confirma conclusões preliminares do projeto e relaciona o problema com o esgoto não tratado que é despejado nos rios e os pesticidas usados no cultivo da soja, que acabam chegando às águas.

A situação em cada região

Norte
A região apresenta a reserva de água mais preservada do país, e o melhor exemplo é o Rio Tapajós. Gerard Moss atribui a qualidade à baixa densidade demográfica, apesar de a população ribeirinha usar os rios como descarga de lixo, rejeitos. No Rio Amazonas é alto o nível de nutrientes (resíduos agrícolas e de esgoto). A origem pode estar entre a nascente, nos Andes, e a fronteira do Brasil.
Nordeste
Foi encontrado um elevado número de áreas com quantidade de nutrientes. O Rio São Francisco tem a pior condição. Moss acredita que o problema esteja relacionado ao esgoto não tratado, produzido pela alta densidade demográfica da região. Além disso, por ser uma região menos chuvosa e ter menor volume de água, os resíduos ficam mais concentrados. Entretanto, o Rio Parnaíba se destacou pela boa qualidade da água.
Centro-Oeste
A situação é boa em relação ao baixo nível de rejeitos, principalmente nos rios Tocantins, Xingu e Araguaia. Mas as águas apresentaram concentração de metais pesados (níquel, cádmio e chumbo) acima do limite estabelecido pela legislação ambiental brasileira. Possivelmente proveniente de fertilizantes usados nas plantações de soja e de esgoto não tratado. O Rio Araguaia apresentou a maior riqueza em diversidade de espécies.]
Sudeste
Apesar da poluição, o Rio Tietê chega com índice de limpeza satisfatório quando desemboca na foz do Rio Paraná. O lixo fica retido em várias represas por onde passa. Em municípios abaixo da capital paulista como Araçatuba, o tratamento de esgotos ajuda na despoluição.
Sul
O assoreamento e a erosão provocada pelo desmatamento para plantio de arroz e pecuária são os maiores problemas da região. Do alto, o casal Moss viu muitas marcas de ''ex-rios'', vítimas do desmatamento. Entretanto, vem de Porto Alegre o bom exemplo. Cerca de 77% do esgoto da capital gaúcha chegam tratados nas águas do Rio Guaíba, enquanto a média nacional é de apenas 20%.

Momentos de descontração, medo e luto

Haja tubos de protetor solar para percorrer 120 mil quilômetros dando vôos rasantes em rios, lagoas e represas de todo o território nacional. Além de coletar as 5,9 mil amostras de água de norte a sul, Gérard e Margi Moss guardam um acervo diverso de aventuras. Se serão publicadas um dia, eles dizem não ter certeza. Mas a expressão no rosto de cada um demonstra que o casal não vê a hora de ter tempo para começar a escrevê-las.
Ao fazer um pouso ontem pela manhã no Pontão do Lago Sul, em Brasília, eles contaram algumas das situações engraçadas que viveram durante os catorze meses de expedição a bordo do avião anfíbio. E, também, de momentos de tensão e de tragédia - como a morte de dois fotógrafos estrangeiros que registravam o trabalho do casal.
No geral, a rotina era acordar às 6h30 para decolar e passar o dia sentado dentro de uma cabine de no máximo dois metros quadrados. Além de água, o almoço se resumia a passas e frutas secas. Mas para Margi, os momentos de adrenalina valeram. Foram experimentados, principalmente, na hora dos pousos e decolagens próximos a matas fechadas. ''Às vezes, os rios são estreitos, têm paus, pedras e bancos de areia. A região Norte foi mais tranqüila nesse sentido.''
Mesmo morando há mais de 20 anos no Brasil, outro fator peculiar ao casal foi a receptividade dos ribeirinhos da região Norte. ''Vimos uma pessoa fazendo sinal com uma toalha em um barco parado no meio de um rio. Paramos para ajudar, mas ele estava apenas nos cumprimentando'', diz Margi. Ela lembra que um dos momentos mais calorosos foi quando passaram à noite em um assentamento de sem-terra, à margem do Rio Von Den Steinen, no sul do Mato Grosso. ''Agora, eles são com-terra'', brinca Margi, ao explicar que os colonos foram assentados.
As crianças que encontraram pelo caminho dariam um capítulo inteiro nas histórias do casal. Ao fazer palestras em escolas públicas, por exemplo, descobriram que os estudantes sabem da importância de economizar água. ''Os pais é que não aprendem com os filhos, e continuam a lavar calçadas com mangueiras de água'', afirma Margi. No Parque do Xingu (MT), viraram atração para os índios da aldeia Caramurá. ''Estava todo mundo, inclusive as crianças, assistindo à nossa decolagem. Era um acontecimento para eles'', lembra. Mas a decolagem só ocorreu depois da quarta tentativa, o que os deixou envergonhados diante da platéia inusitada. ''Deve ter sido pressão atmosférica, falta de vento e calor'', justifica.
Em meados do ano passado, os Moss tiveram a viagem interrompida por uns dias depois de um pequeno acidente, durante pouso em uma fazenda no Centro-Oeste. ''A pista não estava boa'', conta Gérard. Com uma média de 12 vôos rasantes por dia, Margi admite sorte em não ter sofrido acidente mais sério. Mesmo assim, um mês antes de terminarem a expedição eles passaram pela experiência mais dolorosa do projeto. Dois fotógrafos franceses morreram quando registravam o trabalho do casal Moss. De outro avião, eles acompanhavam os dois e acabaram caindo no rio. ''Até hoje não entendemos como aconteceu. As tentativas de Gérard para salvá-los foi em vão. Avisar as famílias doeu muito'', diz. A aventura Brasil das Águas custou R$ 3 milhões ao casal, que teve patrocínio da Petrobras e Embratel e firmou parceria com a Agência Nacional das Águas e com a Companhia Vale do Rio Doce. (HB)

CB, 15/12/2004, Brasil, p. 15

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.