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O preço da carne barata: desmatamento e escravidão

OESP, Economia, p. B5
Autor: MONBIOT, George
23 de Out de 2005

O preço da carne barata: desmatamento e escravidão

George Monbiot

Tenho, há cinco anos, travado uma guerra com os "Farmers in Action", neandertais que interrompem o tráfego e bloqueiam as refinarias na esperança de persuadir o governo a reduzir o preço do combustível. Não adianta explicar que o combustível barato, que permite aos supermercados comprar carne ou grãos de qualquer lugar onde eles sejam mais baratos, destruiu a agricultura britânica. Eles vão continuar parando em frente às câmeras e nos obrigando a assisti-los enquanto cortam suas próprias gargantas.
Mas, mesmo a contragosto, devo admitir que em alguma coisa eles acertaram. Em janeiro, o líder dos homens das cavernas, David Handley, advertiu que a febre aftosa não havia sido eliminada no Brasil, e que importar carne deles, portanto, era arriscar-se a trazer a doença de volta à Grã-Bretanha. Os compradores puseram seu alerta para escanteio.
Na primeira metade deste ano, a importação de carne brasileira para o Reino Unido cresceu 70%, atingindo 34 mil toneladas. Na semana passada, um surto de aftosa foi confirmado no Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul. Espera-se, obviamente, que os fazendeiros britânicos joguem tanta lama quanto possível sobre as importações baratas. Espera-se que eles questionem os padrões de higiene e o impacto social e ambiental de seus competidores, e o sr. Handley fez todas essas coisas. Acontece que, para minha grande perturbação, ele está totalmente correto.
Ao contrário dele, eu não acho que os criadores de gado britânicos têm o direito divino de permanecer nesse negócio. Nós simplesmente não deveríamos mais comer carne. A baixa conversão de eficiência de ração para carne no gado bovino faz dele o tipo de carne em que mais há desperdício. Os produtores de carne bovina britânicos estariam extintos se não fossem os subsídios e as tarifas européias de importação. A carne brasileira os ameaça somente porque é tão barata que pode competir com eles, mesmo depois de ter pago as tarifas alfandegárias. Mas se não é ético comer carne britânica, é 100 vezes pior comer a carne brasileira.
Até a década de 90, o Brasil produzia somente carne suficiente para o próprio consumo. Daí em diante, seu rebanho bovino aumentou em cerca de 50 milhões de reses, e esse país se tornou, segundo algumas estimativas, o maior exportador do mundo, vendendo 1,9 milhão de toneladas por ano. O Reino Unido é seu quarto maior consumidor, depois de Rússia, Egito e Chile. Uma região é responsável por 80% do crescimento da produção brasileira de carne: a Amazônia.
Os três últimos anos foram os mais destrutivos na história da Amazônia brasileira. Em 2004, 26 mil km² foram queimados, a segunda maior taxa da história. Este ano a situação pode ser ainda pior. E a maior parte disso é ocasionada pela criação de gado.
De acordo com o Centre for International Forestry Research, pastos para o gado bovino respondem por uma área devastada da Amazônia seis vezes maior do que a agricultura: até os famosos produtores de soja, que estão em 5 milhões de hectares antes cobertos pela floresta tropical, ocupam apenas um décimo do solo utilizado para a criação de gado. Os quatro Estados amazônicos que mais produzem carne são os quatro em que a devastação está mais avançada. Se continuar a se expandir pela Amazônia, a criação de gado ameaça dois quintos da floresta tropical remanescente no mundo.
A floresta tropical não é apenas o ecossistema mais diverso que existe, é também a maior reserva de carbono que temos. Sua destruição pode provocar um desastre ecológico na América do Sul, na medida em que a derrubada das árvores faz com que diminua a freqüência das chuvas. Da próxima vez que vir cobertura vegetal queimando, lembre-se de que você pode ter pago pelo serviço. Muitos brasileiros, especialmente aqueles que vêm tendo suas terras tomadas pelos pecuaristas, vêm tentando parar a destruição. Os fazendeiros têm um argumento efetivo para demovê-los: quando reclamam, eles os matam. Em fevereiro, chegou até nós um eco de um massacre que já provocou 1.200 mortes, quando soubemos do assassinato da freira americana Dorothy Stang - provavelmente a mando de fazendeiros. Os pecuaristas suspeitos de matá-la eram protegidos pela polícia, como os demais pecuaristas em toda a Amazônia.
Pela mesma razão, e apesar dos esforços do presidente Lula, os fazendeiros têm empregados cerca de 25 mil escravos em suas propriedades. São pessoas trazidas de Estados a milhares de milhas de distância, forçadas a comprar mantimentos a preços inflacionados nas lojas das próprias fazendas e mantidas, assim, em débito permanente.
Devido à expansão da produção de carne na Amazônia, a escravidão no Brasil quintuplicou em dez anos. E então o governo de um país que - apesar de seus melhores esforços - falhou em combater a escravidão, os assassinatos e a catástrofe ambiental espera que acreditemos que seus padrões de higiene no campo são tão rigorosamente impostos quanto os de qualquer outra nação?
Qualquer um que tenha trabalhado na Amazônia sabe que não há certificação que não possa ser comprada e que há poucos funcionários locais que não trabalham para as pessoas que eles deveriam fiscalizar.
Se a febre aftosa for endêmica na Amazônia brasileira - a maior parte da qual recebeu a classificação de "zona livre" do governo -, o ministro em Brasília será o último a saber. Quando a doença atingiu o Reino Unido pela última vez, em fevereiro de 2001, o governo pôs a culpa na carne importada por restaurantes chineses. Mas em abril daquele ano descobrimos que a fazenda em que o primeiro foco surgiu, em Heddon-on-the-Wall, Northumberland, vinha coletando sobras para seus porcos num campo de treinamento do Exército perto de Sunderland.
O Exército vinha importando parte da carne que consumia do Brasil e Uruguai, dois dos países onde o tipo do vírus que infestou nossos rebanhos é mais forte. O ministro da Defesa garantiu que a carne do Exército vinha de regiões da América do Sul "livres da doença". Uma delas era Mato Grosso do Sul, o Estado em que a doença foi detectada.
Então quem, neste país, vinha comprando essa carne? A Tesco diz que "bem mais de 90%" de sua carne vem do próprio Reino Unido. Ela parou de comprar carne brasileira desde o surto da semana passada, mas não soube me dizer quanto comprou antes disso, porque este seria um assunto "comercialmente sensível". Estive numa de suas lojas e pude ver que toda a sua carne fresca estava rotulada como "britânica" em grandes letras vermelhas. Mas seis das refeições que ela própria produz (geralmente as mais baratas) continham "carne sul-americana", três continham "carne sul-americana/européia" e uma apenas "carne". A maioria das refeições prontas produzidas por outras companhias continha apenas "carne". A Sainsbury admitiu que 5% da carne que comprou antes do anúncio do foco veio do Brasil. O homem da Asda me disse que sua rede comprou "menos de 2%" de sua carne do Brasil até o verão, e nada daí em diante. O maior mercado, segundo ele, é formado por restaurantes e cadeias de bares. Tentei falar com o McDonald's e com o Burger King: os dois dizem que não compram do Brasil. Também é o que diz a rede de bares Wetherspoons. Punch Taverns não compra comida, mas suas refeições são providas por companhias como a Brake Brothers, que admite comprar carne brasileira, mas não diz quanto porque o volume seria, de novo, "competitivamente sensível".
Nenhuma dessas firmas comprou, necessariamente, carne vinda da Amazônia: mas comprar de qualquer outro lugar do Brasil cria um "buraco" no mercado, que será preenchido pelo crescimento da produção na floresta tropical. Dado que temos importado dezenas de milhares de toneladas de carne brasileira por ano, para onde tem ido tudo isso? Talvez os leitores do 'Guardian' possam me ajudar a localizá-la.
Ao contrário de outras carnes, o país de origem da carne bovina fresca deve vir impresso no pacote. Basta, portanto, um pouco de trabalho de investigação em lojas, supermercados e nas cozinhas dos pubs, escolas e hospitais. Não deve ser difícil rastreá-la. Uma vez que você a tenha encontrado, sugiro que se afaste.

George Monbiot é colunista do jornal britânico The Guardian

OESP, 23/10/2005, Economia, p. B5

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