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O povo esquecido

Revista Globo Rural
Autor: Pablo Nogueira
15 de Abr de 2008

Acompanhados pelo antropólogo Uirá Garcia, o repórter Pablo Nogueira, da revista Galileu, e o fotógrafo Domenico Pugliese passaram uma semana entre os índios guajás, que viviam isolados até poucos anos atrás.

Quando o escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu a El Rey Dom Manuel contando sua visita à Ilha de Vera Cruz, descreveu o modo de vida dos nativos que encontrou. Disse que moravam 'em uma povoação com nove ou dez casas (...) de madeira, cobertas de palha, de razoável altura'. No interior de cada residência, 'tão compridas quanto esta nau capitânia', viviam 'entre 30 e 40 pessoas' que faziam 'fogos para se aquecerem' e comiam 'deste inhame, de que aqui há muito'.

Mal sabia o escrivão que, 500 anos depois de sua carta, existiriam no Brasil povos com um estilo de vida ainda mais simples do que aqueles que ele encontrou. Os índios guajás, que moram na região amazônica do Maranhão, guardam em sua cultura as marcas do tempo em que sobreviviam apenas da caça e da coleta de frutos silvestres. Até o contato com a Funai, que começou a acontecer na década de 1970, os guajás não construíam aldeias nem casas fixas, e viviam se deslocando pela mata em grupos de no máximo 30 pessoas. Não sabiam fazer fogo (embora o usassem bastante), nem cestos, nem cerâmica de qualquer tipo. E somente por pressão da Funai é que começaram a trabalhar na lavoura, com destaque para o cultivo da mandioca. Mas mudar uma cultura é transformar toda uma forma de ver o mundo. E o aprendizado da agricultura pelos guajás está sendo uma aventura que envolve o mundo deles e o nosso.

Até 2006 os guajás pertenciam à categoria de índios isolados, embora já vivessem em reservas. De lá para cá, passaram a ser chamados de semi-contatados, devido ao seu elevado grau de preservação do modo de vida tradicional. Pude ver isso em janeiro, quando acompanhei o antropólogo Uirá Garcia, da USP, numa viagem à terra Awá, no Maranhão. Quando pela primeira vez pusemos o pé na aldeia, levei um susto. Eram 15 horas e, exceto por um grupo de dez crianças, três ou quatro mulheres e uma profusão de macacos, cachorros e galinhas, o lugar estava deserto. 'Está todo mundo na floresta', explicou Uirá. 'Mais no fim da tarde o pessoal começa a chegar.' No começo da noite homens e mulheres caminhavam pela aldeia carregando frutas, mandioca e o resultado da caça naquele dia: alguns macacos e uma cotia. Acenderam os seus fogões indígenas e começaram a preparar uma refeição. Uma hora depois, nacos de carne de macaco e de jabuti eram distribuídos entre as pessoas, complementadas por farinha de mandioca em quantidade.

Uirá me disse que, dependendo do animal, a distribuição segue alguns critérios. Mulheres, por exemplo, não podem comer carne de veado. Homens que acabaram de ser pais também não. Em compensação, se a presa foi uma paca ou um porco-do-mato, as esposas têm direito a ganhar a cabeça. Se o animal era gordo, as coxas, partes consideradas nobres, são reservadas aos mais velhos. E por aí vai. Tantos critérios só demonstram como a caça continua um elemento central na cultura dos guajás. Eles atribuem à carne um valor nutricional incomparável, por isso é obrigação dos pais garantir o abastecimento dos filhos. Some-se também o apreço pela coleta de frutos silvestres, mel... E o resultado é a aldeia deserta que encontrei na tarde do primeiro dia. Diariamente, por volta das 6h30, os índios já estavam comendo desjejum (também à base de carne e farinha de mandioca) e se preparando para as incursões na floresta. Para caças mais pesadas, como a dos porcos-do-mato, os homens vão todos juntos. Outros animais, como veados, macacos ou pacas, podem ser abatidos por duplas de homens ou por grupos mistos, formados por homens, mulheres e, eventualmente, até crianças.

Eu acompanhei uma expedição de caça e coleta de mel junto a uma família formada por marido, esposa, dois enteados e um bebê de seis meses. Andamos por sete horas e retornamos cansados e com mel, mas sem carne. Depois percebi que falei constantemente, e devo ter espantado os animais. Não importa. Durante o passeio vi que é no mato que as coisas realmente acontecem. Durante as incursões as pessoas também conversam, riem, sentam-se para bater papo, contam histórias de outras caçadas. As crianças aprendem a decorar os nomes das plantas, a ler os rastros dos animais, e a melhor maneira de usar um arco-e-flecha ou uma espingarda. E há diversões para adultos também: na volta da excursão, o marido e a esposa ficaram para trás. Uirá me explicou que é comum que os casais fiquem sozinhos na mata para catar piolhos, conversar, trocar carinhos e fazer sexo.]

Os guajás

São um povo tupi que originalmente vagava na região do rio Tocantins, no Pará. A partir do século XIX, chegaram ao Maranhão fugindo de tribos mais fortes e dos caçadores brancos, que os matavam rotineiramente. Um dia, não houve mais como fugir. Em 1970 a Vale do Rio Doce começou a planejar a construção de uma grande ferrovia que devassava o território habitado por eles. Em 1973, a Funai começou a realizar os primeiros contatos visando fixá-los em reservas. Hoje, cerca de 300 moram nas terras indígenas Caru, Awá e Alto Turiaçu. Estima-se que ainda haja 60 guajás não-contatados vivendo no sul do estado.

Em dois dias, já havia ficado claro para mim que os guajás usavam a aldeia para pouco mais do que dormir e cozinhar as refeições. Aliás, às vezes nem isso. O índio Takwarintiá só foi contatado em 1997 e, embora tenha sido levado para a terra Awá, não se adaptou à vida num grupo de mais de 30 pessoas. Hoje ele vive longe da aldeia, numa casa tradicional, feita de folhas de babaçu. Outra tradição preservada é o tratamento dado aos macacos. Eles são criados como animais e estimação, e vivem encarapitados nas cabeças de todos. As mulheres, porém, levam essa relação além e tratam os macacos mais novos como se fossem crianças: cantam para eles, dão banho e chegam a amamentá-los. Isso não impede que, quando maiores, sejam devolvidos à mata, e caçados sem piedade. A antropóloga Loretta Cormier, que viveu com eles 17 meses, sugere que os guajás se sentem aparentados com os macacos, e que o ato de comê-los seria uma forma de canibalismo ritual, algo bastante comum no Brasil pré-Cabral. Se ela estiver certa, é mais uma demonstração da relevância cultural da caça.

Muitos antropólogos acreditam que os guajás no passado foram agricultores e sedentários que, por alguma razão, teriam se tornado nômades, e perdido tanto o conhecimento da produção do fogo quanto do cultivo das plantas. Mesmo que isso seja verdade, o fato é que eles não têm nenhuma lembrança do suposto passado agrícola, e que associam a farinha de mandioca ao encontro com a sociedade branca. As primeiras roças de mandioca produzidas para os guajás surgiram antes mesmo que esse encontro se desse. Quando, nos anos 1970, a Funai decidiu que era hora de contatar os índios nômades do interior do estado, os funcionários do órgão começaram a plantar mandioca nas proximidades dos locais onde hoje ficam os postos. A estratégia era trazer os índios para ali e acostumá-los a viver de forma sedentária. A mandioca serviria para garantir que a diminuição na quantidade de caça abatida, causada pelo fim dos grandes deslocamentos floresta adentro, não resultasse em fome.

Como os 38 moradores da Awá falavam português muito mal - acho que a maior parte dos adultos não falava nada -, achei melhor conversar sobre agricultura com Patriolino Viana, 46, o chefe do posto da Funai na terra Awá. Ele me explicou que a cada ano planta dez linhas de mandioca numa área de quatro hectares, em regime de rotação. Cada linha contém 625 quadrinhos de um metro por um metro. Esse volume é suficiente para alimentar a aldeia durante um ano. Há também um plantio de 16 linhas de milho e, em menor escala, culturas de arroz, feijão, abóbora e macaxeira e batata, além de pomares. Patriolino explica que a escolha dos cultivos secundários ocorreu devido à facilidade. 'Estas culturas são fáceis. É só abrir uma covinha e pronto. Além disso, são rápidas. Eles plantam em dezembro e já podem colher em abril'.

Patriolino lembra que os primeiros esforços para ensinar agricultura foram complicados. 'A adaptação é muito difícil para eles. No começo, os índios não queriam participar de jeito nenhum no trabalho da lavoura. Os filhos é que começaram a nos acompanhar e foram aprendendo alguma coisa'. Aos poucos, essa segunda geração foi absorvendo os conhecimentos básicos: a melhor lua para plantar mandioca, a distância adequada entre uma cova e outra, a maneira de preparar a farinha. 'Hoje, se a gente entregar a roça só para eles, os jovens sabem fazer.'

Mas, curiosamente, o fato dos jovens guajás saberem plantar mandioca e gostar, e muito, de comer a farinha, não é garantia de que eles já tenham se tornado um povo agrícola. Quando começa a época do plantio de mandioca, em novembro, é a equipe da Funai que toma conta de toda a preparação da terra e dirige os trabalhos. Os motivos são dois: por um lado, os guajás não sabem calcular o tamanho da área que deve ser plantada. Mas Patriolino reconhece outra razão: 'Eles não têm muita preocupação com o trabalho agrícola. Se deixar, trabalham hoje e, no dia seguinte, vão caçar, e deixam a lavoura de lado. É preciso incentivar'. Os funcionários da Funai costumam determinar as tarefas, e os guajás designam quem vai fazer. Se é preciso brocar a roça, por exemplo, os próprios índios designam três ou quatro dentre eles para realizar a tarefa, enquanto os demais vão caçar. No dia seguinte, inverte-se o time. 'Eles trabalham forçados, mas é o jeito. Se não for assim, perde-se todo o trabalho deles, e pode faltar comida', explica o funcionário. Uirá vê aí uma resistência dos índios para adotar a agricultura. 'Comida para eles é carne. A farinha é conseqüência da presença do Estado brasileiro', diz. 'Eles adoram a farinha, mas o estilo de vida deles não se adequa à produção constante de mandioca. A agricultura requer um grau de investimento muito pesado, que não estão dispostos a fazer'.

Se os guajás não querem transformar os 118 mil hectares da Awá numa grande lavoura, tem quem queira. Dentro do território existem duas vilas onde vivem ilegalmente colonos. Embora a reserva tenha sido homologada em 2005, eles se recusam a ir embora. Dedicam-se a caçar, extrair madeira ilegalmente e desmatar para plantar. Há denúncias de que teriam plantado até maconha na terra indígena. Só em 2007 foram desmatados cerca de mil hectares, e estima-se que a área total derrubada pelos colonos já tenha passado dos 40 mil.

Desde 2005 os guajás aguardam que o juiz José Carlos Madeira, da 5.a Vara Federal do Maranhão, assine a ordem de desintrusão garantindo a expulsão dos colonos. Funcionários da Funai creditam a demora à pressão política das autoridades, especialmente das que vivem nas cidades da região, muitas das quais já foram acusadas de associação com a extração ilegal de madeira. A única vez em que vi um guajá com raiva foi quando ele contou do encontro no ano passado com um grupo de colonos. Eram dois, e fingiram que não sabiam estar em terra indígena. Os índios apreenderam as armas e os mandaram embora. Semanas depois, os colonos voltaram à mesma região, num grupo maior e bem armado. Os guajás observaram sua movimentação de longe. Posteriormente, os índios retornaram ao local onde os colonos preparavam uma nova área de cultivo de um hectare e tocaram fogo.

Patriolino vê a escalada com preocupação: 'Esses índios não falam português e têm apenas espingardas de caça. Por isso, têm medo dos brancos. Se matarem um, os colonos virão atrás, bem armados. Pode ser um massacre', avisa. Deixei a reserva preocupado. Falei depois com o juiz, que me garantiu que a ordem de desintrusão sai no próximo Dia do Índio, 19 de abril. Espero que isso aconteça. Caminha, em sua carta, escreveu que 'essa gente é boa e de bela simplicidade', e que logo estavam agindo 'como se fossem mais amigos nossos do que nós deles'. Se conseguirmos abrir mão de tomar a terra dos guajás e formos bem-sucedidos em ajudá-los a sobreviver no século XXI, estaremos honrando essa amizade, tantas vezes traída no passado. Tenho certeza de que o velho Pero Vaz sentiria orgulho de nós.

Onde vivem os guajás

A reserva fica entre outras duas áreas indígenas, no oeste do Maranhão, quase na fronteira com o Pará.

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