Horizonte Geográfico
19 de Abr de 2008
O parque dos pataxó
No sul da Bahia, busca-se um modelo de convivência entre aldeias e o Parque Nacional do Monte Pascoal
Repórter: Sérgio Adeodato
Eu fui no pé da jurema/eu vi o índio cantar/vamos trabalhar meu povo/para Deus nos ajudar/henawê heyná heiá, henawê heyná heiá. As vozes estão afinadas. Em abril, quando se comemora o Dia do Índio, o canto entoado pelos pataxós para chamar as forças da floresta ganha um novo significado no Monte Pascoal - o morro avistado por Pedro Álvares Cabral no sul da Bahia, ao descobrir o Brasil. O motivo é simples: explorada sem controle por séculos, a Mata Atlântica que cobre o território indígena acabou reduzida a pequenos fragmentos e a diversidade de espécies animais e vegetais diminuiu em níveis críticos. O sinal é de alerta.
Parte dessa destruição foi causada pela ação predatória dos próprios índios, ao derrubar árvores para abastecer o comércio de madeira. A situação da floresta chegou a um limite tão preocupante que as aldeias pataxós, sob o risco de não ter de onde tirar o sustento no futuro, decidiram reverter o processo de degradação. Com esse objetivo, lutam para resgatar as tradições de seu povo e começam a adotar métodos de produção mais ecológicos.
Para preservar a floresta e ao mesmo tempo obter renda para manter suas famílias, os pataxós enfrentam um desafio: mostrar como um território indígena pode conviver no mesmo espaço com uma área destinada por lei à conservação da fauna e da flora. Desde 1991, a Terra Indígena Barra Velha, que abriga dez aldeias pataxó, ocupa quase a metade do Parque Nacional do Monte Pascoal, criado para preservar a biodiversidade da Mata Atlântica, ameaçada por atividades econômicas predatórias desde o período colonial.
Com o objetivo de dar aos índios espaço suficiente para que possam plantar e conviver com a natureza conforme suas tradições, o governo federal tem planos de quadruplicar de 12 mil para 50 mil hectares o tamanho das terras dos pataxó no Monte Pascoal. Se isso acontecer, a área dominada pelos índios envolverá todo o território do parque nacional e as aldeias terão por lei total direito e autonomia para explorar os recursos naturais do local.
É possível a convivência? O debate coloca em pólos contrários as entidades ambientalistas, que lutam pela conservação da fauna e flora, e as organizações indigenistas, defensoras dos interesses das aldeias. O problema existe desde que os primeiros parques nacionais foram criados no Brasil, sem levar em conta, necessariamente, a presença dos índios que viviam nesses refúgios naturais. Áreas destinadas por lei exclusivamente à proteção da biodiversidade, muitas das quais estão fechadas a qualquer tipo de exploração, passaram a conviver com populações indígenas que buscam na natureza o meio de sustento de uma maneira nem sempre ecológica.Com o tempo, a situação se complicou. A descoberta de recursos econômicos nas florestas, como minerais e madeiras nobres; a construção de estradas e a pressão das atividades dos não-índios, muitas vezes ilegais, contribuíram para aumentar a devastação.,Br>
O que antes era explorado pelos nativos apenas para sustento próprio, em quantidades que não agrediam a natureza, passou a ter dimensão comercial. As tribos, muitas desprovidas de suas culturas tradicionais, cresceram em população e precisaram encontrar novos meios de sustento. Os conflitos se multiplicaram.
"Hoje, os novos parques consideram a existência dos índios, mas o governo nada faz para resolver os antigos problemas", afirma Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito Indígena do Instituto Sócio-Ambiental (ISA). "O desafio é identificar soluções, caso a caso." Quando isso não acontece, explica Adriana, as áreas de conflito acabam ficando fora das políticas ambientais e não recebem os recursos necessários para a preservação.
Pela Constituição, os direitos dos índios vêm antes de qualquer ato normativo envolvendo suas terras, como a criação de reservas ecológicas. Os povos indígenas têm poder de decisão sobre suas áreas, até mesmo as sobrepostas aos parques nacionais, que são importantes para a preservação da biodiversidade e, pela legislação, estão a cargo do Ibama. "Mas nada impede que os índios adotem um plano com critérios para preservar as áreas em parceria com o governo e outras entidades", diz Adriana. Unidades de conservação e terras indígenas poderiam conviver sem conflitos, pois teriam a função de compor um bloco único de proteção contra a destruição ambiental. Ganhariam a natureza e os índios, pois o desmatamento no conjunto dessas áreas é entre 10 e 20 vezes menor do que no entorno, conforme estudo do Museu Emílio Goeldi, em Belém.
Comparado às demais áreas protegidas, as terras indígenas têm peso importante para a conservação ecológica. Estudo de fevereiro de 2006 feito pela Coordenação das Organizações Indígenas na Amazônia Brasileira e pela organização internacional The Nature Conservancy (TNC) mostra que o desmatamento nas reservas indígenas da Amazônia é 40% menor do que nos parques e outras áreas de conservação federais, ameaçados por madeireiros e grileiros. Em alguns locais, como a Terra Indígena do Balaio, no Pico da Neblina (AM), os nativos reservam parte da floresta para a conservação das espécies.
Na Amazônia, onde as reservas são extensas e as florestas preservadas têm generosos recursos naturais, de fato, é menor a dimensão dos conflitos entre as áreas indígenas e as destinadas à preservação das espécies. O mesmo não ocorre na Mata Atlântica. O que restou de floresta sofre forte pressão dos mais diversos interesses e atividades econômicas.
Existem na região 129 terras indígenas. Elas cobrem uma área equivalente a quase 40% de todas as unidades de conservação do bioma e, em alguns casos, estão sobrepostas a elas. Há quem diga que essas reservas dominadas pelos índios contribuem para devastar a floresta.
"A situação exige cuidado. É preciso cultivar o diálogo", contrapõe Armin Deitenbach, coordenador da Rede de ONGs da Mata Atlântica. Por sua vez, o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani, considera que "a culpa pelos conflitos não é dos índios nem dos parques, e sim do governo, que está completamente ausente".
No refúgio dos pataxó, situado no entorno e dentro do Parque Nacional do Monte Pascoal, o problema é antigo. A região faz parte do Corredor Central da Mata Atlântica, uma faixa de território que guarda fragmentos importantes da floresta e objeto de projetos de preservação de várias instituições. "A destruição da floresta chegou ao limite crítico e prejudica não apenas a ecologia, mas os próprios índios", alerta Mantovani.
Para defender o que resta da floresta, o governo criou o parque nacional em 1961, sem considerar os índios. Os pataxó foram confinados numa pequena área a beira-mar. Muitos foram morar nas cidades e perderam as tradições culturais do seu povo. Uma parte entrou em conflito com os administradores da área. Na tentativa de uma solução, foi criada, em 1991, a Terra Indígena Barra Velha, dentro dos limites do parque nacional.
Os índios que permaneceram nas aldeias praticamente mandam na área do parque. Na placa colocada na entrada, os logotipos oficiais do governo federal foram cobertos pelas palavras "Monte Pascoal dos Pataxós". Os indígenas organizam os passeios dos visitantes e decidem sobre o que fazer com a taxa de R$ 5 cobrada por pessoa. "Fazemos vista grossa, porque a estratégia é manter o diálogo, tecendo parcerias para evitar a total destruição da Mata Atlântica", explica Milene Maia, chefe do parque e funcionária do Ibama. O objetivo do órgão é encontrar uma fórmula de gestão compartilhada da área protegida, envolvendo Ibama e comunidades indígenas.
Na Terra Indígena Barra Velha vivem mais de 5 mil índios - população que cresce mais de 10% ao ano e vive em condições de miséria. É comum que os jovens casais tenham filhos a partir dos 13 anos de idade. No passado, o sustento das aldeias era retirado da floresta sem pensar em devastação. Hoje, os índios acabaram cedendo às pressões do comércio ao redor das aldeias, próximo de pólo turísticos, como a cidade de Porto Seguro.
Além disso, a floresta do Parque Nacional Monte Pascoal foi explorada de maneira predatória por madeireiros, com ou sem a participação dos índios. A princípio, a madeira foi utilizada na construção civil, cortada nas centenas de serrarias que pontilhavam a região e que hoje já não existem na quantidade de antes. O que restou da mata continua a ser derrubado para a produção de gamelas - travessas de madeira de lei, vendidas para os turistas na beira das estradas e nas lojas de artesanato das cidades próximas. Segundo o Ibama, são derrubadas pelas aldeias cerca de 30 árvores de grande porte por semana para confecção deste artesanato.
O mercado é dominado pelo lucrativo esquema montado na região por comerciantes não-índios. "Os índios vivem em condições subumanas e são explorados pelos atravessadores desse mercado negro", lamenta Milene. As aldeias ganham pouco com a derrubada da floresta. Segundo a chefe do parque, "é preciso organizar uma operação para reprimir a produção e o comércio de gamelas, mas nem o Ibama nem a Funai têm coragem de mexer nesse vespeiro".
A situação não deve mudar se não houver outras alternativas de sustento para a população indígena. Enquanto isso, a floresta corre o risco de ser totalmente derrubada dentro do parque nacional. Os índios já percebem que hoje é preciso ir cada vez mais longe na floresta para encontrar madeiras nobres, como a paraju, utilizada nas gamelas. Muitos, como Tamanduá Pataxó, professor-índio da escola da aldeia Barra Velha, se preocupam. "É preciso recuperar essas áreas", afirma. Entre as opções de subsistência que podem reduzir a pressão sobre a floresta está o cultivo de roças familiares para produzir alimentos. No total, 346 hectares de milho, feijão, mandioca e melancia foram plantados. Para fazer a roça, os índios são orientados a só utilizar métodos controlados de queimada.
"Vamos instalar viveiros de mudas para recompor a floresta e permitir o plantio em sistema agroflorestal, que é menos agressivo à natureza", planeja Philip Reed, consultor do Ministério do Meio Ambiente e coordenador de campo do projeto, conduzido em parceria com a organização não-governamental Flora Brasil. Os viveiros podem proporcionar uma alternativa de artesanato mais ecológica e rentável. São os massacás, nome que os índios dão aos colares e pulseiras feitos com sementes de árvores nativas. O objetivo é encontrar uma solução que sirva de modelo para outras regiões de conflito entre terra de índios e áreas de preservação ecológica.
O ecoturismo é visto como uma das soluções. Além de fonte de renda, a atividade contribui para que os pataxó recuperem suas tradições. Na aldeia Barra Velha, um grupo de 29 jovens indígenas pretende retomar os ensinamentos dos mais velhos e desenvolver a auto-estima há muitos anos perdida. "A idéia inicial era transmitir esses conhecimentos aos outros jovens das aldeias; depois, começamos a mostrar nossos hábitos, danças e rituais para os visitantes", conta o índio Raoni, líder do grupo.
Ocas foram montadas no meio da floresta para receber os visitantes. Do peixe assado ao pé da fogueira, embrulhado na folha da patioba, às pinturas corporais e cantos de paz, amor e guerra, os pataxó - os primeiros índios contatados pelos colonizadores portugueses - provam que ainda estão ativos. Talvez ainda haja tempo para evitar a destruição total da Mata Atlântica no Monte Pascoal. E encontrar uma maneira mais ecológica de conviver com um parque nacional.
Zona de conflito
Com 13.800 hectares, a Terra Indígena Barra Velha ocupa quase a metade do território do Parque Nacional do Monte Pascoal. No entorno dele, há 10 aldeias, onde vivem cerca de 600 famílias pataxó, totalizando uma comunidade de 5 mil índios. O mapa ao lado mostra como ficará a área indígena se o projeto de ampliação sair da gaveta. Se isso ocorrer, o território reservado aos pataxó passará a englobar todo o Parque Nacional do Monte Pascoal.
No Brasil, 55 terras indígenas, segundo o Instituto Socioambiental, estão demarcadas dentro das unidades de conservação, que são territórios protegidos por lei para garantir a preservação da biodiversidade. Isso equivale a 12,9 milhões de hectares, ou 13% da área das unidades de conservação. Veja a seguir outros exemplos de áreas em conflito no país.
No município de São Gabriel da Cachoeira (AM), a Terra Indígena Balaio tem 95% de sua área situada dentro dos limites do Parque Nacional do Pico da Neblina. O problema é mais delicado porque, além da sobreposição do parque com o território dos índios, ali existe uma grande quantidade de minério.
O Parque Nacional do Araguaia, onde fica a maior ilha fluvial do mundo, a do Bananal, entre Tocantins e Mato Grosso, convive com áreas indígenas dos carajá e javaé, que sobrevivem da pesca, da coleta de tartarugas, da roça e da caça de animais silvestres.
Na Mata Atlântica, a situação é mais complicada, porque tanto as terras dos índios quanto as áreas de preservação estão espremidas em pequenos pedaços que restaram de floresta. Os guarani, povos que dominavam a região antes do crescimento das cidades na porção mais populosa do país, dividem espaço com florestas protegidas por lei. Guarani nômades, vindos de lugares distantes, como o Paraguai, instalaram aldeias em zonas destinadas à preservação ambiental, como o Parque Nacional do Superagui, que conserva remanescentes de floresta e um complexo de lagoas, no litoral entre São Paulo e Paraná, e o Parque Estadual Intervales, no Vale do Ribeira, em São Paulo.
Horizonte Geográfico, 19/04/2008
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