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O parque do Jaú e a derrota amazônica

OESP, Vida, p. A20
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
20 de Jul de 2006

O parque do Jaú e a derrota amazônica

Marcos Sá Correa

A campanha mal começou e já se sabe que o Parque Nacional vai perder a eleição. Como bichos e plantas não votam, e gente é coisa que as urnas sabem buscar até nos mais remotos confins da Amazônia, armou-se em Brasília uma comissão para tirar-lhe as margens do Rio Unini, onde moram cerca de 150 pessoas. Entregue à população ribeirinha, ele viraria mais uma reserva extrativista. E reserva extrativista, como já explicou o historiador Kenneth Maxwell, pode soar muito bem, mas é um conceito formado pela junção de duas palavras que se anulam.

A notícia correu outro dia no Ministério do Meio Ambiente como se fosse a coisa mais natural do mundo. Mas o Parque Nacional do Jaú não é um fundo de quintal qualquer. Está lá desde 1980. É o segundo do País em tamanho, com seus 2,2 milhões de hectares. Figura em documentos oficiais como um lugar de "importância extremamente alta", numa "área prioritária para a conservação da Amazônia". Tem problemas de estrutura, sim, como todas as unidades do Ibama. E, embora encravado no cafundó do território nacional, aguarda o desfecho de um processo de regularização fundiária que se arrasta há um quarto de século. Falta acertar 2% de suas terras. E são elas que agora ameaçam mutilá-lo, abrindo precedente que na certa se espalhará pelo País inteiro.

E o Jaú pode ter lá seus problemas. Mas não é um parque de papel, como tantos. Nele funciona, desde os anos 80, um posto de fiscalização flutuante. Tem uma fauna orçada em pelo menos 460 espécies de aves e 300 de peixes. É um berçário natural de tucunarés, atraindo o olho gordo da indústria da pesca esportiva, que tem lá sua importância econômica para a cidade de Barcelos. A Unesco registrou-o há seis anos como Patrimônio da Humanidade. Mas nem isso quer dizer muita coisa, quando no outro prato da balança pesam os interesses de uma "comunidade tradicional", que quer dizer tudo.

Segundo o biólogo Fábio Olmos, na definição vigente de comunidade tradicional cabem "índios, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, açorianos, pantaneiros, geraiseiros, jangadeiros, faxinais, açorianos, pomeranos e até ciganos".

Em suma, entram todas as minorias que, infladas por incentivos políticos, crescem sem parar, formando uma frente de tal magnitude que, contra elas, não há parque que resista. Foi assim que, segundo Olmos, racharam mais ou menos ao meio os 451 mil hectares do Parque Nacional da Serra da Cotia, em Rondônia.

No caso, para não contrariar dois núcleos de gatos-pingados que, somados, não passavam de 39 pessoas, incluindo um foragido da Justiça. No Jaú, trata-se de pescadores, caçadores e coletores de produtos silvestres. Fora um ou outro morador que eventualmente cai na rede do tráfico de pirarucus e tartarugas, eles pareciam conviver sem maiores atritos com os fiscais do Ibama. E há quatro anos negociavam se mudar dali, ganhando uma nova reserva extrativista de 800 mil hectares fora do parque, na margem direita do rio. Lá o terreno é menos alagadiço, prestando-se à agricultura de subsistência.

Mas no meio do caminho havia uma ONG, a Fundação Vitória Amazônia. Ela chegou ao Jaú dez anos atrás para fazer pesquisas. E deitou raízes, tornando-se interlocutora no processo de reassentamento. Era uma ONG parceira, dizia-se no Ibama, que lhe encomendou o plano de manejo do parque. Era praticamente da casa. Uma OMG, ou Organização Meio Governamental, com uma representante no ministério, em Brasília. E tomou o partido dos moradores contra o parque, pastoreando-os na ação civil pública 2004.32.00001762-9 contra a União.

Cutucado na Justiça, o governo reagiu recuando, como é de praxe nestas ocasiões. Criou neste mês a tal comissão de estudos, para redesenhar o parque, cujos limites por sinal foram demarcados com a ajuda da Vitória Amazônica. Acabará fazendo o que queria desde o começo a Secretaria de Desenvolvimento Social do Amazonas, onde o governador Eduardo Braga apóia a reeleição do presidente Lula e vice-versa. Só pode ser coincidência, pois estas coisas no Brasil não acontecem. Mas convém notar que o grupo de trabalho veio junto com a campanha.

Marcos Sá Correa, jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 20/07/2006, Vida, p. A20.

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