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O Para mais ao norte, nos EUA

OESP, Metropole, p.C1
20 de Mar de 2005

O Pará mais ao norte, nos EUA
Nova leva de brasileiros saídos da pequena cidade de Tucumã refaz caminho antes seguido pelo mogno
Tonica Chagas
Especial para o Estado BRIDGEPORT, EUA
No domingo passado, o último do inverno nos Estados Unidos, a neve ainda estava acumulada diante das casas nesta silenciosa cidade portuária de Connecticut, onde vivem cerca de 140 mil habitantes. Mas, na cozinha de uma delas, suava-se com o vapor de três panelões de feijoada e mais dois de arroz. Na sala, as caixas de som tremiam com músicas da Banda Calypso e as moças, poucas, se desdobravam para dançar brega com um monte de rapazes. Pela porta da varanda, sempre aberta, chegava cada vez mais gente. Quando a comida ficou pronta, estavam ali mais de 30 brasileiros - todos imigrantes ilegais e todos vindos da mesma cidade: Tucumã, no sul do Pará. "Há dois anos, só tinha 12 tucumãenses em Bridgeport. Agora, pela nossa última contagem, somos pelo menos 120", diz Francesco (eles não querem dar o nome completo), de 31 anos, que foi empregado de serraria, depois dono de um lava-jato em Tucumã e, como os outros convidados da festa, chegou aos EUA pelo deserto entre o México e o Arizona. "Acabou a madeira, não tinha emprego para os jovens e o jeito foi virar imigrante."
A festa domingueira foi antes da prisão de 76 brasileiros em Massachusetts e, assim, nenhum dos paraenses estava tão preocupado com a fiscalização do serviço de imigração americano. E a festa é sinal de uma nova corrente de brasileiros deixando o País em direção aos EUA, os que saem da Terra do Meio para a Nova Inglaterra, como é chamada a região de Connecticut. E, por coincidência, essa leva de emigrados faz o caminho antes seguido pelo mogno, que teve a extração regulamentada pelo Ibama em 2001.
Francesco e os outros homens, que deixaram no Pará casa própria, sítios e gado, hoje constroem e reformam casas de milionários em Greenwich, Stanford, Litchfield, Darien e outras cidades perto de Bridgeport. Todos os dias, eles serram, lixam e pintam pedaços de árvores que saíram do mesmo lugar de onde vieram.
"O piso mais lindo que já vi na minha vida é o do que eles chamam aqui de brazilian cherry. É o nosso jatobá que vem do Pará", traduz Heonis, outro morador de Tucumã, ex-barman em São Paulo que, há dois anos, decidiu acompanhar amigos de infância na longa e perigosa viagem até Bridgeport. "Aqui tem madeira de serraria que nem existe mais lá. A gente conhece pelo símbolo estampado nas tábuas. A madeira mais usada nos pisos aqui é a brasileira, que vem da região nossa. Tucumãense que nem a gente."
O destino final dos tucumãenses é o mesmo que o da madeira de seu Estado. Mas custa de US$ 6 mil a US$ 10 mil por pessoa e é mais sinuoso. Começa por Goiânia, onde estão os coiotes brasileiros que os levam a São Paulo e dali para a Cidade do México. Desse país, entram nos Estados Unidos pelo deserto do Arizona e depois atravessam, com um ou outro desvio, os Estados de Novo México, Texas, Louisiana, Mississippi, Alabama, Georgia, South Carolina, North Carolina, Virginia, Maryland, Delaware e New Jersey, antes de chegar a Connecticut. Nesse percurso há duas cidades - Marietta, na Georgia, e Long Branch, em New Jersey - que também recebem gente de Tucumã. Mas a maioria vem se concentrando mesmo em Bridgeport.
"Tucumã está progredindo por causa das pessoas que estão em Bridgeport", diz João, outro que chegou há dois anos. "A maioria do pessoal que veio gasta o dinheiro lá em gado. Tem gente que compra 50 novilhas, 30, 10 e quando vê já tem 300, 400. Daqui uns anos vai ter mil..."
Ele não começou a comprar um sonhado rebanho porque está pagando a dívida do empréstimo feito para a viagem. Seu pai tinha supermercados, mas foi à falência quando perdeu a freguesia que, por sua vez, perdeu o emprego nas serrarias. João arranjou com parentes RS$ 43.500 para comprar dólar e pagar os coiotes. "Ainda devo um pouco, mas antes de pagar o que falta, arrumei dinheiro e trouxe minha irmã."
Sandra, a irmã de João, tem 37 anos e deixou em Tucumã uma filha de 10. "Eu tinha um gadinho, mas o preço do leite, muito baixo, rendia no máximo RS$ 300 por mês", diz ela. João lhe emprestou US$ 9 mil e, desde agosto, ela cozinha e limpa a casa onde mora com o irmão e cinco rapazes.
LIMPEZA
Como as outras mulheres desse crescente grupo de imigrantes paraenses, ela faz limpeza em outras casas. "Estou devolvendo o dinheiro para o João e ainda dá para economizar um pouquinho", orgulha-se essa mulher pequena e de pele tão queimada pelo sol da roça que nem os quase seis meses de frio conseguiram desbotar.
"Hoje, se você chegar a Tucumã e procurar um vaqueiro ou um leiteiro, é capaz de não encontrar", desconfia Francesco. "Isso porque a maioria do pessoal que veio para cá é colono, pessoal que tem chácara, que está acostumado a pegar no batente mesmo, no pesado", diz ele. "Agora está começando a chegar pessoal da cidade, que trabalhava em loja, supermercado, serviço mais maneiro."
Gleicy, de 20 anos, é exemplo dessa categoria urbana. Seu irmão Jeverson, um ano mais velho que ela, era piloto de pequenos aviões e chegou em abril do ano passado. A moça, que estudava Letras e era professora, atravessou a fronteira do México três meses depois dele. Agora, limpa casas na região em torno de Bridgeport, com o que já pagou os US$ 7.500 que tomou emprestado para chegar aonde está. "Ganha-se muito dinheiro, sim, mas também se trabalha demais. Eu não tinha essas olheiras que tenho hoje", reclama Gleicy, que se queixa também de não ter uma vida social além do convívio com os conterrâneos. "Não tem como sair para passear, é só trabalhar e trabalhar", explica. "Minha vontade no Brasil era conhecer Fernando de Noronha. Ganhando RS$ 500 por mês? Nunca que eu ia poder fazer isso. Hoje eu trabalho, junto meu dinheiro, mando para o Brasil e, quando voltar, vou realizar meu sonho, vou para Fernando de Noronha!"
Os tucumãenses matam as saudades de casa fazendo churrascos, feijoadas ou simplesmente cervejadas nas casas uns dos outros. "A gente aqui é tudo família, todo mundo já se conhecia lá da nossa cidade", diz Sandra. Há dois anos, eles chegavam e iam para o apartamento em cima de uma sorveteria numa das principais avenidas de Bridgeport. Até então eram poucos e dava para acomodar todo mundo num só lugar. Agora, pelo levantamento que fazem por meio da "rádio peão", que são as conversas no trabalho, os tucumãenses já ocupam mais de 30 casas como as da feijoada do domingo. Em cada uma vivem de três a sete pessoas.
Ninguém tem tempo para estudar inglês e o conhecimento da língua fica praticamente restrito a palavras específicas de suas profissões, como wood (madeira), nail (prego), build (construir), cleaning (limpar) ou soap (sabão). Depois das grandes reuniões nos dias de folga, o principal lazer é ver programas de televisão brasileiros ou ficar na frente do computador, conversando com amigos pela internet. E para aqueles que perguntam se vale a pena o sacrifício de atravessar o Brasil, o México e os Estados Unidos para chegar aonde estão, Heonis, que teve de se esconder entre cactos por dois dias para fugir da polícia americana na fronteira, responde: "É melhor sofrer dois dias e ter uma vida melhor no futuro do que ficar sofrendo a vida toda, né?"

Uma cidade de migrantes, Tucumã ganha com o êxodo
Tonica Chagas.
Como a maioria da população de Tucumã, onde hoje é prefeito, Alan de Souza Azevedo, de 46 anos, é um migrante. Baiano de Potiraguá e engenheiro florestal, ele se mudou para a cidade em 1988, ano em que o município foi criado. Por telefone, ele relatou ao Estado que viu o que era um antigo projeto de colonização da Construtora Andrade Gutierrez - invadido por trabalhadores sem-terra - chegar aos cerca de 40 mil habitantes, crescendo graças ao garimpo e à extração da madeira.
Agora, está vendo os tucumãenses partirem para os Estados Unidos, empurrados pela falta de opção de trabalho ou de remuneração que lhes permita continuar no Pará. Ele calcula que, nos últimos dois anos, cerca de 300 pessoas deixaram a cidade rumo à América.
Esses migrantes, porém, começam a ser uma considerável fonte de renda para Tucumã. "Muita gente saiu daqui só com o dinheiro da passagem e hoje tem fazenda com mais de 200 alqueires, com o alqueire custando entre RS$ 8 mil e RS$ 9 mil. Isso é bom para a economia do município porque traz recursos", diz o prefeito Azevedo. "Mas também traz uma intranqüilidade enorme para as famílias daqui. A maioria dos emigrados está nos Estados Unidos ilegalmente. Eles podem ser presos, sofrer constrangimentos e suas famílias aqui vão passar necessidades."
A esperança de Azevedo é que os projetos de instalação de duas mineradoras e dois frigoríficos em seu município levem os tucumãenses de volta. Mas, para evitar um êxodo maior de Tucumã, como ele teme, Azevedo não se cansa de repetir: "É preciso mexer na base econômica do Brasil."
Tolerância
Para Tucumã, a solução apontada por ele são projetos de agricultura que sejam rentáveis, atendendo o perfil da população que, historicamente, é formada por lavradores donos de pequenas propriedades. "Quem está saindo daqui é colono, trabalhador braçal e não gente com diploma universitário como a que sai de outros Estados", salienta o prefeito.
No entanto, Azevedo pressente que a solução ideal não vai chegar a tempo de impedir que mais tucumãenses se arrisquem a chegar aos Estados Unidos pelo deserto na fronteira do México e o país. Mesmo com notícias diárias sobre a prisão de brasileiros ilegais ou da morte de vários que tentaram chegar ao outro lado.
"Eu gostaria que o governo americano tivesse mais tolerância com os brasileiros e fizesse um programa de legalização dos nossos imigrantes", diz ele. "Precisamos ter nos Estados Unidos os mesmos direitos que os americanos têm no Brasil. O pessoal de Tucumã é de boa índole, nunca houve nenhum deles que tenha se envolvido em crime nas cidades americanas onde vivem."

OESP, 20/03/2005, p. C1

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