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O Papa da Amazônia

O Globo, Sociedade, p. 23
19 de Jun de 2015

O Papa da Amazônia
Em documento inédito, Francisco alerta contra devastação de florestas e desperdício de recursos

Paula Ferreira / Renato Grandelle

Uma instituição com 2 mil anos de existência, que já foi comandada por 265 religiosos, fez História ontem. O Papa Francisco tornou-se o primeiro líder do Vaticano a dedicar uma encíclica - batizada de "Laudato Si" ("Louvado seja", em latim) - ao meio ambiente. Em suas 192 páginas, um bioma ganhou destaque especial. A Amazônia é chamada de "pulmão do planeta repleto de biodiversidade", cujo futuro "não se pode ignorar". Sua biodiversidade exuberante, no entanto, está ameaçada. No documento, o Pontífice alerta que a queima de florestas já acarreta a perda de "inúmeras espécies", além de transformar áreas verdes em desertos.
Segundo Francisco, os governos locais devem combater as "propostas de internacionalização da Amazônia, que só servem aos interesses econômicos e civis das corporações internacionais". O trecho foi retirado de um documento de 2007 publicado pela Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe e gerou debate sobre que cenários poderiam levar a intervenções estrangeiras em biomas menos assolados, como a floresta sul-americana.
O diagnóstico do mundo acometido pelas mudanças climáticas aumenta as possibilidades de que as riquezas da Amazônia sejam disputadas no ringue internacional. De acordo com Francisco, o planeta devastado levaria nações desenvolvidas e grandes empresas a repetirem o esquema de exploração indiscriminada que serviu de pilar para o seu enriquecimento: "Há uma verdadeira 'dívida ecológica', particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países", destaca a encíclica.
Alinhados ao novo documento papal, os religiosos brasileiros pretendem intensificar as ações existentes relacionadas à preservação da Amazônia. O cardeal brasileiro Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, manifestou a intenção de manter o diálogo tanto com a sociedade civil quanto com os setores políticos do país.
- Temos vários pronunciamentos relacionados a essas preocupações da Amazônia - assinala Tempesta, acrescentando que "estamos todos no mesmo barco". - Continuaremos com a batalha de falar, fazer notas, chamar atenção do Congresso Nacional para que tome consciência dessa responsabilidade comum e histórica (de preservar a natureza).
Reitor da PUC-Rio, o padre Josafá Carlos de Siqueira ressalta que a Igreja já concentra esforços no cuidado com o meio ambiente.
- Há uma escala de problemas tratados do ponto de vista político, social e econômico em relação ao meio ambiente - lembra. - A encíclica servirá como inspiração ética para os grandes encontros internacionais. Nela, há um certo consenso entre a linguagem da ciência e a linguagem da fé. Não existe uma disparidade entre elas, isso é inovador.
Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima, considera que o Papa reconhece o papel das florestas tropicais no clima do planeta e, ao mesmo tempo, tenta prevenir conflitos de interesses que levariam à sua devastação.
- Pode ser uma denúncia contra a exploração insustentável dos recursos naturais, como água, minério e madeira - avalia. - O mais importante é atender aos interesses da população local, e não àqueles que vêm de outras regiões. De fato, desde a segunda metade do século passado, há momentos em que a internacionalização da Amazônia foi debatida. Acredito que superamos esta conversa, e reconhecer a soberania dos países locais é fundamental para elaborarmos estratégias de combate ao desmatamento.
Para Carlos Nomoto, secretário-geral do WWF-Brasil, a maior preocupação de Francisco é como cada setor deve preservar o meio ambiente.
- A Amazônia é um bioma fundamental para a regulação climática do planeta. As correntes de ar, por exemplo, são distribuídas para todos os continentes - ressalta. - As empresas já sabem como é necessário desenvolver estratégias de sustentabilidade. E o governo repara como a administração da floresta pesa sobre o seu orçamento. É mais barato manter um ambiente limpo do que deixá-lo degradar-se e investir em estruturas para aumentar a qualidade da água e do solo.

EXTINÇÕES À VISTA
Pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Beto Veríssimo acredita que o documento papal trouxe ao bioma "o reconhecimento esperado". Estima-se que a floresta concentre, no mínimo, 30% da biodiversidade do planeta. Muitas espécies estariam entrando em extinção antes mesmo de ser descobertas.
- O Papa escreveu sobre um ícone internacional - reconhece. - Sua mensagem é que estamos perdendo a biodiversidade para atividades econômicas predatórias, como a exploração ilegal de madeira e projetos de infraestrutura mal construídos. Se a Amazônia entrar em um processo irreversível de destruição, toda a Humanidade perde.
As florestas tropicais são, também, os maiores reservatórios de água doce do planeta. E este recurso promete gerar atritos nas próximas décadas. Além do consumo humano, a água move atividades como a agricultura e o setores energético e industrial. Em todos, sua exploração é marcada pelo desperdício.
A "cultura de descarte" é outro motivo de preocupação. Segundo Francisco, ainda não há um modelo "que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os".
A encíclica descreve que o esgotamento de recursos naturais pode criar "um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos". Analistas internacionais acreditam que uma das motivações para o confronto entre tropas rebeldes e o governo da Síria, que já se arrasta desde 2011, foram sete anos de estiagem e queda na produção agrícola.
- A mensagem do Papa é uma intervenção importante na luta contra a desigualdade e lembra a todos nós que pobreza e consumo exagerado são dois lados da mesma moeda - avalia Adriano Campolina, coordenador executivo da ActionAid Internacional. - A recusa do Papa em aceitar falsas soluções para as mudanças climáticas, que mascaram o problema e exploram os pobres, é um lembrete importante de que soluções climáticas reais devem primeiro passar no teste da moralidade.
Veríssimo elogia a fundamentação científica e a abordagem didática da encíclica de Francisco:
- Ele consegue refletir o nosso momento histórico: como o uso dos recursos naturais e o aquecimento global vão definir o padrão civilizatório da Humanidade, se escolheremos entre prosperidade ou destruição. Isso afetará as questões sociais, porque os pobres são sempre mais vulneráveis. Um planeta mais quente e seco pode estar sujeito a mais fome e doenças endêmicas.

A encíclica verde

Frei Betto

Em homenagem a São Francisco de Assis, o Papa Francisco lançou uma encíclica holística, "Louvado seja", na qual associa degradação ambiental e aumento da pobreza mundial. O texto se constitui num apelo urgente para a Humanidade sair da "espiral da autodestruição".
O chefe da Igreja Católica condena o atual modelo de desenvolvimento focado no consumismo e na obtenção do lucro imediato. Denuncia "a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano do qual não gosta."
Salvar o planeta é salvar os pobres, clama Francisco. Eles são as principais vítimas das sequelas deixadas por invasões de terras indígenas, destruição de florestas, contaminação de rios e mares, uso abusivo de agrotóxicos e de energia fóssil.
O texto resgata a interação bíblica entre o ser humano e a natureza e faz mea-culpa quanto ao modo de a Igreja interpretar o mandato divino de "dominar" a Terra. Também amplia o significado do "Não matarás": "Uns 20% da população mundial consomem recursos em uma medida tal que roubam às nações pobres e às gerações futuras aquilo de que necessitam para sobreviver."
Não há desenvolvimento social e avanço científico positivos, alerta o Papa, sem o respaldo da ética e a centralidade do bem comum em tudo que se pesquisa e planeja.
O combate à idolatria do mercado é enfático, ao frisar que a fome e a miséria não acabarão "simplesmente com o crescimento do mercado. O mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social."
Além de criticar como inócuas as reuniões de cúpula sobre a questão ambiental, pois os bons propósitos não saem do papel, Francisco amplia o conceito de ecologia ao destacar a "ecologia integral", a "ecologia cultural" e a "da vida cotidiana".
Nenhuma outra encíclica contém tanta poesia. Francisco frisa que "todo o Universo material é uma linguagem do amor de Deus. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus." E, pela primeira vez, uma encíclica valoriza a contribuição da obra de Teilhard de Chardin, censurado por Roma em toda a primeira metade do século passado.

O Globo, 19/06/2015, Sociedade, p.23

http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/papa-pede-atencao-co…

http://oglobo.globo.com/sociedade/a-enciclica-verde-16489782

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