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O morro não é só dos pobres

O Globo, Rio, p. 17
22 de Mar de 2009

O morro não é só dos pobres
Ricos ocupam 70% das encostas acima de 100m, mas favelas concentram 73% da população

Rogério Daflon e Tulio Brandão

O carioca costuma dizer que as favelas dominam o cenário das encostas da cidade, mas um estudo inédito apresentado pelo Instituto Pereira Passos (IPP) joga o mito ladeira abaixo. Os pesquisadores revelam que 69,7% das áreas ocupadas acima dos cem metros de altitude (cota 100) no município - que totalizam 11,7 milhões de metros quadrados - estão nas mãos das classes média e alta. Apenas 30% são de favelas. Quando se analisa a população da área estudada, a proporção se inverte: 73,5% são moradores de favelas, e o restante se espalha pelo generoso espaço da ocupação formal. A legislação para construção acima da cota 100 é restritiva - estabelece limites como 10% da área ocupada e máximo de três pavimentos. Mas a fiscalização é falha.

O presidente do IPP e assessor-chefe para assuntos econômicos do município, Felipe Góes, explica que o objetivo do estudo é alimentar as secretarias de Habitação e Urbanismo com informações para suas ações.

- As pastas vão encontrar soluções para situações irregulares em construções formais e favelas.

O secretário municipal de Urbanismo, Sérgio Dias, ficou surpreso com a proporção entre favelas e construções formais na área ocupada acima de cem metros. Ele admitiu não haver número suficiente de fiscais.

Não há qualquer levantamento sobre irregularidades em construções acima da cota 100. De qualquer forma, Sérgio prometeu ser tão ou mais rigoroso com as classes mais abastadas.

- As ações de demolição da prefeitura não levam em conta se o dono é pobre ou rico. Não há discriminação.

Com a população de baixa renda temos uma preocupação social, o que não precisa ocorrer com os ricos. Hoje, a secretaria tem 60 fiscais para todas as funções, da liberação de habite-se à verificação de denúncias de irregularidades - diz ele, acentuando que, por isso, a ajuda da população é cada vez mais importante.
Lei diferente para casas em favelas
O estudo revela ainda que há mais de 20 favelas acima da cota 100 -- parcial ou totalmente ilegais. Entre as comunidades com áreas acima dessa altitude estão Vidigal, Rocinha, Complexo do Alemão, Chácara do Céu, Complexo do Borel, Morro do Juramento e Morro do Dendê. Apesar de ocupar uma área muito menor, a população de favela representa 73% do total residente acima dos cem metros, que é de 137.515 habitantes. Ou seja, esses moradores se agrupam num espaço considerado inadequado pela legislação das áreas formais da cidade. As comunidades carentes não são passíveis de legalização pelos princípios da cota 100. Por isso, onde há intervenção da prefeitura, valem as regras de área de especial interesse social.

- Se o objetivo for a regularização, a legislação deve mesmo ser diferenciada. Dentro da legislação formal, elas estarão sempre na ilegalidade - diz o urbanista Sérgio Magalhães, um dos idealizadores do projeto Favela-Bairro.

Apesar de espremidas e ilegais, as favelas da cidade não param de crescer. Levantamento publicado recentemente pelo GLOBO revela que as comunidades se expandiram, em área, três milhões de metros quadrados entre 1999 e 2008.

O estudo do IPP usou como parâmetro o conceito de setores subnormais do IBGE para definir áreas de favela. O total da área ocupada acima da cota 100 chega a 1% do município.

Alguns casos de desrespeito às limitações da cota 100 na construção formal foram parar na Justiça, após serem denunciados pelo Ministério Público Estadual (MP) e a prefeitura. Um caso emblemático é o do condomínio da Rua João Borges 240, Gávea, originalmente um lote da família Canto e Mello. Ali foram construídas mais de 20 casas de alto padrão, numa área hoje chamada de Condomínio Canto e Mello. Como a legislação proíbe loteamentos e casas sem, pelo menos, 50 metros voltados para logradouro público, a aparente ilegalidade rendeu uma ação civil pública em 1991, que corre até hoje nos tribunais do Rio.

- Todas descumpriram o embargo de obra. A certeza da impunidade reinou. Pena que essa ação seja um exemplo de morosidade da Justiça - afirma o advogado Rogério Zouein, que à época trabalhava para o MP.

Dois anos depois da ação, outra polêmica no mesmo condomínio. O então secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, avistou da Lagoa uma casa de quatro pavimentos em construção. Decidiu embargar a obra, mas o MP, em segunda instância, deu parecer favorável à construção. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que desconsiderou a decisão do promotor e o mandou de volta ao Tribunal de Justiça do Rio.

O dono do imóvel, José Hermani Campelo de Souza, admitiu ser réu no processo, mas disse ainda caber recurso em Brasília, sem saber que o processo tinha voltado ao Rio.

- Se não existisse esse condomínio, isso aqui seria uma favela. Todos têm processo. Não só eu. A prefeitura não reconhece o Condomínio Canto e Mello - diz Hermani.

Os moradores do condomínio tentam legalizar os imóveis. Através de vereadores, a família Canto e Mello estaria tentando a abertura de um logradouro público no condomínio, o que teoricamente regularizaria as casas.

O projeto de lei original visando à legalização é do vereador Alberto Salles, assassinado ano passado na Barra. Na proposta, ele diz que o condomínio existe há longo tempo e sua regularização evitaria o nascimento de uma favela. Alberto concedeu o título de cidadão honorário a Hermani.

Segundo especialistas, as ilegalidades na construção formal são pontuais. Em bairros como Santa Teresa e Alto da Boa Vista, a maior parte das edificações estava de pé quando a legislação que formalizou a cota 100 foi criada, em 1976. Um dos bons exemplos é a Residência Assunção, da Arquidiocese do Rio, localizada na Estrada do Sumaré 670, a mais de 600 metros de altura. Apesar de ter sido construída antes da lei da cota 100, a casa onde hoje vive o arcebispo emérito do Rio, cardeal Dom Eugenio Sales, parece respeitar naturalmente os limites. A construção tem só dois andares e ocupa uma pequena fração do terreno.

Sérgio Magalhães diz que, na média, quem cumpre mais a lei são os moradores de classe média:
- Para eles o risco é alto. Não podem ter o dano de demolição ou multa. Já o rico, se quiser, tem meios de arcar com a ilegalidade. O pobre, muitas vezes, não tem alternativa.

Um decreto para conservar as encostas

A legislação da cota 100 - regulamentada pelo decreto 322, de 1976, e flexibilizada pelo decreto 8321, de 1988 - restringe bastante a possibilidade de edificações. A taxa de ocupação é de apenas 10% - ou 20% para áreas inferiores a mil metros quadrados. As construções devem ser unifamiliares, mas abre-se exceção para asilos, orfanatos, clínicas geriátricas e de repouso. As edificações estão limitadas a três pavimentos (até 1988, eram apenas dois). E deve haver pelo menos 50 metros voltados para a rua. Especialista no tema, a doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ Mônica Schlee explica que, à época da criação, a legislação teve como objetivos a conservação das florestas e a contenção da ocupação formal - sobretudo por grandes edifícios - e da proliferação das favelas na Zona Sul da cidade. Ela especula sobre a definição da altitude de 100 metros:
- Acredito que o legislador tenha usado como parâmetro o decreto de tombamento do Parque Nacional da Tijuca, que abrangia áreas acima das cotas 80 e 100 metros.
A legislação mudou com o Plano de Estruturação Urbana de São Conrado, que flexibilizava as regras na região. A gerente de planos locais da prefeitura, Mônica Barroso Ferreira, explica que o decreto de 1988 ampliou para todas as áreas de cota 100 (Zonas Especiais 1) a flexibilização daquele bairro. Há ainda exceções para bairros como Santa Teresa e Alto da Boa Vista, urbanizados muito antes do surgimento da cota 100.

O Globo, 22/03/2009, Rio, p. 17

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