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O mistério dos índios brasileiros

O Globo, Sociedade, p. 25
22 de Jul de 2015

O mistério dos índios brasileiros
Tribos amazônicas e do Cerrado e nativos da Oceania compartilham genes de população 'fantasma' que teria saído da Melanésia há milhares de anos

Cesar Baima

RIO - Há cerca de 20 mil anos, as Américas eram a última fronteira para a ocupação do planeta pelos humanos modernos (Homo sapiens). Então, uma ponte de gelo e terra uniu o Nordeste da Ásia ao Alasca, na região do atual Estreito de Bering, criando um caminho que permitiu aos primeiros colonizadores chegarem ao nosso continente. A cronologia desta migração e a identidade destas populações pioneiras, no entanto, ainda são objeto de muitos debates e dúvidas entre os cientistas. Nos últimos anos, diversos estudos morfológicos, genéticos, arqueológicos e linguísticos reforçam a tese de que este processo se deu em três grandes ondas, encontrando ligações entre os índios nativos americanos com grupos que habitavam e ainda habitam áreas que hoje compreendem a Sibéria, a Mongólia e o Leste da Ásia, no que ficou conhecido entre os especialistas como o "modelo paleoamericano".
Mas duas novas pesquisas divulgadas em adiantamento nesta terça-feira pelas prestigiadas revistas científicas "Nature" e "Science" vêm complicar ainda mais este cenário do povoamento das Américas. Embora o estudo na "Science" corrobore em grande parte o chamado "modelo paleoamericano", ele fornece uma cronologia mais precisa e indica uma importância maior da corrente migratória inicial dos siberianos na formação dos povos indígenas das Américas. Já o estudo na "Nature", que contou com a participação de cientistas brasileiros, porém, identificou pela primeira vez uma contribuição genética significativa de uma população "fantasma", desconhecida, mas relacionada aos atuais aborígenes australianos e nativos da Nova Guiné e das Ilhas de Andamã, ou seja, entre o Sudeste Asiático e a Oceania, na formação de pelo menos três tribos brasileiras: suruí e karitiana, da Amazônia e de língua tupi; e xavante, do Cerrado e de língua jê. Para piorar ainda mais a situação, esta contribuição parece estar misteriosa e praticamente ausente nos demais grupos nativos americanos analisados até agora tanto no Norte quanto no Centro e no Sul do continente.
- Realmente não esperávamos ver estes resultados - conta Tábita Hünemeier, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP e uma das coautoras do estudo publicado da "Nature". - Esta contribuição dos melanésios (nome dado a um grande conjunto de povos da atual Oceania) nunca tinha sido aceita nos modelos sobre o povoamento das Américas e chegamos a duvidar do que estávamos vendo, mas, conforme fomos refinando nossas análises genéticas, os sinais ficaram cada vez mais fortes. Uma população não pode simplesmente desaparecer sem deixar uma marca genética nas subsequentes, e nosso estudo é o primeiro a mostrar isso.
CONTRIBUIÇÃO DE UMA POPULAÇÃO DESCONHECIDA
Segundo os pesquisadores, suruís, karitianas e xavantes apresentam ao menos 2% de seu genoma vindos desta misteriosa e já extinta população de origem melanésia, provisoriamente batizada de "ypykuéra", palavra tupi para "ancestral". Esta proporção indica que a contribuição é muito antiga e que estes migrantes provavelmente chegaram às Américas, se não juntos, pouco antes ou depois dos "primeiros americanos" vindos da Sibéria. Eles teriam se mesclado durante o longo isolamento na chamada Beríngia, as terras em torno do atual Estreito de Bering, até que o derretimento das geleiras que tomavam o Norte do Canadá permitiu que se deslocassem cada vez mais para o Sul, chegando então à América do Sul e ao Brasil. Além disso, o fato de a sua contribuição genética estar presente tanto em povos de idioma tupi quanto jê, troncos linguísticos que se separaram há mais de seis mil anos, sugere que os ypykuéras ou seus descendentes miscigenados já estavam aqui antes disso.
- Montamos este cenário em cima de um resultado que outros pesquisadores não conseguiam explicar dentro do que era conhecido sobre o povoamento das Américas - explica Maria Cátira Bortolini, professora do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e também coautora do estudo divulgado na "Nature". - Sabíamos que os nativos americanos tinham esta herança siberiana clássica, mas mostramos que houve um estoque genético diferente, que também teria contribuído para a formação destes povos, de origem da Melanésia, que veio do Sul da Ásia e chegou à Beríngia talvez junto com os siberianos. Não estamos dizendo que houve uma conexão direta Austrália-América do Sul, mas que as populações que aqui chegaram eram muito mais diversas tanto morfologicamente quanto geneticamente do que se pensava. Minha expectativa é que estes povos eram uma mistura dos siberianos/beringianos clássicos com os ypykuéras, numa contribuição que pode ter sido pequena, mas importante nas populações indígenas de hoje da Amazônia e do Cerrado.
Agora, o grande desafio dos cientistas é descobrir mais detalhes sobre quem seriam os misteriosos ypykuéras, já que, levando em conta o cenário de miscigenação com os "primeiros americanos" siberianos na Beríngia, a contribuição genética total desta mistura na formação dos povos indígenas brasileiros pode chegar a 85%. E já existem fortes suspeitos: os parentes de Luzia, um dos mais antigos fósseis de humanos modernos já encontrados nas Américas. Datados em cerca de 11 mil anos, os restos de Luzia foram achados na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, em 1975. Desde então, diversos outros fósseis de antigos habitantes da área foram desencavados, muitos dos quais com traços morfológicos considerados por alguns cientistas similares aos hoje vistos nos aborígenes australianos e em outras populações melanésias. A esperança é que futuras análises genéticas destes restos, assim como de outros povos indígenas brasileiros e da América do Sul atuais e antigos, reforcem a tese de que o povoamento de nosso continente recebeu uma contribuição significativa dos ypykuéras.
- Se eu fosse indicar um ancestral comum para os povos indígenas brasileiros, seria na população de Luzia que eu pensaria em primeiro lugar - aposta Tábita. - Ela é a melhor candidata para esclarecer quem foi essa misteriosa população ypykuéras.

Homem chegou à América em apenas uma onda migratória, diz estudo
Travessia entre a Sibéria e o Alasca ocorreu há no máximo 23 mil anos

RIO - Uma pesquisa publicada esta semana pela revista "Science" apresenta uma nova descrição da chegada do homem às Américas. Usando dados de genomas antigos e modernos, uma equipe internacional de cientistas concluiu que os ancestrais dos americanos nativos, incluindo ameríndios, chegaram ao Novo Mundo a partir da Sibéria em apenas uma onda migratória, no máximo 23 mil anos atrás.
A divisão ancestral em dois ramos principais ocorreu há 13 mil anos, coincidindo com o derretimento das geleiras e a abertura de rotas para o interior da América do Norte. Daí surgiram dois grupos: o dos ameríndios e outro nativo do Alasca. Pesquisas anteriores afirmavam que a travessia de ambos os povos ocorreu separadamente.
- Nosso estudo apresenta o quadro mais abrangente da pré-História genética das Américas - conta Maanasa Raghavan, bióloga molecular da Universidade de Copenhague, integrante do grupo de 101 pesquisadores envolvidos no estudo. - Mostramos que todos os nativos americanos, incluindo os subgrupos dos ameríndios e os ancestrais da população moderna do Alasca, vieram em uma mesma onda migratória para as Américas.
ISOLAMENTO NA BERÍNGIA
Segundo Maanasa, este movimento foi distinto das ondas seguintes, que deram origem aos paleoesquimós e às populações inuits, que se espalharam pelo Ártico.
Considerando que as primeiras evidências da presença de seres humanos nas Américas datam de cerca de 15 mil anos atrás, os primeiros antepassados podem ter permanecido na Beríngia, a ponte terrestre que ligava o Alasca e a Sibéria, por cerca de oito mil anos, antes de finalmente chegarem ao Novo Mundo. Trata-se de um período muito menor do que as dezenas de milhares de anos de isolamento descritas em pesquisas anteriores.
A diversificação das populações modernas ocorreu apenas depois que chegaram às Américas.
Os pesquisadores fizeram o sequenciamento do genoma de 31 pessoas vivas - nativos americanos, siberianos e pessoas que vivem próximo ao Oceano Pacífico - e de 23 indivíduos que viveram no Sul e no Norte do continente entre 200 e seis mil anos atrás.
Professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, Yun Song destaca que novas amostras de material genético podem determinar o momento exato da divisão entre as populações no continente.
- Há alguma incerteza sobre as datas da migração e a diferenciação entre os povos ameríndios do Norte e do Sul das Américas. No entanto, à medida que outros genomas antigos são sequenciados, seremos mais capazes de obter datas precisas sobre os momentos da migração - explica.
MISTURA DE GENES
Os pesquisadores se surpreenderam com as amostras estudadas dos nativos americanos. Nelas havia uma pequena mistura de genes encontrados em povos da Ásia Oriental, de caçadores-coletores do Sudeste Asiático e de populações da região da Melanésia, no Oceano Pacífico, em localidades dos atuais Papua Nova Guiné e Ilhas Salomão.
- As populações do Novo Mundo não estavam completamente isoladas do Velho Mundo após sua migração inicial - destaca Eske Willerslev, pesquisador da Universidade de Copenhague. - Não podemos dizer exatamente como e quando esse fluxo genético aconteceu, mas uma possibilidade que consideramos é a de que veio por povos que viviam na costa do Alasca.

O Globo, 22/07/2015, Sociedade, p. 25

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