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O mistério das meninas do Alasca

O Globo, Sociedade, p.23.
04 de Jan de 2018

O mistério das meninas do Alasca
Pesquisa revela participação de população desconhecida na ocupação do continente

CESAR BAIMA
cesar.baima@oglobo.com.br

O processo de ocupação das Américas pelos humanos modernos (Homo sapiens), já alvo de intensos debates entre os especialistas, acaba de ganhar mais um "mistério" que deverá acirrar ainda mais as discussões sobre quem foram os primeiros habitantes do nosso continente e quando e como eles se espalharam por aqui. Análises genéticas dos restos mortais de duas crianças encontrados em um sítio arqueológico no Alasca, datados em 11,5 mil anos, indicaram que elas pertenciam a uma antiga população até agora desconhecida.
- Não sabíamos que essa população existiu - destacou Ben Potter, professor de antropologia da Universidade do Alasca em Fairbanks e um dos autores do estudo, publicado ontem na revista "Nature". - Estes dados nos dão a primeira evidência direta da população fundadora dos nativos americanos, o que joga nova luz em como essas populações antigas migraram e se espalharam pela América do Norte.
Até há pouco tempo, a história da ocupação humana das Américas era considerada relativamente simples: em algum momento durante a última Idade do Gelo, há pelo menos 15 mil anos, um grupo de pessoas se aventurou a cruzar uma "ponte" criada pelo recuo do nível do mar entre a Ásia e as Américas em torno do atual Estreito de Bering, na ligação entre os oceanos Pacífico e Ártico. Elas permaneceram na região, apelidada Beríngia, até que as geleiras na América do Norte derretessem com o fim do período glacial e elas pudessem migrar para o Sul.
No entanto, o sequenciamento do genoma humano e os avanços nas técnicas de recuperação e estudo do DNA de restos mortais antigos complicaram radicalmente este cenário. E é justamente neste contexto que se encaixa a nova pesquisa. Nela, os cientistas analisaram em detalhes o genoma do corpo de um bebê do sexo feminino de apenas seis semanas de idade chamada Xach'itee'aanenh T'eede Gaay ("menina-criança do nascer do Sol") pelos habitantes locais. Também analisaram parte do DNA que conseguiram extrair dos restos de outra menina, que provavelmente foi sua prima de primeiro grau e morreu ainda mais nova, apelidada Ye?kaanenh T'eede Gaay ("menina-criança do crepúsculo"). Os restos foram desenterrados de um sítio funerário no alto do Rio Sol, na região do Vale do Tanana, no centro do Alasca, que os cientistas dizem ter 11,5 mil anos.
Com base nos dados destas análises e modelagens demográficas, os autores sugerem que uma única população ancestral dos atuais nativos americanos se separou dos habitantes do Leste da Ásia há cerca de 35 mil anos, o que pode ter acontecido antes ou depois do cruzamento do Estreito de Bering. Essa população, então, há aproximadamente 20 mil anos, também se dividiu em duas, dando origem a este povo recém-descoberto no Alasca, que teria ficado restrito ao extremo Norte das Américas, chamados de Antigos Beríngeos. O outro grupo de fato seguiu para o Sul e gerou todos demais povos nativos americanos.
- Esta nova informação nos dará uma imagem mais acurada da pré-história dos nativos americanos, e ela é notavelmente mais complexa do que pensávamos - diz Potter.
DOIS POSSÍVEIS CENÁRIOS
Com base nos dados destas análises genéticas e modelagens demográficas, os autores sugerem que uma única população ancestral dos atuais nativos americanos divergiu dos habitantes do Leste da Ásia há cerca de 35 mil anos, o que pode ter acontecido antes ou depois de cruzarem o Estreito de Bering. Essa população então, há aproximadamente 20 mil anos, também se dividiu em duas, dando origem a este povo recém-descoberto no Alasca, que teria ficado restrito ao extremo Norte das Américas, chamados de "Antigos Beríngeos". Já o outro grupo teria seguido para o Sul, gerando todos os demais povos nativos americanos.
No segundo cenário, considerado mais provável pelos pesquisadores, uma única população original que divergiu das tribos da Sibéria fez a travessia a partir do Estreito de Bering, também entre 35 mil e 20 mil anos atrás. Mas depois, já nas Américas, parte ficou isolada no extremo Norte do continente e acabou divergindo da que foi para o Sul.
- Os Antigos Beríngeos divergiram dos outros nativos americanos antes de qualquer população nativa americana arcaica ou atual que teve o genoma sequenciado até agora - resume Eske Willerslev, líder da pesquisa, professor do St John's College e da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. - Eles são basicamente uma relíquia do grupo ancestral que era comum a todos os nativos americanos. Os dados de seu sequenciamento genético nos dão um enorme potencial de responder questões relacionadas ao começo da ocupação das Américas. Pudemos demonstrar que este povo provavelmente entrou no Alasca antes de 20 mil anos atrás. Esta é a primeira vez que temos evidências genômicas diretas de que todos os nativos americanos podem ser rastreados de volta no tempo a uma população fonte por um único e fundador evento migratório.
DINÂMICA GENÉTICA
Outras questões que o novo estudo ajuda a esclarecer são a cronologia e a dinâmica da divergência genética também observada em pesquisas anteriores entre as populações nativas americanas do Norte e do Sul da América do Norte. Segundo os pesquisadores, os dados sugerem que esta separação se deu entre 17 mil e 14 mil anos atrás, depois que a população original deixou para trás os "primos" Antigos Beríngeos e atravessou as maciças geleiras que cobriam o Canadá e o Norte dos EUA e começavam a derreter com o fim da última Idade do Gelo.
Então, mais alguns milhares de anos depois, com o caminho mais livre e as condições climáticas mais favoráveis, algumas tribos voltaram a migrar para o Norte do continente, tomando o lugar ou absorvendo os Antigos Beríngeos que lá tinham ficado, dando origem a etnias como os atabascos e os inuítes (esquimós) que ocupam a região atualmente.
- Um dos aspectos significativos desta pesquisa é que algumas pessoas têm alegado que a presença humana nas Américas data de muito antes, de 30 mil, 40 mil ou até mais anos atrás - conclui Willerslev. - Não podemos provar que estas alegações são falsas, mas podemos dizer que, se estiverem corretas, elas (estas supostas primeiras e muito antigas populações migrantes) não podem ter sido as ancestrais diretas dos nativos americanos contemporâneos.

O Globo, 04/01/2018, Sociedade, p.23.

https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cientistas-revelam-participa…

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