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O ministro e a terra ianomâmi

O Estado de São Paulo - São Paulo - SP
Autor: Jarbas Passarinho
27 de Mar de 2001

Li, no Estado, que em Roraima, no dia 21 do corrente mês, o ministro da Defesa, dr. Geraldo Quintão, disse sucessivamente ter sido a demarcação da terra indígena ianomâmi "um erro", "péssimo exemplo" e que a "decisão de Collor foi adotada por incompetência ou por necessidade de um presidente da República de aparecer bem lá fora, porque estava caindo aqui dentro".
Ministro da Justiça, autor da Portaria 580, de 15 de novembro de 1991, julgo de meu dever defender-me, e ao governo de então, da acusação de incompetência e de dar péssimo exemplo ao meu país. Comecemos pelo problema jurídico. Advogado, o ministro bem sabe que a Constituição incumbiu o Ministério Público também da defesa dos interesses sociais indisponíveis.
Exercendo essas atribuições, os procuradores da República Eugênio Aragão e Débora Pereira entraram com medida cautelar, ainda em outubro de 1989, perante o juiz da 7ª Vara Federal, em Brasília. Pediam a interdição dos 9 milhões de hectares, estabelecidos no governo João Figueiredo, e reduzidos a 2,5 milhões pelo seu insigne e honrado sucessor. O juiz deferiu a cautelar, o governo não convenceu na contestação e o magistrado concedeu a liminar determinando a interdição da área e a imediata retirada dos garimpeiros dela. A Funai pediu o cumprimento da decisão judicial.
Eu assumira o ministério três dias antes. Interditei a área, enquanto estudava a matéria. Um mês depois, os mesmos procuradores entraram com ação para que a área fosse declarada - como o foi pelo mesmo juiz - posse ianomâmi. Verificando a inexistência de regras legais para demarcar terras indígenas, obtive do presidente Collor a edição do Decreto no 22, de 4 de fevereiro de 1991. Acionei a Consultoria Jurídica e a Secretaria Nacional de Direitos da Cidadania, ambas do ministério. A Funai constituiu um grupo técnico encarregado de dar parecer. Fê-lo em 22 de julho de 1991, opinando pela demarcação da área de 9 milhões de hectares em linha contínua.
Como não haviam sido ouvidos órgãos públicos recomendados pelo Decreto no 22, dirigi-me aos governadores de Roraima e do Amazonas e pedi o parecer dos Ministérios das Relações Exteriores e da Infra-Estrutura e das Secretarias de Meio Ambiente e de Assuntos Estratégicos. Os ministros militares decidiram atribuir ao ministro-chefe do Gabinete Militar o parecer solicitado. Os governadores foram contrários. O Itamaraty, cujo chanceler era um magistrado, foi favorável. Acompanhou-o a Secretaria de Meio Ambiente. A de Assuntos Estratégicos ponderou quanto ao perigo de afetar a soberania nacional. O Gabinete Militar, em nome também do EMFA e dos Ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, opinou pela remessa do processo ao Conselho de Defesa. Entrementes, o meu consultor jurídico e o secretário-executivo consideraram inexistente qualquer ameaça à soberania e à segurança nacionais, respaldados em eminentes juristas. Estando a terra ianomâmi na faixa de fronteira, garantida ficava duplamente a propriedade da União. Cabia-lhe exercer soberania sobre os índios e garantir a integridade territorial com as Forças Armadas.
Ouvir previamente o Conselho de Defesa, como propôs o Gabinete Militar, revelava-se indevido diante da sua atribuição definida no artigo 91, @ 1o e inciso III, da Constituição federal: "Propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso." Não se tratava de uso ou utilização da terra, mas de sua demarcação. Impunha-se analisar o direito à posse segundo o artigo 231 da Constituição: "Terras tradicional e permanentemente ocupadas."
Geneticistas, lingüistas e antropólogos atestam a existência milenar e permanente dos ianomâmis na área, embora as primeiras referências historiográficas datem do século 18. Restava traçar a área compatível com "a atividade produtiva, a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".
Antropólogos conceituados, autores de livros e que estudaram anos a fio os ianomâmis in loco, defenderam a demarcação contínua. Isolar as aldeias seria tornar inviável a sua interação. Uma das últimas populações - e nunca nação!
- primitivas existentes. Os espaços que parecem vazios, nos mapas, são "trilhas que ligam as várias aldeias, nervos e veias do espaço social, áreas de perambulação, essenciais às cerimônias fúnebres e matrimoniais e à reprodução sociocultural, acampamentos de caça e de viagem, antigos roçados". A separação, por "ilhas", impediria as "relações intertribais", pertinentes aos seus usos e costumes.
Quem não acredita na antropologia cultural pensa que se poderia seguir o critério de colonização a tantos hectares por pessoa. Ministro da Justiça, deveria eu ser cumpridor exemplar da Constituição que ajudara a escrever.
Depois de 13 meses de estudos por vezes estafantes, aprovei a tese da linha contínua. Ressalvei em despacho a imperativa necessidade de ser ouvido o Conselho de Defesa, quando da utilização posterior da terra. E na Portaria 580 está assegurada a ação e atuação das autoridades federais na área, um bem da União. Teria sido um erro e péssimo exemplo? De que participaram cientistas, juristas e técnicos incompetentes? Como explicar, então, que o Supremo Tribunal Federal venha julgando improcedentes todas as ações de inconstitucionalidade impetradas contra a demarcação contínua? E que o Senado não haja aprovado projetos a ela contrários?
Não me surpreende a leviandade de políticos de Roraima ao dizerem que não observamos "nenhum critério na demarcação feita só olhando o mapa". É que os políticos sabem que os índios não votam, mas os garimpeiros elegem... Ameaça à Amazônia, se vier a existir, não é de uma nação ianomâmi, mas do pretexto de devastação da floresta. Não desprezo o papel de certas ONGs. Mas penso no marechal Castelo Branco quando profligou a "estratégia do medo". Na Câmara dos Deputados, em audiência pública em junho de 1999, o general Schroeder Lessa, então comandante militar da Amazônia, afirmou aos deputados que a demarcação não inibe nenhuma ação do Exército. Claro, a terra é bem da União, sua propriedade (artigo 20 da Constituição), e não dos índios, simples posseiros.
Quanto ao presidente Collor, manda a verdade que se diga que em nenhum momento fez sequer uma sugestão a respeito da demarcação. Homologou a Portaria 580, em 15/11/1991, em reunião setorial do Ministério, presentes todos os ministros militares, sem discrepância expressada. Ainda assim, há quem o acuse de ter cumprido ordens do então presidente americano George Bush...

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