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O milagre já aconteceu

O Globo, Ciência, p. 50
Autor: SILVA, Marina
20 de Dez de 2009

O milagre já aconteceu

Marina Silva

Não se pode dizer que o desenrolar meio decepcionante da Convenção do Clima (COP-15) realizada em Copenhague, na Dinamarca, tenha sido inusitado ou surpreendente.

Os discursos sem correspondência na prática, os oportunismos, a defesa repetitiva de posições tradicionais de poder, estava tudo lá. Mas, ao mesmo tempo - e felizmente - um evento do porte da Convenção do Clima não é controlável, no sentido de seguir scripts rígidos. É uma obra aberta. Há ali a energia e as contradições de um embate que naturalmente desnuda esquemas, expõe vacilos e faz com que as forças reais presentes tenham que lidar com a impossibilidade de manter intactos seus interesses e sejam levadas a pensar, ainda que minimamente, num universo maior do que a sua visão particular.

Copenhague mostrou que é preciso mudar o roteiro e colocálo em sua devida dimensão. No antigo conceito de segurança planetária, o referencial era a guerra e as potências se arvoravam a ser os protagonistas da humanidade, os detentores das razões geopolíticas e econômicas que justificavam todas as intervenções, ou quase todas. O medo da destruição nuclear, da falta de petróleo, entre tantos ícones dessa ideologia da segurança, alimentou uma indústria bélica monumental para "cuidar do mundo", segundo a visão dos senhores da guerra.

Hoje, o risco ambiental que ameaça o planeta está muito além da capacidade desse antigo conceito, mas ninguém se apresenta, com o mesmo entusiasmo, para evitar a destruição provocada por essa nova forma de guerra. Talvez porque ela acontece em outro plano e não se tenha uma indústria "bélica" tão lucrativa por trás. Ou porque não existem ainda lideranças dispostas a viabilizar estruturas econômicas, técnicas, sociais, científicas, culturais e políticas capazes de materializar um novo conceito de segurança, perpassado pelo imperativo ético de salvar o planeta. Que deveria ser a decorrência natural da crise em que estamos imersos.

Essa falta de lideranças realmente protagonistas dessa visão não-belicista e não-economicista de segurança e de prioridades planetárias ficou escancarada em Copenhague. É como se cada um dos líderes mundiais chegasse para ser o cara, mas não há "o" cara.

Apenas a cara de todos os humanos, perplexos com a incapacidade de seus governantes assumirem a plena responsabilidade que imaginavam que não tinham.

A grande novidade de Copenhague é que ela revelou duas coisas. A inexorabilidade da mudança do modelo de desenvolvimento. E o constrangimento de lideranças que descobriram que o tempo de mudança anunciado na Rio 92 já chegou e eles ainda não entenderam a dimensão do que isso representa.

A reunião foi feita à beira do precipício e os líderes demonstraram que não sabem ainda como construir a ponte para atravessálo.

Também acredito em milagre, e ele já aconteceu: foi a voz da sociedade dizendo que entendeu o tamanho do problema e das dificuldades e que dá respaldo para as mudanças necessárias.

A estrutura de poder mundial está aquém desse mandato, não está à altura do papel que a sociedade exige e espera que seja cumprido com a urgência necessária.

Quem não perceber isso, continuará à cata de milagres, quando na verdade já estão dadas as condições para agir.

Desde a Rio 92 sabíamos que haveria esta Copa do clima, mas os atletas não treinaram. Pelo contrário, chegaram em péssima forma física e, em campo, fazem o mínimo para manter o empate, quando não há mais empate possível. Já estamos na hora da cobrança dos pênaltis. E mais uma vez caberá à opinião pública internacional empurrar o time.

O Globo, 20/12/2009, Ciência, p. 50

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