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O milagre do sertao

CB, Brasil, p.12
16 de Nov de 2004

O milagre do sertão
Projeto criado há quatro anos e meio na Paraíba permitiu que os sertanejos escapassem da tortura da seca para produzir o próprio alimento e ainda ter renda mensal de até R$ 2 mil a partir do uso racional da água
Carmen Souza
Enviada especial
Paraíba — Em tempos de novembro vermelho, sertanejos assentados na Paraíba conduzem uma reforma agrária que dá certo. Famílias castigadas pela falta de dinheiro e comida esbanjam mesas fartas de frutas e verduras, e rendas que chegam a R$ 2 mil mensais.
O milagre do sertão vem do uso racional da água. Agricultores paraibanos montam hortas com canteiros de diferentes diâmetros que circundam um tanque de água, distribuída por mangueiras. Centenas de hastes de cotonetes fincadas nas mangueiras ajudam a aumentar a área irrigada. A estrutura, chamada de mandala, custa de R$ 600 a R$ 3 mil. Tiramos as pessoas do reinado da cana e as colocamos em um sistema de produção integrada e orgânica, diz Willy Pessoa, criador do projeto.
O cultivo de legumes, frutas e verduras é unido à criação de patos, peixes e galinhas. Os dejetos dos bichos servem de adubo para a plantação. E a venda de todos eles garante o dinheiro do final do mês. As primeiras colheitas são para consumo próprio, mas em um mês e meio eles começam a vender o excedente, diz Willy. Quando a mandala está em pleno funcionamento, o ganho médio é de R$ 1,7 mil.
Comandado pela organização não-governamental Agência Mandalla, o projeto existe no estado há quatro anos e meio. A ONG conta com a ajuda de multinacionais, como a Bayer e a Pepsi do Brasil, para montar os oásis entre os xiquexiques-do-sertão. Durante dois dias, o Correio visitou algumas das 200 famílias paraibanas que encontraram nesse simples sistema de irrigação uma forma de se libertar dos sacrifícios da seca.

Mandalas no cerrado
Um acordo prestes a ser assinado entre a Agência Mandalla, a Fundação Banco do Brasil e o Ministério do Trabalho permitirá a construção de mandalas no Distrito Federal e no Entorno. Na última quarta-feira, um representante da agência esteve em Brasília para fechar os últimos detalhes do projeto que irá beneficiar cerca de 1,2 mil pessoas. Jovens de 16 a 24 anos tirarão da terra o sustento de casa.
A previsão é de que sejam investidos R$ 1 milhão para implantar o projeto. Atualmente, existem cerca de 350 mandalas espalhadas por oito estados brasileiros. Em oito anos, será possível gerar oito milhões de emprego com a disseminação de mandalas pelo país. No ano passado, o projeto foi um dos vencedores do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social. (CS)

Morango com pimenta
Tinhoso de nascença, José Corrêa de Araújo deu uma de Tomé. Só acreditou no sucesso da mandala depois que viu ela funcionando. E no quintal de casa. Acostumado a carregar água no lombo para manter a horta, o paraibano de 58 anos não se cansa de repetir as vantagens do novo sistema irrigação. Consegui plantar morango e pimenta no meio do sertão, gaba-se. A proeza está à vista dos incrédulos no assentamento Santo Antônio, em Cajazeiras, a 453 quilômetros de João Pessoa.
Ao todo, 19 mandalas se espalharam nos quintais das 32 famílias assentadas. A primeira roda da fertilidade surgiu há quatro anos e, desde então, tem efeito direto da saúde dos antigos sem-terra. Não tenho mais dor no corpo nem problema de pressão, gaba-se José. Coordenadora do assentamento, Lúcia Cartaxo conta que a alimentação rica em frutas, verduras e hortaliças reduziu praticamente zero o número de crianças com desnutrição.
O sistema integrado de culturas é, para Willy Pessoa, a razão da melhoria na qualidade de vida dos assentados. Segundo o criador das mandalas, para manter uma dieta recomendada pelos especialistas em saúde, cada sertanejo teria que gastar em torno de R$ 140. Hoje, eles tiram tudo o que precisam do quintal de casa. Do peixe à batata.

Alforria verde
Marcone Cardoso ralou corpo e destino em canaviais paraibanos por nove anos. A lida de bóia fria levada por José Cardoso durou 30. Em tempos de fartura, pai e filho fechavam um mês de colheita com R$ 200 no bolso e nenhuma esperança na vida sertaneja. Desde janeiro, o destino seco ganhou vida no assentamento Santa Helena, a 50 quilômetros de João Pessoa. Em dez hectares, a dupla construiu um oásis no meio do agreste.
Completada há um mês, a mandala dos Cardosos tem 50 tipos de cultura, entre bananeiras, pés de alface, milho e girassol. Tiramos R$ 1,5 mil por mês. E a partir do final do ano, quando começarmos a vender os bichos, vamos ganhar R$ 2 mil, planeja Marcone. Os frutos da terra já começam a garantir a comodidade da casa. Dona Lindalva comprou aparelho de televisão e geladeira.
Diretor de gestão estratégica da Agência Mandalla, Tárcio Handel diz que a agricultura sustentável representa uma mudança brusca no dia-a-dia do homem do campo. Eles estão acostumados a viver da monocultura. Temos que convencê-los de que o uso racional do solo e da água também dá lucro. A mandala da família Cardoso alimenta 20 pessoas. O restante, que equivale a 70% da produção, é vendido em feiras de cidades vizinhas.

Novidade digital
Cinco da manhã. Sol quente na Paraíba. As vizinhas Severina da Silva e Francisca de Souza tomam o rumo da mandala comunitária. Os filhos delas e das dez famílias envolvidas no projeto vão escarafunchar os computadores. Em Acauã é assim. O uso da enxada conta com as facilidades da vida digital. Quatro máquinas cedidas pela Bayer garantem a dobradinha. Com elas, os meninos vão fazer pesquisas e planilhas para controlar as vendas, os custos, a produção, explica Mário Guimarães, agrônomo da Agência Mandalla.
Oito jovens estão sendo treinados há um mês. O grupo ficará encarregado de capacitar outras 90 pessoas. A filosofia da cooperação se repete no campo. As famílias trocam frutas e verduras para o consumo próprio e vendem o excedente em feiras da região. Temos um trator que leva todo mundo pras feiras, diz Severina. A paraibana foi rendeira durante anos. Em maio, largou os dotes artísticos para botar a mão na terra. Eu levava uma semana para fazer um jogo e ganhar R$ 8. Agora, toda feira que vou tiro pelo menos R$ 15.
O lucro da troca fez com que a assentada montassem uma mandala em casa. As plantações dos dois canteiros têm rendido cerca de R$ 80 mensais. Depois que tudo isso crescer, vou melhorar de vida, diz Severina.

CB, 16/11/2004, p. 12

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