VOLTAR

O milagre do São Francisco

OESP, Vida, p. A18
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
18 de Nov de 2004

O milagre do São Francisco

Marcos Sá Corrêa

Fica difícil acreditar que o governo Lula esteja levando a sério o Rio São Francisco, se ele mesmo põe na internet projetos para rejuvenescer o Velho Chico que comovem pela modéstia franciscana. Ou, pelo menos, não parecem sair da mesma equipe que inspirou esta semana o discurso do presidente em Alagoas, no aniversário da República. "O São Francisco é a correnteza republicana que une o Sudeste úmido ao semi-árido seco", disse Lula. E, como a figura soasse meio frouxa, apesar de vitaminada pela redundância, ele aumentou a vazão retórica na frase seguinte: "A revitalização mata a sede do povo nordestino e fortalece a economia da região."
Foi o que bastou para a notícia aparecer no dia seguinte debaixo de um título em que o governo promete revitalizar o rio. Promete mesmo? À primeira vista, Lula estava apenas confundindo, na calor do palanque, "revitalização" com "transposição". As duas palavras podem, até devem, andar juntas na bacia do São Francisco, mas estão longe de ser a mesma coisa. Uma se refere a programas que pretendem matar a sede do rio. Quem promete matar a sede do nordestino é a outra.
Ambas estão nas páginas que o Ministério da Integração Nacional pôs no ar para defender o programa. O site oficial é claro, informativo e fácil de usar. Mas tão propagandístico que, num capítulo chamado Opiniões, todas as opiniões promovem a transposição. Ali, só o engenheiro Jerson Kelman, presidente da Agência Nacional de Águas, se dá ao trabalho de transcrever, antes de comentar, os argumentos contrários à transposição. E reconhece logo nas primeiras linhas "que os rios da bacia do São Francisco necessitam de uma revitalização". Foram entupidos "por décadas de desmatamento".
Para isso o programa oferece um plano de reflorestamento, com as receitas de praxe: "recuperação de matas ciliares" e "proteção de nascentes com o plantio de mudas de espécies arbóreas de ocorrência natural". Custará R$ 15 milhões até 2007. Só este ano são - ou deveriam ser, porque o destino do dinheiro ainda consta da rubrica "municípios: a definir" - R$ 3,228 milhões. Parte da verba está destinada à fecundação de dois viveiros de mudas, em parceria com o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais.
Desses viveiros sairão as árvores nativas para recauchutar as margens do rio. E bota rio nisso. Ao todo, são 2.700 quilômetros de barrancos puídos, de cada lado. Para lidar com tamanho problema, os viveiros do São Francisco são raquíticos. Estão calibrados para fornecer "cerca de 200 mil mudas/ano" cada um. Com esses números, eles mal se comparam com os viveiros de pequenas ONGs que tocam, por conta própria, trabalhos silenciosos e tópicos de socorro ambiental. A Apremavi, por exemplo. Ela funciona numa casa de madeira na Serra de Santa Catarina e tira 400 mil mudas por ano para plantar no Alto Vale do Itajaí. A fazenda em Aimorés, Minas, que o fotógrafo Sebastião Salgado está devolvendo à mata atlântica, gera 250 mil mudas por ano. A SPVS, que refloresta antigos pastos de búfalos em Guaraqueçaba, no litoral paranaense, cria para isso 230 mil mudas por ano. O governo acha que pode fazer muito mais com muito menos. Se conseguir, será o milagre do São Francisco.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 18/11/2004, Vida, p. A18

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.