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O microcrédito e o terceiro setor

GM, Opinião, p. A3
Autor: MASCARENHAS, Albérico
27 de Jan de 2004

O microcrédito e o terceiro setor

Os números variam de acordo com a metodologia de pesquisa utilizada por cada instituição, mas as estimativas de todas elas não deixam dúvidas: é enorme o contingente de brasileiros sem nenhum acesso ao sistema financeiro convencional, vivendo à margem de todas as oportunidades de financiamento, seja para consumo, seja para produção.

Apesar das recentes - e louváveis - iniciativas do governo federal no sentido de ofertar crédito às populações de renda mais baixa, o problema é complexo e de resolução lenta. Principalmente quando se fala em crédito produtivo, aquele voltado para a alavancagem e a sustentabilidade de pequenos negócios, o processo demanda um cuidadoso acompanhamento e mesmo um trabalho de cunho educacional. É justamente disso que o País está precisando para potencializar o programa de microcrédito lançado pelo governo Lula.

Ao estimular o microcrédito para consumo, o programa tem buscado aquecer de imediato o comércio e a indústria, em um período de estagnação econômica que se prolongou por quase todo o ano de 2003. A médio e longo prazos, porém, o esforço só se mostrará válido se resultar em apoio efetivo aos microempreendimentos, no seu fortalecimento e na geração de renda e postos de trabalho.

Por mais importantes que sejam os grandes investimentos - e no Brasil eles se mostram mais que necessários em vários segmentos -, são as micro e pequenas empresas que adensam o tecido econômico do País, gerando a maior parte dos empregos. Para o poder público, é essencial ter isso em mente, em uma época em que as relações de trabalho se deterioram cada vez mais e boa parte da população parte para tentar o empreendedorismo montando negócios por conta própria, até mesmo por inexistência de alternativas.

Assim, a expansão do microcrédito está acontecendo em boa hora. Resta analisar se o aumento de oferta está sendo feita pelos canais adequados, no caso instituições oficiais e bancos comerciais. Entre as instituições oficiais, o Crediamigo, do Banco do Nordeste, com quase seis anos de existência e cerca de 400 mil operações somente em 2003, consolida-se como maior programa de microcrédito do País.

Já entre os bancos comerciais, em que pese o interesse demonstrado por muitos deles em passar a atuar nessa área, a experiência mostra que talvez não seja esse o caminho certo. Por sua própria natureza, instituições comerciais se voltam para o lucro, e o microcrédito produtivo não tem necessariamente esse perfil. Mais do que isso, o microcrédito não se reduz a uma simples operação bancária, tendo em uma ponta o ofertante e na outra o tomador. Trata-se, sobretudo, de uma oferta de serviço que envolve a formação de agentes de crédito, a busca pelo cliente e assessoria para que este aplique os recursos de forma correta, de modo que alcance seus objetivos.

São operações que implicam custos adicionais nem sempre devidamente remunerados sob a ótica do mercado financeiro. Em última análise, a concessão de microcrédito exige uma metodologia específica à qual estão mais afeitas as entidades do terceiro setor do que os bancos comerciais.

No Brasil existem organizações não-governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e sociedades de crédito ao microempreendedor (SCMs) que trabalham com foco no microcrédito já há cerca de duas décadas, além de cooperativas de crédito. Trata-se de uma notável experiência que não pode ser dispensada neste momento.

Diversas agências estaduais de fomento com atuação nessa área, a exemplo da agência da Bahia, dentre outros estados, vêm repassando recursos para essas entidades, ampliando sua atuação. A agência baiana - Desenbahia - opera com microcrédito direta e também indiretamente, financiando instituições especializadas a fim de atingir o mais rápido possível os 417 municípios do estado. Trabalhando mais próximo ao cliente e familiarizadas com as políticas de desenvolvimento local, as ONGs e suas congêneres têm inclusive mais condições de direcionar o crédito para fortalecer as redes produtivas das áreas onde estão inseridas.

Estranhamente, o BNDES não realizou nenhum repasse de recursos para microcrédito às instituições do terceiro setor durante o ano de 2003, quando até 2002 era a maior fonte de recursos, com seu Programa de Crédito Produtivo Popular. As novas regras do programa de microcrédito do banco tornaram inflexíveis as taxas de juros na ponta, com isso praticamente inviabilizando as operações.

Para que o programa de microcrédito produtivo dê os resultados desejados, não se pode abrir mão da metodologia disponível e de trabalhar no sentido de aperfeiçoá-la, adaptando-a às peculiaridades de cada uma das regiões do País. Somente com uma ação responsável e constante o microcrédito impulsionará os pequenos negócios, tirando-os mais e mais da informalidade e contribuindo para promover sua inclusão social.

kicker: O programa lançado pelo governo busca aquecer o comércio e a indústria

Albérico Mascarenhas - Secretário da Fazenda da Bahia e coordenador do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

GM, 27/01/2004, Opinião, p. A3

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