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O massacre de Haximu, há 30 anos, e a origem dos conflitos no território Yanomami

O Globo - https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/post/2023/05
02 de Mai de 2023

O massacre de Haximu, há 30 anos, e a origem dos conflitos no território Yanomami
Como garimpeiros mataram 16 indígenas, entre eles idosas e crianças, no único crime reconhecido como genocídio pela Justiça do Brasil; Três décadas depois, violência continua

Por William Helal Filho
02/05/2023

Paulo Yanomami descansava numa rede feita de cascas de árvore quando, por volta das 9h, a calma daquela manhã foi alvejada por saraivadas de tiros. Ao se levantar assustado, o indígena identificou um garimpeiro disparando na sua direção, mas o projétil não o atingiu e, enquanto o atirador recarregava sua espingarda, Paulo correu pra dentro da mata. Do esconderijo, desarmado, sentindo-se impotente, escutou mais vários disparos e os gritos desesperados de mulheres e crianças da sua aldeia. Estava em curso a matança que ficaria conhecida como o massacre de Haximu. Até hoje, aquele foi o único crime reconhecido, oficialmente, como um genocídio pela Justiça no Brasil.

Naquela sexta-feira, 23 de julho de 1993, mesmo dia da chacina da Candelária, 16 pessoas foram assassinadas, a maioria delas mulheres e crianças, a tiros e golpes de facão por um grupo de garimpeiros que invadira a Terra Indígena Yanomami. Só que, diferentemente do crime bárbaro diante da igreja bicentenária no Centro do Rio, o massacre na região montanhosa da Floresta Amazônica levaria mais de um mês para chegar a público, e a reação da sociedade também não corresponderia à dimensão da violência ocorrida na reserva então recém-homologada no Norte do país.

Quase 30 anos anos se passaram, mas as autoridades não foram capazes de apaziguar a tensão no território. A situação nunca esteve tão violenta, com garimpos liderados por facções criminosas de traficantes armados. No último sábado, indígenas da aldeia Uxiu participavam de um ritual quando foram atacados por garimpeiros. Três yanomamis foram baleados, e um deles morreu. No dia seguinte, em outro ponto da reserva, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ibama foram atacados por garimpeiros. Houve confronto, e quatro invasores foram mortos. Um deles era chefe de uma fação. Foram apreendidos um fuzil, três pistolas, sete espingardas e munição de vários calibres.

A violência imposta pelo garimpo está na raiz de tudo. Em agosto de 1987, após a descoberta de jazidas minerais, teve início uma grande corrida do ouro em Roraima, o que levou milhares de invasores à terra Yanomami. Além de devastação, a presença dos garimpeiros disseminou doenças como malária e sífilis, que mataram algo em torno de 2 mil indígenas. Diante do que foi reconhecido como uma tragédia humanitária, por ordem da Justiça, a Polícia Federal deu início, em 1990, a uma série de operações que, em um ano, removeram mais de 10 mil garimpeiros e destruíram seu maquinário.

A homologação da reserva Yanomami, numa área duas vezes maior que a Suíça, em 1992, não dissipou o clima de conflito com invasores que, apesar das operações, ainda se mantinham por lá. Era o caso de João Neto e seu cunhado, Chico Ceará. Liderando um grupo de garimpeiros, eles estabeleram um acampamento ilegal à margem do Rio Taboca, afluente do Orinoco, na Venezuela, e iniciaram atividades de exploração mineral, com uso de balsas, perto da aldeia Haximu, em 1993.

O que aconteceu a partir de então está registrado no dossiê "Haximu: Foi genocídio", publicado em 2001 pela Comissão Pró-Yanomami. O documento reúne depoimentos de vítimas e testemunhas, bem como confissões de envolvidos. O material foi colhido dos autos do processo gerado pelo crime. O dossiê também inclui o relato do canadense Bruce Albert, antropólogo que viveu com aquele povo durante 30 anos. Foi Albert quem traduziu e transcreveu a narração do xamã Davi Kopenawa sobre a cosmologia Yanomami, no livro "A queda do céu" (Companhia das Letras), de 2015.

Pouco depois da chegada dos intrusos, por curiosidade e ingenuidade, os moradores de Haximu se aproximaram dos forasteiros e, vez ou outra, receberam deles alimentos como farinha e biscoitos. É comum essa tentativa, por parte de garimpeiros ilegais, de "comprar" a simpatia dos locais oferecendo produtos industrializados. Semanas mais tarde, porém, ao fim de maio de 1993, o indígena Tuxaua Kerrero se desentendeu com invasores no acampamento e atirou na direção de um homem, que saiu correndo, sem ferimentos. A atitude fez fermentar o desprezo dos forasteiros pelos yanomamis.

Vinte dias depois, seis moradores de Haximu voltaram ao assentamento para tentar acalmar os ânimos e reativar o diálogo. Os invasores agiram como se estivesse tudo bem, mas, quando o grupo retornava à aldeia, os garimpeiros os alcançaram na mata e assassinaram friamente quatro indígenas (os outros dois conseguiram fugir). Os yanomami, então, planejaram uma retaliação e, dois dias depois de realizar os ritos fúneberes de cremação de seus mortos, retornaram ao acampamento, desta vez realizando disparos. Um garimpeiro foi morto e outro ficou ferido. A violência estava instalada na floresta.

Os indígenas voltaram a suas malocas em Haximu, mas, certos de que os inimigos buscariam vingança, decidiram se esconder. Então, os cerca de 90 moradores deixaram a aldeia e se embrenharam no mato até chegarem a uma roça antiga, onde ergueram tapiris (choupanas feitas de palha). Eles estavam lá havia mais ou menos uma semana quando apareceram dois indígenas da aldeia Makayutheri, que ficava a algumas horas de distância, convidando-os para uma festa. No mesmo dia, quase todos os homens foram para a cerimônia, deixando apenas algumas mulheres e as crianças na comunidade.

Os yanomami acreditavam que os invasores matariam os homens da aldeia se os encontrassem, mas achavam que não atacariam mulheres e crianças. Estavam enganados. Os garimpeiros preparavam um extermínio. João Neto e Chico Ceará contrataram pistoleiros, adquiriram munição e se lançaram na floresta com 15 espingardas, sete revólveres e facões. Andaram dois dias na mata até que chegaram a Haximu, onde encontraram as malocas vazias. Eles, então, pernoitaram na aldeia e, no amanhecer de 23 de julho, retomaram a caça a seus inimigos.

Depois de três horas de caminhada, os criminosos chegaram aos tapiris. Havia apenas dois homens no local: Paulo e Simão Yanomami. Um dos sobreviventes da emboscada anterior, Paulo escapou de novo, sem ferimentos. Simão, entretanto, levou um tiro na lateral do tronco antes de também se enfiar na mata.Sem capacidade de reação diante do bando armado, eles ficaram abrigados durante todo o massacre até que ouviram atiradores gritando: "Embora, embora, embora!".

A matança só não foi maior porque, no momento em que os criminosos chegaram, muitas das mulheres e crianças tinham se afastado dos tapiris para colher frutos na floresta. Quando voltaram, depararam-se com imagens aterrorizantes. Entre os mortos, havia duas idosas, um idoso e cinco crianças com idades de 1 a 8 anos.

Os corpos foram deixados repletos de perfurações de bala e cortes de terçado. Alguns estavam mutilados. Segundo o depoimento colhido pela polícia do garimpeiro Pedro Prancheta, que participou o massacre, o grupo chegou aos tapiris e encontrou as crianças brincando. Mesmo assim, começaram a atirar em todos. Uma cozinheira do garimpo contou que, quando os assassinos retornaram, ouviu um tal de Goiano Boiadeiro dizer que encontrara uma criança deitada numa rede e "que ele enrolou a criança em um pano e meteu a faca de um lado para o outro".

De acordo com a tradição Yanomami, os sobreviventes cremaram os corpos de seus parentes, pilaram os ossos e guardaram as cinzas em cabaças de madeira. Depois, fugiram de novo, dessa vez, para muito mais longe. Eles caminharam pela floresta densa por semanas até que, no dia 25 de agosto, 69 sobreviventes do massacre chegaram a uma maloca na região de Toototobi, no Brasil. Dias antes, uma religiosa conhecida como Irmã Aléssia, ao saber do ocorrido, enviara carta à Fundação Nacional da Saúde (Funasa) denunciando o crime.

Quando o massacre ganhou a imprensa, os garimpeiros sumiram da reserva. Policiais foram enviados, mas, como não acharam restos mortais ou testemunhas em Haximu, voltaram de mãos abanando, e algumas autoridades duvidaram publicamente do acontecido. Desconheciam-se os costumes yanomamis de cremar seus mortos. Não pensaram que os sobreviventes, entre eles testemunhas, haviam fugido para a floresta. Mas a verdade não tardaria a mostrar sua cara feia.

Com o tempo, testemunhas foram localizadas e contaram suas versões. Cinco garimpeiros foram presos. Durante as buscas na área dos tapiris, foi encontrada uma única ossada, de uma mulher cujo corpo que não havia sido cremado porque pertencia a uma indígena de outra aldeia que não tinha parentes em Haximu para realizar os rituais funerários. Seus restos mortais exibiam marcas de dois disparos: um no peito e outro na cabeça, além de mutilações feitas com objeto cortante.

Desde o início do processo legal, era o objetivo do Ministério Público Federal (MPF) obter a condenação dos assassinos pelo crime de genocídio. Por definição, essa tipificação é aplicada para punir a conduta de quem mata ou causa lesão grave em outro ser humano "com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Segundo a tese do MPF, acolhida tanto em primeira instância, como pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), os garimpeiros mataram todas aquelas pessoas movidos pelo ódio contra sua condição de indígenas.

Os criminosos foram condenados a 20 anos de prisão em 1997, mas, em 2011, a Justiça considerou a pena cumprida, e todos foram soltos. Em 2018, Pedro Garcia, um dos líderes do massacre, foi preso mais uma vez, numa operação contra a mineração ilegal na reserva Yanomami. Áquela altura, aos 57 anos, ele era o único entre os condenados pelo crime de 1993 ainda vivo. Em 2020, o criminoso foi detido de novo, com 3kg de ouro extraídos ilegamente do território. Naquele ano, ele recebeu nove parcelas do auxílio emergencial pago à população de baixa renda durante a pandemia de Covid-19.

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